• Autor
  • O Blog

vicio da poesia

Tag Archives: Herberto Helder

Salmo 139 mudado para português por Herberto Helder

15 Segunda-feira Abr 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Herberto Helder

Deus como demiurgo, a crença na Sua omnipresença e omnisciência encontram-se plasmadas no Salmo 139 que hoje transcrevo mudado para português por Herberto Helder (1930-2015).

Simultaneamente exaltante e terrífico, é um avassalador poema sobre o ínfimo da condição humana perante a grandeza do divino:

…
Tu me sondas, Senhor, e me conheces.
Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim.
Tu que sabes do meu sono e da minha marcha incerta,
dá-me o caminho secreto para a tua eternidade.

 

É parte essencial da crença religiosa a aspiração a partilhar com o Ser Supremo a graça da divindade. E para a ela chegar percorrem-se os caminhos da fé, variados tanto quanto as crenças humanamente concebidas e espalhadas pelas geografias da terra desde que o homem nela existe e pensa. O livro dos salmos integrando o antigo testamento da Bíblia, é tão só mais uma peça desse vasto mundo onde a palavra procura o transcendente.

 

 

Salmo 139

Tu me sondas, Senhor, e me conheces.
Sabes quando me sento e me levanto,
de longe tu escrutas as menores intenções,
reconheces a minha marcha e vigias o meu sono.
Nada de mim te é estranho.
Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim.
Estás em frente do meu rosto, estás atrás das minhas costas,
e pousaste a tua mão sobre a carne do meu ombro.
— Oh, tua ciência é a mais prodigiosa.

Como fugir à tua Face, como evitar teu Espírito?
Acho-te nos campos celestes e nas funduras da treva.
Se voo nas asas da luz para o outro lado das águas,
agarra-me a tua mão que jamais me deixará.
E se as trevas sem astros se derrubam sobre mim,
para teus olhos as noites nada mais são do que luz.

Foste tu, eu sei, quem ergueu a minha carne,
quem lentamente me urdiu no ventre de minha mãe.
Maravilho-me ao pensar no enigma criado.
De há muito já decifravas labirintos da minha alma,
e vias erguer-se a máquina dos meus ossos obscuros.
Minha vida estava inscrita no teu livro encoberto.
Ainda antes do tempo fixaras os meus dias.
Mas os teus, os teus enigmas, quem os pode decifrar?
Que se estendem pelo tempo como na terra as areias.
Odeio os teus inimigos com um ódio absoluto.
Tu me sondas, Senhor, e me conheces.
Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim.
Tu que sabes do meu sono e da minha marcha incerta,
dá-me o caminho secreto para a tua eternidade.

 

Parte do poema SALTÉRIO, Salmos 137, 88, 22, 42, 57, 69 e 139 incluído em O Bebedor Nocturno, poemas mudados para português por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Peter Powditch (1942), Coastal II.

Visão da terra onde nascemos e morreremos, nesse lapso só nos justificamos como indivíduos se fizermos por a merecer.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Uma canção Quíchua mudada para português por Herberto Hélder

17 Sexta-feira Mar 2017

Posted by viciodapoesia in Crónicas

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Herberto Helder, Rosa Rolanda

De afirmação do desejo pela mulher e interrogação da sua constância nos fala um poema vindo talvez das altas paragens andinas, pois trata-se na origem de um poema Quíchuas mudado para português por Herberto Hélder.

Para quem não há muito tempo acompanhou as imagens da passagem do rally Dakar pelos inóspitos cimos da Bolívia e viu as gentes que acorreram ao acontecimento, pensá-las a palpitar com uma canção assim, dá a medida de quanto a dificuldade da vida material é irrelevante para a imutabilidade do sentir quando a biologia fala.

 

Mulher morena,
morena,
manjar delicado, sorriso
de água,
teu peito não sabe
de mágoas,
teus olhos não sabem
de lágrimas.

 

Porque és a mulher mais morena,
a mais bela,
a mais rainha,
deixo a água do amor
arrastar-me na corrente,
deixo a paixão, a tormenta
levaram-me até ao manto
que te cinge os ombros
e a saia revôlta
que abraça os teus músculos.

 

Quando é dia, já não pode
chegar outra noite;
abandona-me o sono
e a aurora não chega.

 

Tu, minha rainha,
ó senhora minha,
já não quererás
pensar em mim quando
o leão e o lobo
venham devorar-me
no cárcere fundo
cá onde me encontro,
nem quando saibas
que estou condenado
a não ver mais mundo,
ó senhora minha,
tu, minha rainha?

