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Uma mulher espera por mim — um poema de Walt Whitman

29 Quinta-feira Nov 2018

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Alice Neel, Biblia, Walt Whitman

Entre adesão e controvérsia, a poesia de Walt Whitman (1819-1892) continua hoje, cento e cinquenta anos passados, a trazer ao leitor o confronto entre o sentir e a biologia, no que a abrir o poema Uma mulher espera por mim, este regista, a saber, o papel fundamental do sexo na vida de todos nós:

…
O sexo contém tudo, corpos, almas,
Intenções, provas, pureza, delicadeza, resultados, promulgações,
Canções, ordens, saúde, orgulho, mistério da maternidade, o leite seminal
Todas as esperanças, benefícios, concessões, todas as paixões, amores, belezas, delícias da terra,
Todos os governos, juízes, deuses, os que para nós são como ídolos
Tudo isto está contido no sexo como partes e justificações dele mesmo.
…

 

O indivíduo de quem Walt Whitman fala na sua obra poética é um ser ideal, encarnação e portador de um modelo de humanidade futura. E se o homem é o objecto da sua reflexão, fazendo a defesa das relações homoeróticas como condição da masculinidade viril, no poema Uma mulher espera por mim, a mulher surge numa situação de igualdade desde que preencha condições de virilidade:

…
Agora afasto-me das mulheres insensíveis
Irei ficar com aquela que me espera, e com aquelas mulheres que são quentes e suficientes para mim,
Vejo que elas me compreendem e não me recusam,
Vejo que elas me merecem, serei o marido robusto dessas mulheres.

Nelas nada é inferior a mim
Têm o rosto bronzeado pelos sóis brilhantes e pelos ventos que sopram
A sua carne tem a antiga elasticidade e força divinas
Sabem nadar, remar, montar, lutar, atirar, correr, combater, recuar, avançar, resistir, defender-se
São irevogáveis quanto aos próprios direitos — são calmas, claras, em plena posse de si mesmas.
…

 

No tom proclamatório de toda a poesia de Walt Whitman, este Uma mulher espera por mim é o poema genesíaco que cria a humanidade nova:

…
Sobre vós, enxerto os enxertos do que há de mais querido em mim e na América,
As gotas que destilo sobre vós farão crescer raparigas impetuosas e atléticas, novos artistas, músicos e cantores,
As crianças que gero em vós hão-de gerar, por sua vez, crianças,
Dos meus dispêndios amorosos exigirei homens e mulheres perfeitos,
Esperarei que eles se interpenetrem noutros como eu e vós nos interpenetramos agora,
…

 

Numa América penetrada pela leitura da Bíblia, é interessante confrontar esta visão darwiniana do cruzamento dos mais fortes conduzindo a uma humanidade melhor, e verificar em que extensão o “acessório biológico” que é a mulher no poema de Walt Whitman se afasta da visão da mulher proclamada no Provérbio 31 do Livro dos Provérbios.
No final do artigo transcrevo uma sua versão literária da Vulgata, para confronto.

Folhas de Erva, livro que reúne a produção poética essencial do autor, foi inicialmente publicado em 1855, e teve sucessivas revisões e adições.
A secção Filhos de Adão onde o poema Uma mulher espera por mim se integra, foi acrescentada à obra na edição de 1856, juntamente com a secção Cálamo.

Este poema, Uma mulher espera por mim, foi pretexto para a 6.ªedição do livro, em 1881-82 ser acusada de obscenidade.

 

Uma mulher espera por mim

Uma mulher espera por mim, tem tudo, nada lhe falta,
Todavia, tudo faltaria se o sexo faltasse, ou se a seiva do homem certo faltasse,

O sexo contém tudo, corpos, almas,
Intenções, provas, pureza, delicadeza, resultados, promulgações,
Canções, ordens, saúde, orgulho, mistério da maternidade, o leite seminal
Todas as esperanças, benefícios, concessões, todas as paixões, amores, belezas, delícias da terra,
Todos os governos, juízes, deuses, os que para nós são como ídolos
Tudo isto está contido no sexo como partes e justificações dele mesmo.

Sem vergonha o homem de quem gosto sabe e reconhece delícia do seu sexo
Sem vergonha a mulher de quem gosto sabe e reconhece a sua.

Agora afasto-me das mulheres insensíveis
Irei ficar com aquela que me espera, e com aquelas mulheres que são quentes e suficientes para mim,
Vejo que elas me compreendem e não me recusam,
Vejo que elas me merecem, serei o marido robusto dessas mulheres.

Nelas nada é inferior a mim
Têm o rosto bronzeado pelos sóis brilhantes e pelos ventos que sopram
A sua carne tem a antiga elasticidade e força divinas
Sabem nadar, remar, montar, lutar, atirar, correr, combater, recuar, avançar, resistir,    defender-se
São irevogáveis quanto aos próprios direitos — são calmas, claras, em plena posse de si mesmas.

Atraio-vos para mim, vós, mulheres,
Não posso deixar-vos partir, quero fazer-vos bem,
Sou para vós, e vós sois para mim, não só por nós, mas pelos outros,
Envoltos em vós dormem os maiores heróis e bardos
Recusam despertar ao contacto de qualquer homem que não seja eu.

