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Camões – Canto IX de Os Lusíadas (fragmento)

07 Terça-feira Ago 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Camões, Hieronymous Bosch

Embora os leitores possam conhecer a aventura de Leonardo, soldado bem disposto, na Ilha dos Amores, narrada por Camões no Canto IX de Os Lusíadas, não resisto à sua transcrição.

O poeta dá conta em detalhada descrição, de como se desenvolveu o encontro entre Leonardo, soldado da armada de Vasco da Gama e a ninfa Efire quando para repouso e prémio dos valorosos marinheiros,

De longe a Ilha viram, fresca e bela, / Que Vénus pelas ondas lha levava

Ficou esta ilha conhecida por Ilha dos amores e os seus encantos descreve-os o poeta a partir da estrofe 52 do Canto IX.

Acompanhamos o detalhe da natureza na descrição do poeta, de que destaco

Os fermosos limões ali, cheirando, / Estão virgíneas tetas imitando.

Depois da descrição da ilha somos chamados a acompanhar o desembarque dos guerreiros

Nesta frescura tal desembarcavam / Já das naus os segundos Argonautas, / Onde pela floresta se deixavam / Andar as belas Deusas, como incautas.

Como eram e o que faziam as belas deusas, sabemos a seguir:

Algumas, doces cítaras tocavam,
Algumas, harpas e sonoras frautas;
Outras, cos arcos de ouro, se fingiam
Seguir os animais que não seguiam.

Isto era estratégia de sedução, conta-nos à frente o poeta:

Assi lho aconselhara a mestra experta:
Que andassem pelos campos espalhadas;
Que, vista dos barões a presa incerta,
Se fizessem primeiro desejadas.
Era o paraíso ali à vista:
Algumas, que na forma descoberta
Do belo corpo estavam confiadas,
Posta a artificiosa fermosura,
Nuas lavar se deixam na água pura.

Será de estupefacção, primeiro, a reacção à vista de tal espectáculo:

Mas os fortes mancebos, que na praia
Punham os pés, de terra cobiçosos
…
Começam de enxergar subitamente,
Por entre verdes ramos, várias cores,
Cores de quem a vista julga e sente
Que não eram das rosas ou das flores,
Mas da lã fina e seda diferente,
Que mais incita a força dos amores,
De que se vestem as humanas rosas,
Fazendo-se por arte mais fermosas.

Dá Veloso, espantado, um grande grito:
«Senhores, caça estranha (disse) é esta!
Se inda dura o Gentio antigo rito,
A Deusas é sagrada esta floresta.

E à estupefacção segue-se a luxúria:

De hüa os cabelos de ouro o vento leva,
Correndo, e de outra as fraldas delicadas;
Acende-se o desejo, que se ceva
Nas alvas carnes, súbito mostradas.

É Leonardo o escolhido para protagonizar a narrativa das delicias ali vividas:

Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,

por tal forma saborosos que no final o poeta não resiste ao conselho:

Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.

(Nota: julgue-o é aqui usado com o sentido de imagine-o)

Leia-se então integralmente o episódio com Leonardo.

75
Leonardo, soldado bem disposto,
Manhoso, cavaleiro e namorado,
A quem Amor não dera um só desgosto,
Mas sempre fora dele mal tratado,
E tinha já por firme prossuposto
Ser com amores mal-afortunado,
Porém não que perdesse a esperança
De inda poder seu Fado ter mudança;

76
Quis aqui sua ventura que corria
Após Efire, exemplo de beleza
Que mais caro que as outras dar queria
O que deu, pera dar-se, a Natureza.
Já cansado, correndo, lhe dizia:
«Ó fermosura indigna de aspereza,
Pois desta vida te concedo a palma,
Espera um corpo de quem levas a alma!

77
«Todas de correr cansam, Ninfa pura,
Rendendo-se à vontade do inimigo;
Tu só de mi só foges na espessura?
Quem te disse que eu era o que te sigo?
Se to tem dito já aquela ventura
Que em toda a parte sempre anda comigo,
Oh! não na creias, porque eu, quando a cria,
Mil vezes cada hora me mentia.