 

 

Nota bibliográfica e iconográfica

 

Poema transcrito de Poemas Ameríndios, poemas mudados para português por Heriberto Hélder, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997.

 

Acompanham o artigo duas pinturas (auto-retrato) de Rosa Rolanda (1895-1970).
Nascida na Califórnia, a pintora viveu a maior parte da vida no México. Faz parte de um alargado grupo de pintoras (com destaque mediático para Frida Kahlo) que no México desenvolveram, com notável criatividade, linguagens pictóricas a partir do movimento surrealista.
O leitor curioso encontra uma documentação pioneira no catálogo da mostra In Wonderland, The Surrealist Adventures of Women Artists in Mexico and the United States,   Prestel, 2012.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Da Grécia Antiga, um Hino Órfico à Noite em versão de Herberto Hélder

01 Sexta-feira Abr 2016

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poetas e Poemas

≈ 3 comentários

Etiquetas

Antero de Quental, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, Herberto Helder

Paul Klee - Cacodemonic 1916 550pxApenas a Noite, material ou simbólica, nos permite o encontro connosco na verdadeira intimidade do Eu.

Da aproximação do Eu à Noite deram conta os poetas; Fernando Pessoa/Álvaro de Campos com o poema Excertos de Duas Odes: Vem, Noite antiquíssima idêntica,… deu-o de forma genial, tal como genial é a versão de Herberto Hélder para um Hino Órfico à Noite vindo da antiga Grécia: …/ ó Felicidade e Encantamento, Rainha das vigílias, Mãe do sonho, /…, e que a seguir transcrevo.

Este poema, entre outras leituras, torna claro o apelo à harmonia que a noite permite: …/ escuta, ó Indulgente Antiga, a imploração terrena, / e aparece com teu rosto obscuro e lento no meio dos vivos terrores do mundo.

Outras menos encantadas invocações à noite haverá, mas não deixo de referir ainda, e mantendo-me na poesia em português, o genial poema de Antero de Quental, Per Amica Silentia Lunae: Eu amo a noite às horas sossegadas/…, recolhido no volume póstumo, Raios de Extinta Luz.

 

Hino Órfico à Noite

 

Cantarei a criadora dos homens e deuses — cantarei a Noite.

Noite, fonte universal.

Ó forte divindade ardendo com as estrelas, Sol negro,

invadida pela paz e o tranquilo e múltiplo sono,

ó Felicidade e Encantamento, Rainha das vigílias, Mãe do sonho,

e Consoladora, onde as misérias repousam as campânulas de sangue,

ó Embalador, Cavaleira, Luz Negra, Amiga Geral,

ó Incompleta, alternadamente terrestre e celeste,

ó Arredondada no meio das forças tenebrosas,

leve afastando a luz da casa dos mortos e de novo te afastando tu própria.

A terrível Fatalidade é a mãe de todas as coisas,

ó Noite Maravilhosa, Constelação Calma, Ternura Secreta do Tempo,

escuta, ó Indulgente Antiga, a imploração terrena,

e aparece com teu rosto obscuro e lento no meio dos vivos terrores do mundo.

 

Versão de Herberto Hélder

Transcrito de Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Paul Klee (1879-1940).

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Glória — poema de Malcolm Lowry

25 Quarta-feira Mar 2015

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Herberto Helder, Malcolm Lowry

Imagem 028 600pxOntem, entre eufóricos e alarmados, os computadores do wordpress davam-me conta de uma média de 79 visitas por hora ao blog. Afinal não era razão de júbilo. O anúncio da morte de Herberto Helder trazia mais gente à procura da sua poesia. Passado o entusiasmo mediático, regressamos à média habitual de 23 visitas por hora.

Persistentemente veio-me à memória o poema Glória de Malcolm Lowry (1909-1957) que Herberto Helder (1930-2015) mudou para português. Transcrevo-o em recordatória a quem não o conheça.

 

Glória

 

A glória é como uma terrível catástrofe,

pior que a casa incendiada; enquanto

se abate a trave-mestra, o fragor

da destruição repercute-se cada vez mais depressa;

e tu contemplas tudo aquilo, inane

testemunha da danação.

 

Como uma bebedeira a glória devora

a casa da alma, revela que trabalhaste

para coisa pouca: para ela —

ah, queria que esse beijo traiçoeiro nunca tivesse

molhado a minha face: queria

fundir-me, só, para sempre, na obscuridade, na noite.

 

1987 e 1996-97.

