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RAFFAELLO Sanzio - encontro de raquel com jacob 1518-19SONETO de Jacob, pastor antigo,

— soneto de Rachel, serrana bela…

Oh quantas vezes o relembro e digo,

pensando em ti, como se foras ela!

 

Sirvo-me desta primeira quadra de um soneto de António Sardinha (1888-1925) para chegar às origens do relato do amor de homem por mulher na cultura ocidental, o que aconteceu por via do primeiro livro da Bíblia, Génesis. Não falo de Adão e Eva, pois essa é a história da necessidade biológica do sexo e do seu impulso irresistível quaisquer que sejam as consequências, mas da história de Jacob, e do que este aceita fazer para possuir a mulher que quer, neste caso a prima Raquel:

Para obter Raquel, Jacob trabalhou durante sete anos e, pelo amor que lhe tinha, aqueles sete anos pareceram-lhe apenas alguns dias.

 

Conta-se a história em Génesis, capítulo 29.

 

Génesis

29.15

Jacob já estava há um mês em casa de Labão, quando este lhe disse: “É certo que tu és meu parente. Mas até agora tens trabalhado para mim de graça. Diz-me que salário queres.”

29.16

Labão tinha duas filhas, a mais velha chamava-se Lia e a mais nova, Raquel.

29.17

Lia tinha uns olhos muito ternos. Mas Raquel era bonita e elegante.

29.18

Jacob gostava muito de Raquel e por isso respondeu: “Aceito trabalhar para ti, durante sete anos, para casar com Raquel a tua filha mais nova.”

29.19

Labão respondeu: “Está bem. É melhor casá-la contigo que casá-la com outro qualquer. Podes continuar em minha casa.”

29.20

Para obter Raquel, Jacob trabalhou durante sete anos e, pelo amor que lhe tinha, aqueles sete anos pareceram-lhe apenas alguns dias.

 

Camões sintetizou o caso num popular soneto:

 

Sete anos de pastor Jacob servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela;

mas não servia ao pai, servia a ela,

e a ela só por prémio pretendia.

 

Os dias na esperança de um só dia,

passava, contentando-se com vê-la;

porém o pai, usando de cautela,

em lugar de Raquel lhe dava Lia.

 

Vendo o triste pastor que com enganos

lhe fora assi negada a sua pastora,

como se a não tivesse merecida,

 

começa de servir outros sete anos,

dizendo: “Mais servira se não fora

para tão longo amor tão curta a vida”.

 

Como se vê pelo soneto, a coisa não correu como prometido, e o pai de Raquel começou por roer a corda.

Vejamos, pois, o que de facto aconteceu, com a continuação do relato bíblico:

 

29.21

Depois disse a Labão: “Dá-me a minha mulher, para eu casar com ela, pois já acabou o tempo combinado.”

29.22

Labão convidou toda a gente do lugar e ofereceu um banquete.

29.23

Mas à noite, em vez de Raquel, Labão levou Lia para o quarto dos noivos e foi com ela que Jacob dormiu.

29.24

Labão deu à sua filha Lia a escrava Zilpa, para ficar ao serviço dela.

29.25

Pela manhã, quando Jacob se deu conta de que era Lia foi reclamar a Labão: “Que é que me fizeste? Por amor de Raquel andei a trabalhar para ti. Porque é que me enganaste?”

29.26

Labão respondeu: “Cá na nossa terra não é costume casar a filha mais nova antes da mais velha.

29.27

Mas depois dos sete dias de lua de mel podemos dar-te também a outra em casamento, desde que te comprometas a trabalhar para mim outros sete anos mais.”

29.28

Jacob assim fez. Passaram os sete dias da lua de mel e Labão deu-lhe também a sua filha Raquel como esposa.

29.29

A Raquel, Labão deu Bilá, sua escrava, para ficar ao serviço dela.

29.30

Jacob dormiu também com Raquel e esta era a sua preferida. E durante mais sete anos Jacob ficou ao serviço de Labão.

 

Está assim elucidado o sucesso que levou ao soneto de Camões acima transcrito.

Aqui chegados talvez valha a pena conhecer a história desde o início, e como Jacob conheceu Raquel:

Génesis:

29.4

Jacob perguntou aos pastores: “Amigos, donde são?” E eles responderam: “Somos de Haran.”