78
«Não canses, que me cansas; e, se queres
Fugir-me, por que não possa tocar-te,
Minha ventura é tal, que, inda que esperes,
Ela fará que não possa alcançar-te.
Espera; quero ver, se tu quiseres,
Que sutil modo busca de escapar-te;
E notarás, no fim deste sucesso,
“Tra la spica e la man qual muro he messo.”

79
«Oh! Não me fujas! Assi nunca o breve
Tempo fuja de tua fermosura;
Que, só com refrear o passo leve,
Vencerás da Fortuna a força dura.
Que Emperador, que exército, se atreve
A quebrantar a fúria da ventura
Que, em quanto desejei, me vai seguindo,
O que tu só farás não me fugindo?

80
«Pões-te da parte da desdita minha?
Fraqueza é dar ajuda ao mais potente.
Levas-me um coração que livre tinha?
Solta-mo, e correrás mais levemente.
Não te carrega essa alma tão mesquinha
Que nesses fios de ouro reluzente
Atada levas? Ou, despois de presa,
Lhe mudaste a ventura, e menos pesa?

81
«Nesta esperança só te vou seguindo:
Que ou tu não sofrerás o peso dela,
Ou, na virtude de teu gesto lindo,
Lhe mudarás a triste e dura estrela.
E, se se lhe mudar, não vás fugindo,
Que Amor te ferirá, gentil donzela,
E tu me esperarás, se Amor te fere;
E, se me esperas, não há mais que espere.»

82
Já não fugia a bela Ninfa, tanto
Por se dar cara ao triste que a seguia,
Como por ir ouvindo o doce canto,
As namoradas mágoas que dizia.
Volvendo o rosto, já sereno e santo,
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.

83
Oh! Que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.

Ilustra o artigo o painel central do tríptico de Hieronymous Bosch, O Jardim das Delícias na Terra, pintado em 1504-05.

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Girassóis, Van Gogh, o mistério genético e um soneto de Camões

31 Sábado Mar 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Camões, Van Gohg

Está aparentemente esclarecido o mistério genético dos girassóis mutantes pintados por Van Gogh, fazendo fé numa noticia de hoje.

Esclarecido o fenómeno cientifico, permanece o mistério da arte no esplendor da sua imorredoira atracção.

Motivo de paixão, algumas das pinturas de girassóis de Van Gogh foram e continuam ser a porta de entrada para a fruição plástica desde a mais tenra idade.

Nas minhas primeiras tentativas de pintar a óleo, foi uma jarra com três girassóis que tentei passar à tela, procurando concretizar o fascínio que as reproduções conhecidas das pinturas de Van Gogh lançavam.

Anos vai, no auge do poderio financeiro do Japão, foi noticia de espanto pelo mundo, o valor astronómico por que uma das pinturas de girassóis de Van Gogh foi comprada em leilão, e a seguir encerrada num cofre para ser protegida de roubos. Triste destino para a beleza! Parece-me, até, que esta venda foi o pontapé de saída para outras vendas por valores absurdos no mercado da arte, tendo levado pessoas a pensar que investir em arte apenas valia ou vale a pena olhando ao nome do artista.

Mas voltando aos girassóis, a atenção de poetas tem-se demorado nesta inflorescência, dando conta da complexidade de emoções que tais flores provocam. Pretexto para subtilezas em casos de amor, a ele não escapou no longínquo século XVI o génio de Camões, o que me permite acrescentar a esta nota um seu soneto.

No soneto, o poeta comparando-se ao girassol, cujo comportamento descreve na primeira parte, chama a amada de Meu Sol e diz-lhe como vê-la o faz viver :

Mostrando-lhe esse rosto que dá vida,, e … em não vos vendo, entristecida / Se murcha, e se consome em grão tormento /

Uma admirável erva se conhece

Que vai ao Sol seguindo de hora em hora

Logo que ele do Eufrates se vê fora,

E quando está mais alto, então floresce

 

Mas quando ao oceano o carro desce

Toda a sua beleza perde Flora

Porque ela se emurchece, e se descora

Tanto co’a luz ausente se entristece.

