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De afirmação do desejo pela mulher e interrogação da sua constância nos fala um poema vindo talvez das altas paragens andinas, pois trata-se na origem de um poema Quíchuas mudado para português por Herberto Hélder.
Para quem não há muito tempo acompanhou as imagens da passagem do rally Dakar pelos inóspitos cimos da Bolívia e viu as gentes que acorreram ao acontecimento, pensá-las a palpitar com uma canção assim, dá a medida de quanto a dificuldade da vida material é irrelevante para a imutabilidade do sentir quando a biologia fala.
Mulher morena,
morena,
manjar delicado, sorriso
de água,
teu peito não sabe
de mágoas,
teus olhos não sabem
de lágrimas.
Porque és a mulher mais morena,
a mais bela,
a mais rainha,
deixo a água do amor
arrastar-me na corrente,
deixo a paixão, a tormenta
levaram-me até ao manto
que te cinge os ombros
e a saia revôlta
que abraça os teus músculos.
Quando é dia, já não pode
chegar outra noite;
abandona-me o sono
e a aurora não chega.
Tu, minha rainha,
ó senhora minha,
já não quererás
pensar em mim quando
o leão e o lobo
venham devorar-me
no cárcere fundo
cá onde me encontro,
nem quando saibas
que estou condenado
a não ver mais mundo,
ó senhora minha,
tu, minha rainha?
Nota bibliográfica e iconográfica
Poema transcrito de Poemas Ameríndios, poemas mudados para português por Heriberto Hélder, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997.
Acompanham o artigo duas pinturas (auto-retrato) de Rosa Rolanda (1895-1970).
Nascida na Califórnia, a pintora viveu a maior parte da vida no México. Faz parte de um alargado grupo de pintoras (com destaque mediático para Frida Kahlo) que no México desenvolveram, com notável criatividade, linguagens pictóricas a partir do movimento surrealista.
O leitor curioso encontra uma documentação pioneira no catálogo da mostra In Wonderland, The Surrealist Adventures of Women Artists in Mexico and the United States, Prestel, 2012.
Por algum motivo me lembrou Morena dos olhos d’água, canção de Chico Buarque escrita nos anos 1960, mas esta vai na contramão do poema Quíchua utilizando os mesmos personagens.
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