 

Publicado em OUOLOF, Poemas mudados para portugués por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Dia mundial da poesia em 2014

21 Sexta-feira Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Herberto Helder

Gentio CaripúnaUns por distracção, outros por descuido, alguns por opção, há gente que mantém a poesia fora da vida. Não sabem o que perdem.

É para esses que a poesia é lembrada em dia certo de calendário, o que acontece hoje. Para os outros, aqueles a quem a poesia embrulha a vida, será uma efeméride um pouco sem sentido: escolher apenas um dia por ano celebrar a poesia…

 

Façamos o gosto ao mundo dando conta de como a poesia é universal e comum ao género humano, com dois poema dos Índios da Amazónia mudados para português por Herberto Hélder.

 

 

Beijo

 

Beijei-te a palma da mão,

tinha o cheiro a melão-de-água.

Beijei-te a palma da mão,

e os rins ficaram-me em fogo.

 

Lamento amoroso

 

Não quero mulher que tenha

muito delgadas as pernas,

Como venenosas serpes,

de medo que elas me apertem.

 

Não quero mulher que tenha

muito comprido o cabelo,

um molho de ervas espesso

onde acaso eu me perca.

 

Quando sem vida me veres,

sobre o meu corpo não chores:

deixa que a águia ao ver-me

seja a única que me chore.

 

Quando sem vida me veres,

deita-me à floresta negra:

o tatu há-de vir ver

a cova onde meter-me.

 

Poemas publicados em Poemas Ameríndios, poemas mudados para português por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997.

O jovem representado a abrir esta celebração anual, foi desenhado por anónimo quando da Viagem Filisófica ao Amazonas efectuada por Alexandre Rodrigues Ferreira em 1783-1792, e seria o que lhe chamaram Gentio Caripúna vivendo nas cachoeiras de cima do Rio da Madeira. Não tenho dificuldade em imaginar que partilharia os sentimentos expressos nos poemas transcritos, e vindos daquelas regiões.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Herberto Helder – (a carta da paixão)

18 Terça-feira Fev 2014

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Poetas e Poemas

≈ 2 comentários

Etiquetas

Herberto Helder, Louis Jean François Lagrené

Louis Jean François Lagrenée  -  Allegory of Peace 1779 (pormenor) 650pxHá versos que iluminam uma vida. Esta mão que escreve a ardente melancolia / da idade com que abre (a carta da paixão) de Herberto Helder (1930) encontra-se entre os muitos versos do poeta que ao lerem-nos, nos ensinam. Logo, a música das palavras, depois a magia que no mundo eles podem desvendar, e, sobretudo, o mistério da vida onde mergulhamos tantas vezes de olhos fechados ou abertos, mas sem ver, e na insondável alquimia da língua descobrimos como

…

A paixão é voraz, o silêncio

alimenta-se

fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te

toda no cometa que te envolve as ancas como um beijo.

…

É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a

entre os braços. …

Deixo-vos com a totalidade desta carta da paixão.

Herberto Helder – (a carta da paixão)

Esta mão que escreve a ardente melancolia

da idade

é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,

que à imagem do mundo aberta de têmpora

a têmpora

ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra

a sua queimadura desde os seus recessos negros

onde se formam

as estações até ao cimo,

nas sedas que se escoam com a largura

fluvial

da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas

e o silêncio todo branco.

Os dedos.

A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua

alumia-se: O mel escurece dentro da veia

jugular talhando

a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se

a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas

obscuras, essa lua

tece as ramas de um sangue mais salgado

e profundo. E o marfim amadurece na terra

como uma constelação. O dia leva-o, a noite

traz para junto da cabeça: essa raiz de osso

vivo. A idade que escrevo

escreve-se

num braço fincado em ti, uma veia

dentro

da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta

da figura cavada

no espelho. Ou ainda a fenda

na fronte por onde começa a estrela animal.

Queima-te a espaçosa

desarrumação das imagens. E trabalha em ti

o suspiro do sangue curvo, um alimento

violento cheio

da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força

desde a raiz

dos braços a força

manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda

fechada, a límpida

ferida que me atravessa desde essa tua leveza

sombria como uma dança até

ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma

estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum

astro

é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros

do teu vestido.

As palavras que escrevo correndo

entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,

arterial.

E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.

A paixão é voraz, o silêncio

alimenta-se

fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te

toda

no cometa que te envolve as ancas como um beijo.

Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem

nos quartos.

É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a

entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel

relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta

pelo meio

o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras

um pouco loucas

engolfadas, entre as mãos sumptuosas.

A doçura mata.

A luz salta às golfadas.

A terra é alta.

Tu és o nó de sangue que me sufoca.

Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões

da madeira fria. És uma faca cravada na minha

vida secreta. E como estrelas

duplas

consanguíneas, luzimos de um para o outro

nas trevas.

Transcrito de PHOTOMATON & VOX, 4ª edição, Assírio & Alvim, Lisboa 2006

A imagem é um fragmento da pintura de Louis Jean François Lagrenée (1724-1805)  – Alegoria da Paz (1770), da colecção do Museu Jean Paul Getty de Los Angeles, EUA.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Herberto Helder — um poema de Servidões

23 Sábado Nov 2013

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Herberto Helder

Gerhard Richter -Profil Profile 1997Trago-vos hoje de Herberto Helder (1930), no dia do 83º aniversário do poeta, uma espécie de poema-testamento publicado no seu último livro, Servidões (1ª edição em Maio de 2013).

Num livro com poemas a oscilar entre memória e balanço de vida, são de novo as questões da palavra poética que grande parte dos poemas interroga:

escrevi num curto poema trémulo e severo,

sete ou nove linhas,

e a densa delicadeza dessas linhas

era cortada por uma ferida cega,

mas aquilo que o alimentava e unia

—fundo, devastador, incompreensível—

nem eu sabia o que era:

talvez a técnica atenção da morte

vigiasse arte tão breve, tão furtiva

 

Vamos então ao prometido, na minha leitura, poema-testamento:

 

irmãos humanos que depois de mim vivereis,

eu que fui obrigado a viver dobrados os oitenta,

fazei por acabar mais cedo vossos trabalhos cegos,

porque nestas idades já não nunca,

nem leituras embrumadas,

nem crenças, nem política das formas, nem poemas no futuro, nem

visitas extraterrestres de mulheres

exorbitantemente

nuas, cruas, sexuais, luminosas,

só vê-las um pouco, sim, mas vê-las também cansa,

é como trabalhar: stanca,

lavorare stanca,

queríamos tanto acreditar no milagre isabelino do pão e das rosas,

e só tínhamos que perder a alma,

hoje talvez eu mesmo acreditasse melhor, mas foi-se tudo,

enfim esses jogos gerais, ao tempo que se esgotaram!

livros, je les aí lus tous, e como de costume a carne é insondável,

estou mais pobre do que ao comêço,

e o mundo é pequeníssimo, dá-se-lhe corda, dá-se uma volta,

meia volta, e já era,

irmãos futuros do gênio de Villon e do meu gênero baixo,

não peço piedade, apenas peço:

não me esqueceis só a mim, esquecei a geração inteira,

inclitamente vergonhosa,

que em testamento vos deixou esta montanha de merda:

o mundo como vontade e representação que afinal é como era,

como há-de ser: alta,

alta montanha de merda — trepai por ela acima até à vertigem,

merda eminentíssima:

daqui se vêem os mistérios, os mesteres, os ministérios,

cada qual obrando a sua própria magia:

merda que há-de medrar melhor na memória do mundo

Leitores curiosos da poesia de Herberto Helder, há mais dela no blog.

Para poupar a pesquisa, seguem-se as ligações:
1) https://viciodapoesia.wordpress.com/2011/07/16/de-ferias-ate-agosto-deixo-vos-com-herberto-helder/

2) https://viciodapoesia.wordpress.com/2011/10/29/dois-olhares-sobre-a-mulher/

3) https://viciodapoesia.wordpress.com/2013/03/08/herberto-helder-e-o-amor-em-visita-no-dia-da-mulher/

4) https://viciodapoesia.wordpress.com/2012/11/26/sobre-traducao-de-poesia-poema-de-zbigniew-herbert-1924-1998/

5) https://viciodapoesia.wordpress.com/2011/08/05/nascemos-para-o-sono-poema-do-ciclo-nauatle-mudado-para-portugues-por-herberto-helder/

6) https://viciodapoesia.wordpress.com/2013/06/04/visita-da-mulher-amada-poema-de-herberto-helder-a-partir-de-poema-arabico-andaluz/

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Gerhard Richter (1932), titulada Profil Profile

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Visita da Mulher Amada – poema de Herberto Helder a partir de poema arábico-andaluz

04 Terça-feira Jun 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

≈ 2 comentários

Etiquetas

Herberto Helder, Picasso

The Lovers - 1923-13Vieste um pouco antes de soarem os sinos cristãos, quando o crescente lunar se abria no céu,

como a branca sobrancelha de um velho ou a curva delicada de um pé.

E, apesar da noite, o arco-íris brilhou no horizonte, o arco de muitas cores, cauda enorme de pavão.