29.5

Jacob perguntou de novo: “Por acaso conhecem Labão, descendente de Naor?” “Conhecemos, sim”, responderam eles.

29.6

Jacob perguntou ainda: “Ele está bem?” “Está sim. Olha! A filha dele, Raquel vem aí com o rebanho”, indicaram os pastores.

29.7

Jacob disse: “Ainda é bastante cedo. Ainda não é tempo de recolher o rebanho. Dêem-lhe de beber e levem-no outra vez a pastar,”

29.8

29.9

Enquanto estava a falar com eles, chegou Raquel com a ovelhas do seu pai, pois era ela a pastora

29.10

Ao ver Raquel filha do seu tio Labão, com o rebanho do seu tio, Jacob aproximou-se e retirou a pedra de cima do poço e deu água ao rebanho do seu tio Labão.

29.11

Depois saudou Raquel com um beijo e não pôde conter as lágrimas.

29.12

Jacob anunciou a Raquel que ele era parente do pai dela pois era filho de Rebeca. E ela foi a correr levar a notícia ao pai.

29.13

Labão ao ouvir falar do seu sobrinho, Jacob, correu ao encontro dele, abraçou-o, beijou-o e conduziu-o para sua casa. Jacob contou-lhe então tudo o que tinha acontecido.

29.14

E Labão exclamou: “Realmente tu és da minha própria familia.” E Jacob ficou em casa dele.

 

A imagem que abre o artigo mostra uma pintura de Rafael executada em 1518-19 dando conta do encontro entre Jacob e Raquel junto ao poço. Pela mesma época (1515-25) Palma Vecchio ilustrava como segue o beijo destes no poço (Génesis 29.11).

PALMA VECCHIO - O beijo de Raquel e Jacob 1515-25 a

Volto agora ao sonetos abertura onde António Sardinha (1888-1925), partindo de Camões, nos leva, não pela história bíblica, mas pelo desolado da sua existência na ausência da sua amada:

O que eu servira, p’ra viver contigo, / — tão doce, tão airosa e tão singela!

/ Assim, distante do teu rosto amigo, / em torturar-me a ausência se desvela!

E neste eterno retomar do já dito se tecem as voltas da poesia.

Deixo-o, leitor, com o soneto citado. À obra poética de António Sardinha volto outro dia.

 

Velho motivo

 

SONETO de Jacob, pastor antigo,

—soneto de Rachel, serrana bela…

Oh quantas vezes o relembro e digo,

pensando em ti, como se foras ela!

 

O que eu servira, p’ra viver contigo,

—tão doce, tão airosa e tão singela!

Assim, distante do teu rosto amigo,

em torturar-me a ausência se desvela!

 

E vou sofrendo a minha pena amarga,

—pena que não me deixa nem me larga,

bem mais cruel que a de Jacob pastor!

 

Rachel não era dele e sempre a via,

enquanto que eu não vejo, noite e dia

aquela que me tem por seu senhor!

 

Nota bibliográfica

 

A transcrição do episódio bíblico foi feita a partir de “a BÍBLIA para todos, edição literária“, editada por Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2009.

Na transcrição do episódio bíblico introduzi o número dos versículos, os quais não aparecem na edição citada onde o texto é corrido, por forma a permitir o seu cotejo com outras edições do texto.

Luís de Camões, Lírica Completa II, edição de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, Lisboa, 1980.

António Sardinha, Chuva da Tarde, sonetos de amor, Lvmen, Coimbra, 1923.

(Conservei a ortografia de Raquel e a maiúscula inicial em Soneto da edição original.)

Nota final

O relato bíblico da história de Jacob, Raquel e Lia mais as suas escravas, continua, fixando no texto sagrado uma situação poligâmica: decorrendo da incapacidade de Raquel para ter filhos por um lado, e dos ciúmes de Lia, por outro, Jacob acaba também por procriar com as escravas destas, Bilá e Zilpa.

Não sei como cristãos em geral, e António Sardinha, em particular, fervoroso católico que era, e certamente conhecedor do episódio bíblico, lidam com a legitimação da poligamia que o episódio explicitamente cauciona.