Sou eu, vós, mulheres, que abro o caminho
Sou severo, amargo, grande, inflexível, mas amo-vos,
Não vos faço sofrer mais do que necessitais
Derramo o fluido para criar filhos e filhas que sirvam estes Estados, forço com um     músculo lento e rude
Torno-me duro com eficácia, surdo a quaisquer súplicas,
Não me atrevo a retirar sem depositar o que durante longo tempo se acumulou dentro de mim.

Através de vós esgotam-se os meus reprimidos rios,
Em vós venho guardar milhares de anos futuros
Sobre vós, enxerto os enxertos do que há de mais querido em mim e na América,
As gotas que destilo sobre vós farão crescer raparigas impetuosas e atléticas, novos artistas, músicos e cantores,
As crianças que gero em vós hão-de gerar, por sua vez, crianças,
Dos meus dispêndios amorosos exigirei homens e mulheres perfeitos,
Esperarei que eles se interpenetrem noutros como eu e vós nos interpenetramos agora, Contarei com os frutos das suas exuberantes bátegas como conto com os frutos das minhas exuberantes bátegas agora derramadas.
Procurarei colheitas de amor a partir dos nascimentos, da vida, da morte, da imortalidade que com tanta ternura agora planto.

Tradução de Maria de Lourdes Guimarães
in Walt Whitman, Folhas de Erva, vol 1, Relógio d’Água, Lisboa, 2002.
O poema original encontra-se facilmente na internet.

 

Livro dos Provérbios
Provérbio 31
Versículos 10-31

Mulher exemplar não é fácil de encontrar;
ela vale muito mais que as jóias!
O seu marido confia inteiramente nela,
não lhe faltando com nada.
Ela só lhe dá satisfação e nunca desgostos,
todos os dias da sua vida.
Ela procura lã e linho
e trabalha de boa vontade com as suas mãos.
Tal como um navio mercante,
ela traz as suas provisões de muito longe.
Levanta-se antes de romper o dia,
prepara de comer para a família
e distribui as tarefas pelas suas criadas.
Examina um terreno e compra-o
e planta uma vinha com o produto do trabalho.
Põe-se ao trabalho com toda a energia;
os seus braços nunca estão parados.
Vigia bem os seus negócios;
durante a noite, a sua lâmpada mantém-se acesa.
As suas mãos trabalham com a roca de fiar
e os seus dedos, com o fuso.
Estende a mão segura aos infelizes
e é generosa para com os pobres.
Não receia a neve para os seus familiares,
porque todos eles trazem roupa suficiente.
Ela faz as suas próprias mantas
e os tecidos de linho e púrpura com que se veste.
O seu marido é conhecido e considerado na assembleia,
quando toma assento no conselho dos anciãos da terra.
Ela faz tecidos de linho fino para vender
e fornece cintos aos mercadores.
Reveste-se de força e dignidade
e sorri a pensar no futuro.
Fala sempre com sabedoria
e dá concelhos com bondade.
Vigia tudo o que se passa na sua casa
e não prova o pão da ociosidade.
Os seus filhos levantam-se para a felicitar
e o seu marido, para a elogiar:
“Muitas mulheres foram exemplares,
 mas tu és a melhor de todas.”
Encantos são enganos e beleza é ilusão,
mas uma mulher que respeita o SENHOR é digna de elogio.
Recompensem-na com o fruto das suas mãos
e louvem-na diante da assembleia pelo seu trabalho.

in a BÍBLIA para todos, edição literária, edição Temas e Debates e Circulo de Leitores, Lisboa, 2009.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura, Auto-retrato, de Alice Neel (1900-1984), realizada em 1980. A pintura integra a colecção da National Portrait Gallery de Washington.
Confrontar vigor, beleza física ideal, e humanidade no tempo, é o propósito de associar esta imagem ao artigo.
O papel da arte é também o de nos levar a sensibilidade ao encontro do pensamento.

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Em torno ao Livro de Rute

28 Segunda-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Biblia, Else Lasker-Schüler, Gabriela Mistral, Livro de Rute, Poussin

Não sou conhecedor da Bíblia e muito menos um seu exegeta. Passeio por lá a espaços como por um livro de sabedoria. Paro muitas vezes no Livro de Rute, a história de uma mulher, ou antes uma história da mulher.

No Livro de Rute conta-se a história de Rute, estrangeira, viúva em terra do marido que morreu. Fez-se à vida, encontrou os homens, encontrou o homem a quem se entregou, e de quem recebeu o que procurava. É essa a história no seu essencial. Sendo embora uma história com valores, o bem e o mal surgem um pouco esbatidos, e quando o questionamento se coloca, são muitas as perguntas embaraçosas para a moral dos nossos dias.

