
As palavras / cintilam / … / e o seu rumor / … / ágil e esquivo / como o vento / fala de amor / e solidão: / …
Com este fragmento de um poema de Carlos de Oliveira (1921-1981) abro uma curta visita à sua poesia.
Dormir / mas o sonho / repassa / duma insistente dor / a lembrança / da vida / …
Sonhos, memória, observação atenta da vida, tudo isto atravessa esta poesia contida, onde o peso da cada palavra é tal que por si só constitui frequentemente um verso.
É uma poesia fora de moda, nos antípodas dos detalhados relatos pessoais que agora são sucesso. Aqui, na poesia de Carlos de Oliveira, temos a palavra que liberta a imaginação do leitor, fazendo sua a experiência poética que lê, e com isso atingindo a intima emoção que a arte desencadeia.
Abro com o prodigioso poema Infância, contraste e síntese entre o tamanho dos sonhos que ela nos deixa, enormes como cedros, e o calor que no inverno da memória trazem, lenha / da melancolia.
Infância
Sonhos
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
este rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.
Passemos a um dos poemas transcritos a abrir:
Sono
Dormir
mas o sonho
repassa
duma insistente dor
a lembrança
da vida
água outra vez bebida
na pobreza da noite:
e assim perdido
o sono
o olvido
bates, coração, repetes
sem querer
o dia.
A escolha que segue, Soneto, dá conta da reflexão paralela entre a expressão poética do sentir,
…
o dicionário que me coube em sorte
folheei-o ao rumor do sofrimento:
…
e a adequação da palavra precisa à sua transmissão, permitindo no final a existência de poesia:
Rudes e breves as palavras pesam
mais do que as lajes ou a vida, tanto,
que levantar a torre do meu canto
é recriar o mundo pedra a pedra;
…
No resultado, surgem versos de beleza inexcedível, quais sejam:
…
ó palavras de ferro, ainda sonho
dar-vos a leve têmpera do vento.

Soneto
Rudes e breves as palavras pesam
mais do que as lajes ou a vida, tanto,
que levantar a torre do meu canto
é recriar o mundo pedra a pedra;
mina obscura e insondável, quis
acender-te o granito das estrelas
e nestes versos repetir com elas
o milagre das velhas pederneiras;
mas as pedras do fogo transformei-as
nas lousas cegas, áridas, da morte,
o dicionário que me coube em sorte
folheei-o ao rumor do sofrimento:
ó palavras de ferro, ainda sonho
dar-vos a leve têmpera do vento.
E quando o poema surge, vem numa espécie de milagre como em Tarde se lê:
…
quando vi
o poema organizado nas alturas
reflectir-se aqui,
em ritmos, desenhos, estruturas
duma sintaxe que produz
coisas aéreas como o vento e a luz.

Tarde
A tarde trabalhava
sem rumor
no âmbito feliz das suas nuvens,
conjugava
cintilações e frémitos,
rimava
as tênues vibrações
do mundo
quando vi
o poema organizado nas alturas
reflectir-se aqui,
em ritmos, desenhos, estruturas
duma sintaxe que produz
coisas aéreas como o vento e a luz.
No poema Vento, o mesmo estro poético mostra como as palavras cintilam ao falar de amor e solidão:
Vento
As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corsas perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão:
quem vos ferir
não fere em vão,
Entre tantos, mais alguns belos versos no Soneto da chuva:
…
aqueles versos de água onde os direi,
cansado como vou do teu cansaço?
…
Deixem chover as lágrimas que eu crio:
menos que chuva e lama nas estradas
és tu, poesia, meu amargo rio.

Soneto da chuva
Quantas vezes chorou no teu regaço
a minha infância, terra que eu pisei:
aqueles versos de água onde os direi,
cansado como vou do teu cansaço?
Virá abril de novo, até a tua
memória se fartar das mesmas flores
numa última órbita em que fores
carregada de cinza como a lua.
Porque bebes as dores que me são dadas,
desfeito é já no vosso próprio frio
meu coração, visões abandonadas.
Deixem chover as lágrimas que eu crio:
menos que chuva e lama nas estradas
és tu, poesia, meu amargo rio.
Da precisa lei da matéria: na natureza nada se cria, tudo se transforma, descoberta por Lavoisier, surge o poema com o nome do químico, dando conta que similmente,
Na poesia,
natureza variável
das palavras,
nada se perde
ou cria,
tudo se transforma:
cada poema,
no seu perfil
incerto
e caligráfico,
já sonha
outra forma.
Termino com Salmo, poema eivado de sabedoria:
A vida / é o bago de uva / macerado / nos lagares do mundo … a dor é vã / e o vinho / breve.
Salmo
A vida
é o bago de uva
macerado
nos lagares do mundo
e aqui se diz
para proveito dos que vivem
que a dor é vã
e o vinho
breve.

Poemas transcritos de Obras de Carlos de Oliveira, Editorial Caminho, Lisboa, 1992.
Vai o artigo acompanhado das imagens de pinturas de William Turner (1775-1851).
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