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Igual a viver numa terra de tragédia é / Viver num tempo de tragédia.

Eis que um poema de Wallace Stevens (1879-1955) escrito ao tempo da 2ª guerra mundial, ganha uma dimensão de actualidade:


Era um bater de tambores o que eu ouvi
Era a fome, eram os famintos que gritavam

 

O mundo não mudou. Tantos sonhos, tanto sangue, e a tragédia continua. África, uma vez mais, e a crise de fome aguda com o seu cortejo de vidas inocentes.
O tempo de tragédia é, para lá de todos os ideais que a humanidade vem alimentando, o nosso. E a terra de tragédia rodeia-nos perto ou longe, ainda que a tranquilidade do nosso quotidiano dela no imediato nos afaste.
Floresce a imensidão de teatros de guerra e devastação, que a natureza acentua com catástrofes naturais cada vez mais fora de controle. Por isso, diariamente surgem
… homens tisnados pelo vento,
Escuros como o pão, pensando em pássaros
Vindos de países escaldantes e litorais de areia escura,

arriscando a vida com a coragem de quem não tem nada a perder.

 

Se o poema Pão Seco, que a seguir transcrevo, não deixa de nos remeter por simples associação de ideias para as tragédias dos nossos dias, também reflecte, e é motivo de alarme, a forma como elas nos vão impregnando o quotidiano com a aceitação de uma inevitabilidade que não deveríamos permitir.


E os pássaros chegavam ainda, chegavam em bandos marítimos,
Porque era primavera e os pássaros tinham que chegar.
Sem dúvida que os soldados tinham que marchar
E que os tambores tinham que rufar, rufar, rufar.

Será?

Pão Seco

Igual a viver numa terra de tragédia é
Viver num tempo de tragédia.
Olhai agora os rochedos montanhosos e inclinados
E o rio que força o seu caminho sobre pedras,
Olhai os casebres daqueles que vivem nesta terra.

Aquilo foi o que eu pintei por trás do pão seco,
Os rochedos nem sequer tocados de neve,
Os pinheiros ao longo do rio e homens tisnados pelo vento,
Escuros como o pão, pensando em pássaros
Vindos de países escaldantes e litorais de areia escura,

Pássaros que vieram como água suja em ondas,
Voando por cima dos rochedos, voando por cima do céu,
Como se o céu fosse uma corrente que os trouxesse,
Espalhando-os como se espalham as ondas pela praia,
Uma após outra, tornando nuas as montanhas.

Era um bater de tambores o que eu ouvi
Era a fome, eram os famintos que gritavam
E as ondas, as ondas eram soldados movendo-se,
Marchando, marchando num tempo de tragédia,
Abaixo de mim, no asfalto, sob as árvores.

Eram soldados que seguiam marchando nos rochedos
E os pássaros chegavam ainda, chegavam em bandos marítimos,
Porque era primavera e os pássaros tinham que chegar.
Sem dúvida que os soldados tinham que marchar
E que os tambores tinham que rufar, rufar, rufar.

in Wallace Stevens, Antologia, tradução e introdução de Maria Andersen de Sousa, Relógio d’Água, Lisboa, 2005.

 

Original do poema

 

Dry Loaf

It is equal to living in a tragic land
To live in a tragic time.
Regard now the sloping, mountainous rocks
And the river that batters its way over stones,
Regard the hovels of those that live in this land.

That was what I painted behind the loaf,
The rocks not even touched by snow,
The pines along the river and the dry men blown
Brown as the bread, thinking of birds
Flying from burning countries and brown sand shores,

Birds that came like dirty water in waves
Flowing above the rocks, flowing over the sky,
As if the sky was a current that bore them along,
Spreading them as waves spread flat on the shore,
One after another washing the mountains bare.

It was the battering of drums I heard
It was hunger, it was the hungry that cried
And the waves, the waves were soldiers moving,
Marching and marching in a tragic time
Below me, on the asphalt, under the trees.

It was soldiers went marching over the rocks
And still the birds came, came in watery flocks,
Because it was spring and the birds had to come.
No doubt that soldiers had to be marching
And that drums had to be rolling, rolling, rolling.

Publicado pela primeira vez em Parts of a World (1942).
Transcrito de Wallace Stevens, Collected Poetry and Prose, The Library of America, 1996.

 

A foto que acompanha o artigo pertence a James Nachtwey. Foi feita por este no Sudão em 1993, e mostra uma vítima da fome.