Calo-me agora e deixo-vos com o que aconteceu, numa versão poética da sua parte final :

Agora não se diga mais entre nós “deixa-me”,
e nenhum dos nossos corações se afaste.
Eu irei para onde fores
e da tua morada faço também a minha.
Os teus irmãos e companheiros hoje recebo como meus,
o Deus da tua juventude, eu o amo profundamente.
E quando por fim a morte nos visitar
quero morrer na terra em que morreres
e ser sepultada perto de ti

O Senhor sabe: a vida me tratará com tristes rigores
se outra coisa que não a morte
esconda de meus olhos a graça do teu rosto
tão amado.
Tradução de José Tolentino de Almeida

O de Rute, é um destino de controvérsia há séculos, tal como contado neste livro de exemplos.

A peculiar forma como o casamento aqui é tratado, exigindo piruetas de interpretação para a fazer caber na indissolubilidade dos laços conjugais prosseguido pela igreja católica, não ajudou à sua leitura pacífica nas sociedades que a seguem, como a nossa.

Conta para a peculiaridade do Livro de Rute o exemplo de maternidade protagonizada pela sogra de Rute, Naomi, que a acolhe quando viúva, a aconselha sobre os homens, e mais tarde recebe como de sua família o filho de Rute e do novo marido, Boaz.

Temos em Rute o exemplo de uma Mulher que não se resigna à crueldade do destino, faz-se à vida e encontra de novo o homem com quem seguirá o resto do caminho.

Esta é uma história de integração social depois de ser uma história de integração familiar. A estrangeira, além do mais já “maculada” por um casamento, integra-se num clã onde é respeitada como igual. Como estamos afastados de praticas hindus em que a viúva era condenada a morrer com o marido na pira funerária.

É esta inclusão espelho de igual dignidade entre humanos. O caminho para integrar na nossa vida a dignidade humana tem sido longo, e o mais preocupante é não ser um valor adquirido pela humanidade, essa dignidade. A barbárie, a ganância, espreitam na esquina de qualquer distracção.

Esta simbólica mulher, Rute, tocou a imaginação poética de alguns e aqui vos deixo, primeiro um poema de Gabriela Mistral (1889-1957), no original em espanhol, onde se relata o encontro de Rute no caminho para a sua nova vida.

Ruth

I
Ruth moabita a espigar va a las eras,
aunque no tiene ni un campo mezquino.
Piensa que es Dios dueño de las praderas
y que ella espiga en un predio divino.

El sol caldeo su espalda acuchilla,
baña terrible su dorso inclinado;
arde de fiebre su leve mejilla,
y la fatiga le rinde el costado.

Booz se ha sentado en la parva abundosa.
El trigal es una onda infinita,
desde la sierra hasta donde él reposa,

que la abundancia ha cegado el camino…
Y en la onda de oro la Ruth moabita
viene, espigando, a encontrar su destino.

II
Booz miró a Ruth, y a los recolectores.
Dijo: “Dejad que recoja confiada”…
Y sonriendo los espigadores,
viendo del viejo la absorta Mirada…

Eran sus barbas dos sendas de flores,
su ojo dulzura, reposo el semblante;
su voz pasaba de alcor en alcores,
pero podía dormir a un infante…

Ruth lo miró de la planta a la frente,
y fue sus ojos saciados bajando,
como el que bebe en inmensa corriente…

Al regressar a la aldea, los mozos
que ella encontró la miraron temblando.
Pero en su sueño Booz fue su esposo…

III
Y aquella noche el patriarca en la era
viendo los astros que laten de anhelo,
recordó aquello que a Abraham prometiera
Jeová: más hijos que estrellas dio al cielo.

Y suspiró por su lecho baldío,
rezó llorando, e hizo sitio en la almohada
para la que, como baja el rocío,
hacia él vendría en la noche callada.

Ruth vio en los astros los ojos con llanto
de Booz llamándola, y estremecida,
dejó su lecho, y se fue por el campo…

Dormía el justo, hecho paz e belleza.
Ruth, más callada que espiga vencida,
puso en el pecho de Booz su cabeza.

Segue-se, para terminar, uma das baladas hebraicas de Else Lasker-Schüler (1869-1945) sobre Rute,3, em tradução de João Barrento.

Rute

E tu vens procurar-me às sebes
Oiço o soluçar dos teus passos
E os meus olhos são pesadas gotas escuras.

Na minha alma nascem as flores doces
Do teu olhar e ele enche-se
Quando os meus olhos se exilam para o sono.

Na minha terra,
Junto ao poço está um anjo:
Canta a canção do meu amor,
Canta a canção de Rute.

Estes poemas, ainda que muito belos, não esgotam de forma alguma os quatro capítulos do Livro de Rute, que integra o Antigo Testamento, e é, todo ele, um poema a justificar visita recorrente.

Para os leitores com curiosidade pela leitura do Livro de Rute, sugiro que procurem uma edição da Biblia, em tradução directa do hebraico, em detrimento da versão traduzida a partir da Vulgata Latina, e muito menos uma comentada versão por quaisquer padres da Igreja.

Nota Final

Este artigo foi inicialmente publicado aqui no blog em 23 de Outubro de 2012 e agora trazido outra vez ao encontro de novos leitores,

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Sete anos de pastor Jacob servia — Génesis, Camões e António Sardinha

20 Quarta-feira Jan 2016

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poetas e Poemas

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António Sardinha, Biblia, Camões, Génesis, Rafael

RAFFAELLO Sanzio - encontro de raquel com jacob 1518-19SONETO de Jacob, pastor antigo,

— soneto de Rachel, serrana bela…

Oh quantas vezes o relembro e digo,

pensando em ti, como se foras ela!