(Ben Hazm)

Espécie de condensada versão de O Amor em Visita, famoso poema de Herberto Helder (1930), neste poema de Ben Hazm mudado para português encontramos tudo o que a imaginação precisa para reconhecer o esplendor do acto: E, apesar da noite, o arco-íris brilhou no horizonte

O original do poema vem atribuído, sem mais informação, a Ben Hazm, poeta arábico-andaluz que não consegui identificar.
Como a ortografia dos nomes árabes não está normalizada em português, poderá tratar-se, ou não, de Ibn Hazm Al-Andalusí, filósofo-poeta, autor de O Colar da Pomba, ainda que nesta obra não tenha conseguido encontrar um original que pudesse ter conduzido a esta versão.
Ficam pois os leitores com o belo poema em português, e com a curiosidade não satisfeita de qual o original que lhe deu origem.

O poema de Herberto Helder vem publicado em O Bebedor Nocturno poemas mudados para português, qual êxtase poético para quem à noite procure embebedar-se com poesia. O livro foi publicado por Assírio & Alvim, Lisboa 2010.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Herberto Helder e O AMOR EM VISITA no Dia da Mulher

08 Sexta-feira Mar 2013

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Convite à arte, Poetas e Poemas

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Herberto Helder, Matisse

Matisse_Henri-Zulma

Para quem anda distraído, ou ocupado nas imensas ninharias da vida, celebra o mundo neste dia 8 de Março, o Dia Internacional da Mulher.
Assunto maior e recorrente no blog – A Mulher – aproveito a comemoração para, com pouca conversa, transcrever o longo poema/oração de Herberto Helder (1930) O AMOR EM VISITA, um entre aquela menos que duzia de obras-primas absolutas da poesia portuguesa do século XX, pela primeira vez publicado em 1958 e sucessivamente retocado.

Poema de exaltação do amor pela mulher, que a abrir nos diz:

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.

Com o poema caminhamos na musica encantatória do verso, e percorremos, entre o instante e o eterno, a vertigem do amor:

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.
– Porém, tu sempre me incendeias.

sabendo que no final e sempre:

Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

O AMOR EM VISITA

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas –
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele – imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.

Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
– Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
– Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.
– Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
– Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra – invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo –
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada
beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida – e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe
a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira – para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
– Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
– Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
– o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
– E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
– No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
– Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros
do crepúsculo
– aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto aberto
– no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável –
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água – e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

Transcrevi a versão publicada em OU O POEMA CONTÍNUO, edição da obra poética de Herberto Helder, na forma definitiva de 2004, publicada por Assírio & Alvim em Setembro de 2004.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

O desejo, canção da Grécia, em versão de Herberto Hélder

17 Domingo Fev 2013

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Herberto Helder, Poesia Grega Antiga

Rune T 02É numa linguagem de oráculo que Herberto Hélder (1930) nos dá a versão dum poema da Grécia arcaica, originário de Epiro, a que chamou O DESEJO.
Podemos escolher entre os versos e desdobrá-los de significados, e a cada leitura novas leituras se nos oferecem, nesta ansiedade de amor:

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu, / eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.

Continuamos a leitura, e ouro, vermelho, maçã, são as palavras/imagens por onde o desejo se espraia.

Ler o poema é penetrar um pouco no mistério do desejo e na dificuldade da sua verbalização.

O DESEJO
(Canção)

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

Versão de Herberto Hélder, in Rosa do Mundo, 2001 poemas para o futuro.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...
← Older posts

Visitas ao Blog

  • 2.062.040 hits

Introduza o seu endereço de email para seguir este blog. Receberá notificação de novos artigos por email.

Junte-se a 874 outros subscritores

Página inicial

  • Ir para a Página Inicial

Posts + populares

  • A valsa — poema de Casimiro de Abreu
  • Horas breves do meu contentamento — soneto em diversas versões
  • Camões - reflexões poéticas sobre o desconcerto do mundo

Artigos Recentes

  • Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís
  • Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro
  • Um poema de Salvador Espriu

Arquivos

Categorias

Site no WordPress.com.

  • Seguir A seguir
    • vicio da poesia
    • Junte-se a 874 outros seguidores
    • Already have a WordPress.com account? Log in now.
    • vicio da poesia
    • Personalizar
    • Seguir A seguir
    • Registar
    • Iniciar sessão
    • Denunciar este conteúdo
    • Ver Site no Leitor
    • Manage subscriptions
    • Minimizar esta barra
 

A carregar comentários...
 

    %d bloggers gostam disto: