O afastamento, a distância de quem nos é querido, têm nas imagens poéticas em torno dos olhos alguns dos mais belos poemas de sempre da poesia portuguesa. Um deles é este Cantiga, partindo-se, publicado por Garcia de Resende no seu Cancioneiro Geral, e atribuído a Jorge Roiz de Castelo-Branco (14??-1515), que agora acrescento ao meu cânone pessoal.
Cantiga, partindo-se
Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
Tão tristes, tão saüdosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida,
partem tão tristes os tristes,
tão fora de esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
Jorge Roiz de Castelo-Branco (14??-1515)
Transcrevi a versão de José Régio em português moderno publicada em as mais belas poesias do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, 1962, publicada por Realizações Artis.
E agora, com música de Alain Oulman, o poema na voz sublime de Amália
Enquanto nas terras do sul, embalo-me no espirito e memória do lugar. Vai mar, vai comida, vai paisagem. E poesia em castelhano.
Aproveito para discretear um pouco e partilhar com os leitores o que em Portugal é provavelmente segredo conhecido apenas de alguns: as canções de Carlos Cano (1946 – 2000).
Passaram em Dezembro último 10 anos sobre a morte deste Filho Predilecto de Andaluzia,Carlos Cano, cantautor como dizem os espanhóis, e poeta. Voltou a dar vida a géneros populares se não esquecidos, pelo menos desprezados, tal a copla andaluza.
Da copla escrevia Manuel Machado a Jorge Guillen:
Procura tú que tus coplas / vayan al pueblo a parar e também: y cuando las canta el pueblo, / ya nadie sabe el autor.
Cantou Carlos Cano em El rey Al-Mutamid le dice adiós a Sevilla, o poeta-rei de Sevilha Al-Mutamid, nascido em Beja e governador em Silves, e de quem já aqui deixei poesia. Musicou os poemas de Lorca de Diván del Tamarit, entre uma vasta colecção de fandangos, tangos, boleros, rumbas e outros géneros populares.
María la portuguesa, canção de homenagem a Amália, é uma comovente simbiose do canto andaluz com o fado que aqui podereis ouvir por Carlos Cano sozinho e em dueto com Amália Rodrigues.
Carlos Cano – Maria La Portuguesa
Carlos Cano – María la portuguesa – com Amália
Para não perder o gosto deixo um poema de Manuel Machado (1874-1947), irmão de António Machado, de cuja poesia já me aproximei aqui no blog.
O poema, singelo, apenas recomenda a humildade da Poesia perante o povo e as suas tradições:
Que, al fundir el corazón /en el alma popular, / lo que se pierde de nombre / se gana de eternidad.
Agora o poema:
La Copla
Hasta que el pueblo las canta, las coplas, coplas no son, y cuando las canta el pueblo, ya nadie sabe el autor.
Tal es la gloria, Guillén, de los que escriben cantares: oír decir a la gente que no los ha escrito nadie.
Procura tú que tus coplas vayan al pueblo a parar, aunque dejen de ser tuyas para ser de los demás.
Que, al fundir el corazón en el alma popular, lo que se pierde de nombre se gana de eternidad.
Enjoy enquanto a poesia não regressa ao blog com a erudição do costume. Tempo de férias é tempo de preguiçar.
Neste passeio pela poesia dos românticos faço hoje paragem em António Feliciano de Castilho (1800 – 1875) acompanhado de Amália Rodrigues.
A personalidade literária e humana do poeta é de tal forma gigantesca e o domínio que exerceu sobre o panorama literário português e brasileiro nos 50 anos da vida activa foi tal, que seria estulticia pretender abordá-lo em poucas linhas. Lá virá com o cuidado que merece.
Hoje apenas transcrevo na integra o poema OS TREZE ANOS, cantilena como o autor sub-titulou, composto aos 40 anos, em 1840, e que Amália cantou parcialmente como Pedro Gaiteiro com a musica de Alain Oulman.
Pedro Gaiteiro na voz de Amália
OS TREZE ANOS
Cantilena
Hortas da calçada do duque, Páscoa do espírito santo de 1840
Já tenho treze anos, / Que os fiz por Janeiro:
Madrinha, casai-me, / Com Pedro gaiteiro.
Já sou mulherzinha; / Já trago sombreiro;
Já bailo ao domingo / Co’as mais no terreiro.
Já não sou Anita, / Como era primeiro,
Sou a senhora Ana, / Que mora no outeiro.
Nos serões já canto, / Nas feiras já feiro,
Já não me dá beijos / Qualquer passageiro.
Quando levo as patas, / E as deito ao ribeiro,
Olho tudo à roda / De cima do outeiro,
E só se não vejo / Ninguém pelo arneiro,
Me banho co’as patas / Ao pé do salgueiro.
Miro-me nas águas / Rostinho trigueiro,
Que mata d’amores / A muito vaqueiro.
Miro-me olhos pretos / E um riso fagueiro,
Que diz a cantiga / Que são cativeiro.
Em tudo, madrinha, / Já por derradeiro
Me vejo mui outra / Da que era primeiro.
O meu gibão largo / D’arminho e cordeiro
Já o dei à neta / Do Brás cabaneiro,
Dizendo-lhe – Toma / Gibão domingueiro,
D’ilhoses de prata, / D’arminho e cordeiro.
A mim já me aperta, / E a ti te é laceiro;
Tu brincas co’as outras, / E eu danço em terreiro.
Já sou mulherzinha, / Já trago sombreiro;
Já tenho treze anos, / Que os fiz por Janeiro.
Já não sou Anita, / Sou a Ana do outeiro;
Madrinha, casai-me, / Com Pedro gaiteiro.
Não quero o sargento, / Que é muito guerreiro,
De barbas mui feras, / E olhar sobranceiro.
O mineiro é velho; / Não quero o mineiro:
Mais valem treze anos / Que todo o dinheiro.
Tão pouco me agrado / Do pobre moleiro,
Que vive na azenha / Como um prisioneiro.
Marido pretendo / De humor galhofeiro,
Que viva por festas, / Que brilhe em terreiro.
Que em ele assomando / Co’o tamborileiro,
Logo se alvorote / O lugar inteiro.
Que todos acorram / Por vê-lo primeiro;
E todas perguntem / Se ainda é solteiro.
E eu sempre com ele, / Romeira e romeiro,
Vivendo de bodas, / Bailando ao pandeiro.
Ai, vida de gostos! / Ai céu verdadeiro!
Ai Páscoa florida, / Que dura ano inteiro!
Da parte, madrinha, / De Deus vos requeiro;
Casai-me hoje mesmo / Com Pedro Gaiteiro.
OS TREZE ANOS foi publicada em 1844 no livro Escavações Poéticas, livro que o próprio autor chama no prólogo … um museu de fragmentos desconexos.
Num poema em que o autor faz correr a inspiração para um retrato de adolescente, a sua versificação sem mácula ganha um sabor genuinamente popular.
OS TREZE ANOS não é um poema representativo da obra poética de António Feliciano de Castilho (1800 – 1875), embora estas criações de aparente desenfado surjam uma vez por outra entre os diversos exercícios poéticos a que se entrega, pretendendo plasmar em português uma arte poética solidamente teorizada.