 

Sirvo-me desta primeira quadra de um soneto de António Sardinha (1888-1925) para chegar às origens do relato do amor de homem por mulher na cultura ocidental, o que aconteceu por via do primeiro livro da Bíblia, Génesis. Não falo de Adão e Eva, pois essa é a história da necessidade biológica do sexo e do seu impulso irresistível quaisquer que sejam as consequências, mas da história de Jacob, e do que este aceita fazer para possuir a mulher que quer, neste caso a prima Raquel:

Para obter Raquel, Jacob trabalhou durante sete anos e, pelo amor que lhe tinha, aqueles sete anos pareceram-lhe apenas alguns dias.

 

Conta-se a história em Génesis, capítulo 29.

 

Génesis

29.15

Jacob já estava há um mês em casa de Labão, quando este lhe disse: “É certo que tu és meu parente. Mas até agora tens trabalhado para mim de graça. Diz-me que salário queres.”

29.16

Labão tinha duas filhas, a mais velha chamava-se Lia e a mais nova, Raquel.

29.17

Lia tinha uns olhos muito ternos. Mas Raquel era bonita e elegante.

29.18

Jacob gostava muito de Raquel e por isso respondeu: “Aceito trabalhar para ti, durante sete anos, para casar com Raquel a tua filha mais nova.”

29.19

Labão respondeu: “Está bem. É melhor casá-la contigo que casá-la com outro qualquer. Podes continuar em minha casa.”

29.20

Para obter Raquel, Jacob trabalhou durante sete anos e, pelo amor que lhe tinha, aqueles sete anos pareceram-lhe apenas alguns dias.

 

Camões sintetizou o caso num popular soneto:

 

Sete anos de pastor Jacob servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela;

mas não servia ao pai, servia a ela,

e a ela só por prémio pretendia.

 

Os dias na esperança de um só dia,

passava, contentando-se com vê-la;

porém o pai, usando de cautela,

em lugar de Raquel lhe dava Lia.

 

Vendo o triste pastor que com enganos

lhe fora assi negada a sua pastora,

como se a não tivesse merecida,

 

começa de servir outros sete anos,

dizendo: “Mais servira se não fora

para tão longo amor tão curta a vida”.

 

Como se vê pelo soneto, a coisa não correu como prometido, e o pai de Raquel começou por roer a corda.

Vejamos, pois, o que de facto aconteceu, com a continuação do relato bíblico:

 

29.21

Depois disse a Labão: “Dá-me a minha mulher, para eu casar com ela, pois já acabou o tempo combinado.”

29.22

Labão convidou toda a gente do lugar e ofereceu um banquete.

29.23

Mas à noite, em vez de Raquel, Labão levou Lia para o quarto dos noivos e foi com ela que Jacob dormiu.

29.24

Labão deu à sua filha Lia a escrava Zilpa, para ficar ao serviço dela.

29.25

Pela manhã, quando Jacob se deu conta de que era Lia foi reclamar a Labão: “Que é que me fizeste? Por amor de Raquel andei a trabalhar para ti. Porque é que me enganaste?”

29.26

Labão respondeu: “Cá na nossa terra não é costume casar a filha mais nova antes da mais velha.

29.27

Mas depois dos sete dias de lua de mel podemos dar-te também a outra em casamento, desde que te comprometas a trabalhar para mim outros sete anos mais.”

29.28

Jacob assim fez. Passaram os sete dias da lua de mel e Labão deu-lhe também a sua filha Raquel como esposa.

29.29

A Raquel, Labão deu Bilá, sua escrava, para ficar ao serviço dela.

29.30

Jacob dormiu também com Raquel e esta era a sua preferida. E durante mais sete anos Jacob ficou ao serviço de Labão.

 

Está assim elucidado o sucesso que levou ao soneto de Camões acima transcrito.

Aqui chegados talvez valha a pena conhecer a história desde o início, e como Jacob conheceu Raquel:

Génesis:

29.4

Jacob perguntou aos pastores: “Amigos, donde são?” E eles responderam: “Somos de Haran.”

29.5

Jacob perguntou de novo: “Por acaso conhecem Labão, descendente de Naor?” “Conhecemos, sim”, responderam eles.

29.6

Jacob perguntou ainda: “Ele está bem?” “Está sim. Olha! A filha dele, Raquel vem aí com o rebanho”, indicaram os pastores.

29.7

Jacob disse: “Ainda é bastante cedo. Ainda não é tempo de recolher o rebanho. Dêem-lhe de beber e levem-no outra vez a pastar,”

29.8

…

29.9

Enquanto estava a falar com eles, chegou Raquel com a ovelhas do seu pai, pois era ela a pastora

29.10

Ao ver Raquel filha do seu tio Labão, com o rebanho do seu tio, Jacob aproximou-se e retirou a pedra de cima do poço e deu água ao rebanho do seu tio Labão.

