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Com uma ternura escondida frequentemente sobre a brutalidade do verso, fala-nos Alexandre O’Neill (1924-86) de variadas formas que o amor reveste e de como a sua ausência dói.
Começo com o poema Há palavras que nos beijam onde lemos Palavras que nos transportam / Aonde a noite é mais forte, / Ao silêncio dos amantes / Abraçados contra a morte.
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
Mudamos agora de registo e acompanhamos as dificuldades de jovens pais em viver a sua sexualidade com meninos em torno. Canção de embrulhar
boa noite meninos não
não levantar da cama
não ir pé ante pé ver os pais ao
quarto diz que eles são quatro foles
agarrados uns aos outros ar
quejando diz que é o amor
ou quejando diz que é
o pai com uma coisinha assim
a meter um recado na caixinha que a mãe
tem diz que não que não é a da
costura que é aquela onde se
guardam os meninos antes de se poder
comprar o berço e eles poderem
nascer para o amor dos seus pais
No que segue, escreve Alexandre O’Neill sobre o homem solitário e a sua busca de consolo no sexo. Se os poemas envolvendo prostitutas são matéria poética vasta nos mais variados registos, referir em poesia o recurso a uma boneca insuflável para coito do coitado, coutada do solitário, não conheço outro.
Soprónia Insuflávia, ó minha noiva cauchutada,
minha câmara-de-ar nupcial,
coito do coitado, coutada do solitário
cervo que nos galhos trazia à dependura
o retrato da que diziam verdadeira…
Verdadeira és tu, Soprónia! Machucada,
logo repões a glória da tua carne
na opulência das tuas formas,
as mesmas que, pelo catálogo, escolhi.
Porque fui eu que, à velha maneira, te escolhi
e a teus pais te paguei para poder trazer-te
a este quarto onde, dando novos sentidos à estafada canção,
o amor é uma coisa maravilhosa!
Que obediência devemos a práticas que não sejam as mais antigas?
Nós não fazemos amor, como diz a de hoje tão dessorada gente;
nós, está bem de ver, FORNICAMOS!
Não precisamos de Kahn, Egas Moniz ou Freud,
sequer de Reich, pensador orgasmático,
nem dessa trupe que dá pelo nome de As Femininistas
e que ao homem, quando quer, fecha obscenamente as pernas,
como santola que, já no prato, se recusasse.
Tão-pouco necessitamos de dar as nossas mãos
e fazer rodas infantis em casa de senhores idosos
para que a língua-de-sogra neles se desenrole
e eles digam:”- Te adoro!”
Somos absolutamente pela moral.
… … … … … … … … … … … … … … … … … … …
Ao Algarve, Soprónia, que o tempo tástupendo!
Desinflada, meto-te na mala.
Em Albufeira, recobro a forma do meu amor
e, naquele mar que nasceu para estar deitado,
deitamo-nos perdidamente a amar!
Termino com esta pungente Meditação na Pastelaria onde se fala de solidão e memória do que foi, talvez, amor – Chorar encostada a uma saudade / Bem maior do que eu, – e onde os sentimentos se abrigam na companhia de um cão de estimação. Meditação na Pastelaria
Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.
Nunca se sabe quando começa a insolência!
Que tempo este, meu Deus, uma senhora
Está sempre em perigo e o perigo
Em cada rua, em cada olhar,
Em cada sorriso ou gesto
De boa-educação!
A inspecção irónica das pernas,
Eis o que os homens sabem oferecer-nos,
Inspecção demorada e ascendente,
Acompanhada de assobios
E de sorrisos que se abrem e se fecham
Procurando uma fresta, uma fraqueza
Qualquer da nossa parte…
Mas uma senhora é uma senhora.
Só vê a malícia quem a tem.
Uma senhora passa
E ladrar é o seu dever — se tanto for preciso!
*
O pó de arroz:
Horrível!
O bâton:
Igual!
O amor de Raul é já uma saudade,
Foi sempre uma saudade…
(O escritório
Toma-lhe todo o tempo?
Desconfio que não…)
Filhos tivemos um:
Desapareceu…
E já nem sei chorar!
Chorar…
Como eu queria poder chorar!
Chorar encostada a uma saudade
Bem maior do que eu,
Que não fosse esta tristeza
Absurda de cada dia:
Unha
Quebrada de melancolia…
Perdi tudo, quase tudo…
Hoje,
Resta-me a devoção
E este pequeno inteligente cão.
Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.
Os poemas foram transcritos de Alexandre O’Neill, Poesias Completas 1951/1986, 3ª edição revista e aumentada, INCM, Edição do Dia de Portugal, 10 de Junho de 1990.