29.11

Depois saudou Raquel com um beijo e não pôde conter as lágrimas.

29.12

Jacob anunciou a Raquel que ele era parente do pai dela pois era filho de Rebeca. E ela foi a correr levar a notícia ao pai.

29.13

Labão ao ouvir falar do seu sobrinho, Jacob, correu ao encontro dele, abraçou-o, beijou-o e conduziu-o para sua casa. Jacob contou-lhe então tudo o que tinha acontecido.

29.14

E Labão exclamou: “Realmente tu és da minha própria familia.” E Jacob ficou em casa dele.

 

A imagem que abre o artigo mostra uma pintura de Rafael executada em 1518-19 dando conta do encontro entre Jacob e Raquel junto ao poço. Pela mesma época (1515-25) Palma Vecchio ilustrava como segue o beijo destes no poço (Génesis 29.11).

PALMA VECCHIO - O beijo de Raquel e Jacob 1515-25 a

Volto agora ao sonetos abertura onde António Sardinha (1888-1925), partindo de Camões, nos leva, não pela história bíblica, mas pelo desolado da sua existência na ausência da sua amada:

O que eu servira, p’ra viver contigo, / — tão doce, tão airosa e tão singela!

/ Assim, distante do teu rosto amigo, / em torturar-me a ausência se desvela!

E neste eterno retomar do já dito se tecem as voltas da poesia.

Deixo-o, leitor, com o soneto citado. À obra poética de António Sardinha volto outro dia.

 

Velho motivo

 

SONETO de Jacob, pastor antigo,

—soneto de Rachel, serrana bela…

Oh quantas vezes o relembro e digo,

pensando em ti, como se foras ela!

 

O que eu servira, p’ra viver contigo,

—tão doce, tão airosa e tão singela!

Assim, distante do teu rosto amigo,

em torturar-me a ausência se desvela!

 

E vou sofrendo a minha pena amarga,

—pena que não me deixa nem me larga,

bem mais cruel que a de Jacob pastor!

 

Rachel não era dele e sempre a via,

enquanto que eu não vejo, noite e dia

aquela que me tem por seu senhor!

 

Nota bibliográfica

 

A transcrição do episódio bíblico foi feita a partir de “a BÍBLIA para todos, edição literária“, editada por Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2009.

Na transcrição do episódio bíblico introduzi o número dos versículos, os quais não aparecem na edição citada onde o texto é corrido, por forma a permitir o seu cotejo com outras edições do texto.

Luís de Camões, Lírica Completa II, edição de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, Lisboa, 1980.

António Sardinha, Chuva da Tarde, sonetos de amor, Lvmen, Coimbra, 1923.

(Conservei a ortografia de Raquel e a maiúscula inicial em Soneto da edição original.)

Nota final

O relato bíblico da história de Jacob, Raquel e Lia mais as suas escravas, continua, fixando no texto sagrado uma situação poligâmica: decorrendo da incapacidade de Raquel para ter filhos por um lado, e dos ciúmes de Lia, por outro, Jacob acaba também por procriar com as escravas destas, Bilá e Zilpa.

Não sei como cristãos em geral, e António Sardinha, em particular, fervoroso católico que era, e certamente conhecedor do episódio bíblico, lidam com a legitimação da poligamia que o episódio explicitamente cauciona.

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Susana e os velhos ou o triunfo da virtude sobre a calúnia

15 Sábado Dez 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte

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Biblia, Livro de Daniel

Alessandro ALLORI

As história mitológicas e sacras permitiram, sem escândalo das consciências, a inclusão de nus femininos na pintura europeia dos séculos XVI e XVII.
Hoje a história que me trás, e foi pretexto de belas obras de arte, é a de Susana, contada na Bíblia, no Livro de Daniel, Capítulo 13, e considerada apócrifa por Protestantes, ainda que os Católicos a aceitem.
Susana, chantageada por dois velhos que a observavam nua no banho, exigindo-lhe que com eles tivesse relações sexuais, recusou. Falsamente acusada, foi condenada à morte. O aparecimento de Daniel a mando de Deus, ao questionar os juizes sobre a fiabilidade da acusação, permitiu conhecer o falso testemunho dos acusadores e salvar Susana da morte.

À parte as questões morais de falso testemunho e do seu móbil, o episódio dá conta da evidência do desejo sexual até bem entrada a velhice, coisa que as nossas sociedades, hoje, tendem a escamotear, o os próprios têm pudor muitas vezes em assumir.

As pinturas escolhidas mostram o momento do assédio dos velhos à bela e jovem Susana relatado no episódio bíblico como segue:

17    [Susana]Disse às jovens: «Trazei-me óleo e unguentos e fechai as por­tas do jardim, para eu tomar banho.»
18    Fizeram o que ela tinha mandado e, tendo fechado as portas do jar­dim, saíram pela porta tra­seira, para irem procurar o que lhes tinha sido pedido; não sabiam que os anciãos estavam lá escondidos.
19    Logo que elas saíram, os dois homens precipitaram-se para junto de Susana
20    e disseram-lhe: «As por­tas do jardim estão fechadas, nin­guém nos vê. Nós ardemos de desejo por ti. Aceita e entrega-te a nós.
21    Se não quiseres, vamos denunciar-te. Di­­re­­­mos que um rapaz estava con­tigo e que foi por isso mesmo que tu man­daste embora as criadas.»
22    Su­sana bradou angustiada: «Estou su­jeita a aflições de todos os lados! Se faço isso, é para mim a morte. Se não o faço, nem mesmo assim vos escapa­rei.
23    Mas é preferível para mim cair em vossas mãos sem ter feito nada, do que pecar aos olhos do Se­nhor.»

É uma instrutiva ocupação degustar a forma como surgem pintadas as mais diversas reacções de Susana ao assédio de que é alvo, dando com isso conta de como a pintura evoluiu da beleza formal de Tintoretto à expressão emocional em Van Dick, no quase século que estas pinturas percorrem.

GENTILESCHI, Artemisia 1610Artemisia GENTILESCHI – 1610

TINTORETTO 1555TINTORETTO – 1555

BADALOCCHIO, Sisto 1609Sisto BADALOCCHIO – 1609

RENI, Guido 1620Guido RENI – 1620

REMBRANDT Harmenszoon van Rijn 1647 detalheREMBRANDT – 1647 (detalhe)

Seguem-se 3 Susanas por Rubens, em 1608, 1610, 1611 respectivamente.

RUBENS, Peter Paul 1608

RUBENS, Peter Paul 1610

RUBENS, Peter Paul 1611

Termino com esta obra-prima de Sir Anthony Van Dyck, onde a cena bíblica ganha a espessura de realidade quotidiana no misto de recusa e medo em Susana e na segurança de autoridade dos velhos, na imposição da vontade.

DYCK, Sir Anthony van 1621

À falta de uma tradução literal do texto, incluo a seguir a versão católica da história de Susana, constante da chamada Bíblia dos Capuchinhos, permitindo o seu conhecimento a quem o não possua.

Inocência de Susana
1    Ha­via um homem chamado Joa­q­uim, que habitava na Babilónia.
2    Ti­­nha desposado uma mulher de nome Susana, filha de Hilquias, mui­­t­­o bela e piedosa para com o Senhor,
3    pois tinha sido educada pelos pais, que eram justos, de har­monia com a Lei de Moisés. 4    Joa­quim era muito rico. Contíguo à sua casa, tinha um pomar; e com frequência se reuniam em casa dele os judeus, pois que entre todos os seus compatriotas gozava de parti­cular consideração.
5    Tinham sido nomeados juízes, naquele ano, dois anciãos do povo. A eles justamente se aplicava a pala­vra do Senhor: «A iniquidade veio da Babilónia, de anciãos e juízes, que passavam por dirigir o povo.»
6    Estas duas personagens frequenta­vam a casa de Joaquim, onde vi­nham pro­curá-los todos os que tinham qual­quer contenda.
7    À hora do meio-dia, quando toda esta gente se tinha reti­rado, Susana ia passear para o jar­dim do marido.
8    Os dois anciãos viam-na todos os dias, por ocasião do passeio, de maneira que a sua paixão se acendeu por ela.
9    Perde­ram a justa noção das coisas, afastaram os olhos para não olha­rem para o céu e não se lembrarem da verdadeira regra de conduta.
10    Os dois consumiam-se de pai­xão por Susana, mas sem contarem um ao outro a sua própria emoção.
11    Ti­nham vergonha de, reciprocamente, comu­ni­ca­rem o desejo que os domi­nava de a possuírem.
12    Todos os dias, inquie­tos, procuravam ocasião para a obser­var.
13    Uma vez, disseram um ao outro: «Vamos para casa, pois é a hora de almoçar.» Saíram cada um por seu lado.
14    Mas voltaram os dois atrás e encontraram-se num mesmo lugar. Ao interrogarem-se mutua­mente sobre o motivo do regresso, conf­essaram um ao outro o seu desejo. Combinaram, então, um mo­mento em que pudes­sem encon­trar Susana só. Eles estuda­vam a oca­sião propícia.
15    Um dia, como de costume, che­gou Susana, acompanhada apenas por duas criadas, e preparava-se para tomar banho no jardim, pois fazia calor.
16    Não havia aí ninguém senão os dois anciãos que, escondi­dos, a es­piavam.
17    Disse às jovens: «Trazei-me óleo e unguentos e fechai as por­tas do jardim, para eu tomar banho.»
18    Fizeram o que ela tinha mandado e, tendo fechado as portas do jar­dim, saíram pela porta tra­seira, para irem procurar o que lhes tinha sido pedido; não sabiam que os anciãos estavam lá escondidos.
19    Logo que elas saíram, os dois homens precipitaram-se para junto de Susana
20    e disseram-lhe: «As por­tas do jardim estão fechadas, nin­guém nos vê. Nós ardemos de desejo por ti. Aceita e entrega-te a nós.
21    Se não quiseres, vamos denunciar-te. Di­­re­­­mos que um rapaz estava con­tigo e que foi por isso mesmo que tu man­daste embora as criadas.»
22    Su­sana bradou angustiada: «Estou su­jeita a aflições de todos os lados! Se faço isso, é para mim a morte. Se não o faço, nem mesmo assim vos escapa­rei.
23    Mas é preferível para mim cair em vossas mãos sem ter feito nada, do que pecar aos olhos do Se­nhor.»
24    Susana, então, soltou altos gri­tos e os dois an­ciãos gritaram tam­bém com ela.
25    E um deles, cor­rendo para as portas do jardim, abriu-as.
26    As pessoas da casa, ao ouvirem esta gritaria, precipitaram-se pela porta traseira para ver o que tinha acontecido.
27    Logo que os anciãos falaram, os criados coraram de ver­go­nha, pois jamais se tinha dito coisa semelhante de Susana.
28    No dia se­guinte, os dois anciãos, dominados pelo desejo criminoso contra a vida de Susana, vieram à reunião que ti­nha lugar em casa de Joaquim, seu marido.
29    Disseram diante de toda a gente: «Que se vá procurar Susana, filha de Hilquias, a mulher de Joa­quim!» Foram procurá-la.
30    E veio com os seus pais, os filhos e os mem­bros da sua família.
31    Susana era de fi­gura delicada e bela de rosto.
32    Por­que estava velada, estes ho­mens per­ver­s­­os, para ao menos se saciarem com a sua beleza, exigiram que levantasse o véu.
33    Choravam todos os seus, ass­im como todos os que a conheciam.

Susana acusada pelos anciãos  
34    Os dois anciãos levantaram-se diante de todo o povo e puseram a mão sobre a cabeça de Susana,
35    en­quanto ela, desfeita em lágrimas, mas de coração cheio de confiança no Senhor, olhava para o céu.
36    Dis­s­eram então os anciãos: «Quando pas­seávamos a sós pelo jardim, entrou ela com duas criadas; e depois de ter fechado as portas, mandou embora as criadas.
37    Então, um jovem, que estava lá escondido, aproximou-se e pecou com ela. 38    Encontrávamo-nos a um canto do jardim. Perante seme­lhante atrevimento, corremos para eles e surpreendemo-los em flagran­te delito.
39    Não pudemos ter mão no rapaz, porque era mais forte do que nós, abriu a porta e escapou-se.
40    A ela apanhámo-la; mas, quando a in­terrogámos para saber quem era esse rapaz, 41    recusou responder-nos. Somos testemunhas disto.»
Dando crédito a estes homens, que eram anciãos e juízes do povo, a assembleia condenou Susana à mor­te.
42    Esta, então, em altos brados dis­se: «Deus eterno, que sondas os segre­dos, que conheces os acontecimentos antes que se dêem,
43    Tu sabes que proferiram um falso testemunho con­tra mim. Vou morrer sem ter feito nada daquilo que maldosamente inventaram contra mim.»

Daniel defende a casta Susana  
44    Deus ouviu a sua oração.
45    Quando a conduziam para a morte, o Senhor despertou a alma límpida de um rapa­zinho, chamado Daniel,
46    que gritou com voz forte: «Estou inocente da morte dessa mulher!»
47    Toda a gente se voltou para ele e disse: «Que é que isso quer dizer?»
48    E, diri­gindo-se para o meio deles, afirmou: «Israe­l­­i­tas! Estais loucos, para con­de­nardes uma filha de Israel, sem examinar­des nem reconhecerdes a verdade?
49    Reco­meçai o julgamento, porque é um falso testemunho o que estes dois homens declararam con­tra ela.»
50    O povo apressou-se a voltar. Os an­­ciãos disseram a Daniel: «Vem, senta-te no meio de nós e esclarece-nos, porque Deus te deu maturi­dade!»
51    Bradou Daniel: «Separai-os para longe um do outro e eu os jul­garei.»
52    Separaram-nos. Daniel, então, chamou o primeiro e disse-lhe: «Ve­lho perverso! Eis que se manifestam agora os pecados que cometeste ou­trora em julgamentos injustos,
53    ao condenares os inocentes, absolvendo os culpados, quando o Senhor disse: ‘Não farás com que morra o inocente ou o justo.’
54    Vamos! Se realmente os viste, diz-nos debaixo de que árvore os viste entreterem-se um com o outro.»
«Sob um lentisco.» – respondeu.
55    Retorquiu Daniel: «Pois bem! Aí está a mentira, que pagarás com a tua cabeça. Eis que o anjo do Se­nhor, conforme a sentença divina, te vai rachar a meio!»
56    Afastaram o homem, e Daniel mandou vir o outro e disse-lhe: «Tu és um filho de Canaã e não um judeu. Foi a beleza que te seduziu e a pai­xão que te per­verteu.
57    É assim que sem­pre tendes procedido com as filhas de Israel, que, por medo, entravam em relação convosco. Uma filha de Judá, porém, não consentiu na vossa perversi­dade.
58    Vamos, diz-me: sob que árvore os surpreendeste em ati­tude de se uni­rem?»
«Sob um carvalho.»
59    Respon­deu Daniel: «Pois bem! Também tu forjaste uma mentira que te vai cus­tar a vida. Eis que o anjo do Senhor, de espada em punho, se dispõe a cortar-te ao meio, para vos aniqui­lar.»
60    Logo a multidão deu grandes bra­dos, e bendizia a Deus que salva os que põem nele a sua esperança.
61    Toda a gente, então, se insurgiu contra os dois anciãos que Daniel tinha convencido de falso testemu­nho, pelas suas próprias declarações e deu-se-lhes o mesmo tratamento que eles tinham infligido ao seu pró­ximo.
62    De harmonia com a Lei de Moisés, mataram-nos. Deste modo, foi poupada naquele dia uma vida ino­c­ente.
63    Hilquias e sua esposa louvaram a Deus por sua filha, Susana, com Joaquim, esposo dela, e todos os pa­rentes, pois não tinham encontrado qualquer desonestidade na sua con­duta.
64    Daniel, daí em diante, gozou de elevada consideração entre os com­patriotas.

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Anunciação e Advento – A Palavra da Biblia e a pintura ocidental

10 Segunda-feira Dez 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Biblia, S. Lucas

MASTER of Heiligenkreuz 1410Vou hoje ao encontro daqueles pesquisadores da net sobre o Advento, que os motores de busca enviam para o blog, e onde sobre o assunto pouco há.

As religiões cristãs celebraram no primeiro domingo de Dezembro, o inicio do Advento, ou a esperada vinda de Jesus à terra, que ocorrerá com o Natal, nascimento de seu significado.

A expectativa desta chegada, fixada no calendário litúrgico para as quatro semanas que antecedem o Natal, liga-se indissociavelmente ao anúncio feito a Maria pelo Anjo Gabriel, de que iria ser mãe do Filho de Deus, acontecimento conhecido como Anunciação.

Desde que consumada a divisão de cristãos entre católicos e as diferentes confissões reformadas, se para os católicos romanos a Anunciação se celebra a 25 de Março (com pequenas variações em função do período de Quaresma), nove meses antes do nascimento do Filho de Deus, para os seguidores da religião cristã reformada a omnipotência de Deus não exige esta duração, e as celebrações acabam por se confundir, associando-se Anunciação e Advento.

Na verdade, com a fixação dogmática pela Igreja Católica do dia 8 de Dezembro como celebração da Imaculada Concepção, as datas deste calendário acabam por criar alguma confusão ao leigo.

Nada nos Evangelhos permite uma calendarização, o que é natural, e em S. Lucas,I, 26:38, onde a Anunciação se relata na forma mais detalhada, estas questões de calendário não se colocam. Terão sido, talvez, necessidades de organização da pratica do culto a ditá-lo.

Aproveito e transcrevo a tradução da passagem de Lucas, I, 26:38, por João Ferreira Annes d’Almeida (primeiro tradutor da Bíblia para português no século XVI), na fixação do texto levada a cabo por José Tolentino Mendonça.

Lucas,I, 26:38

26 E no sexto mês foi o Anjo Gabriel enviado de Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré:

27. A uma virgem desposada com um varão, cujo nome era José, da casa de David; e o nome da virgem era Maria.

28. E entrando o Anjo a ela, disse: Gozo hajas em graça aceita, o Senhor [é] contigo, bendita tu entre as mulheres.

29. E vendo[-o] ela, turbou-se muito de suas palavras, e considerava que saudação seria esta.

30. E disse-lhe o Anjo: Maria, não temas, porque achaste graça diante de Deus.

31. E vês aqui conceberás em o ventre, e parirás um filho, e chamarás seu nome Jesus.

32. Este será grande, e Filho do Altíssimo será chamado; E dar-lhe-á o Senhor Deus o trono de David seu pai.

33. E reinará em a casa de Jacob eternamente, e de seu Reino não haverá fim.

34. E disse Maria ao Anjo: Como se fará isto? Porquanto varão não conheço.

35. E respondendo o Anjo, disse-lhe: O Espirito Santo sobre ti virá, e a virtude do Altíssimo com sua sombra te cobrirá. Pelo que também o Santo que de ti há-de nascer, Filho de Deus chamado será.

36. E vês aqui Elisabeth tua prima também tem concebido um filho em sua velhice; e este é o sexto mês daquela, que a estéril chamada era.

37. Porque nenhuma coisa será a Deus impossível.

38. Entonces disse Maria: Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo tua palavra. E o Anjo se partiu dela.

Este passo dos Evangelhos foi largamente glosado na pintura ocidental. Seguem as imagens de uma escolha pessoal entre algumas das mais tocantes dessas obras e, porventura, menos conhecidas.

Mestre Alemão desconhecido 1330

Fra Fillipo Lippi 2

Irmãos Limbourg - Anunciação - 1410-16

Simone Martini 1333

FRANCESCO DI SIMONE DA SANTACROCE 1504

Book of Hours of Marie of Guelders Annunciation 1415

É hoje conhecimento apenas de especialistas a clara significação de cada um dos motivos que preenchendo o cenário, quadra os protagonistas desta história sacra. Entre outros, permanece para mim inexplicado o motivo porque em todas estas pinturas Maria se encontra a ler, ou com um livro aberto por perto, no momento da aparição do Anjo. Haverá algum leitor que o elucide?

 

 

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