 

Meu Sol, quando alegrais esta alma vossa,

Mostrando-lhe esse rosto que dá vida,

Cria flores em seu contentamento

 

Mas logo, em não vos vendo, entristecida

Se murcha, e se consome em grão tormento

Nem há quem vossa ausência sofrer possa.

Transcrevi a versão do soneto XXVIII da Centúria II (incluindo as virgulas) publicada por Manuel de Faria Y Sousa na sua edição das Rimas Varias de Camões (1685), com modernização da ortografia.

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Os economistas e o senso comum – uma fábula de Henrique O’Neill

09 Segunda-feira Maio 2011

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Camões, Henrique O'Neill

Certo bacharel formado

Depois de muita canseira

Voltou a casa enfronhado

Na ciência financeira,

Com fumaças de estadista,

De sagaz economista,

Inventor de panaceias,

De altos e belos

Castelos,

Tendo só por fundamento

As movediças areias.

A mãe nele se revia

Ao ver tão grande talento.

O pai, que pouco sabia,

Mas tinha clara razão,

Deu-lhe um dia

Uma lição.

Estavam todos três sentados

A jantar.

Vêm franguinhos assados,

Mas só dois; o que notar

O velho fez à mulher.

Quis mostrar

O seu saber

Dizendo então o rapaz:

– “Onde há dois há um também

Que, com os outros, três perfaz.”

Volta-lhe o pai: – “ Dizes bem:

Come pois tu o terceiro,

Que o segundo e o primeiro

Como-os eu mais tua mãe.”

 

Estou velho. E em toda a vida

Sempre vi que nesta lida

De provar

Que pode um povo gastar

À larga mais do que tem,

O futuro antecipando,

Andavam economistas

(ou modernos alquimistas)

Até que vinha a verdade,

Sem piedade

Com tudo em terra pregando,

Fatalmente conseguir

Ficarem  poucos a rir

E a maior parte a chorar.

 

Ou cedo ou tarde descamba

Quem dançar

Na corda bamba.

 

Henrique O’Neill publicou esta fábula na 1ª edição do seu livro In Memorian, em 1887, saído sem identificação do autor.

In Memorian é um livro de poesias e 53 fábulas. Terá havido um 2ªedição do livro em 1889 (que não conheço), de onde foram retiradas as fábulas e acrescentadas mais poesias.

A parte monumental da obra de Henrique O’Neill, é o Fabulário, gigantesca colecção de mais de 300 fábulas, umas de invenção própria, outras adaptadas de assuntos conhecidos desde Esopo e Fedro, que continuam a ler-se, na sua maior parte com o encanto da memória da infância.

Poeta do grupo O Trovador, sobre a sua poesia correm alguns juizos, talvez apressados, de negrume e morbidez, ao não realçarem a ironia que subjaz muitos dos seus poemas.

Como exemplo transcrevo o soneto À minha perna:

À MINHA PERNA

Depois de trinta dias de doença que teve o autor

seis meses de cama e o deixou coxo

Perna minha gentil, nunca te viste

Tanto tempo estendida em cama quente;

Não te vás amuar eternamente

Nem fique eu num só pé, cegonha triste.

 

Desceste escadas tantas e as subiste

A dois e dois degraus, perna valente;

E agora há trinta dias estás doente,

Diabo-coxo a ser me reduziste!

 

Vê lá, cruel, se pode merecer-te

Alguma cousa a desgraçada irmã

Com o peso todo d’este corpo inerte.

 

Se de todo a ciência não for vã:

Possa eu, perna minha, sempre ver-te

Fugir-lhe, caso um dia ficas sã.

O leitor, mesmo desprevenido, terá reparado como o eco do soneto de Camões, Alma minha, gentil, que te partiste, percorre todo este soneto À minha perna, numa saborosa brincadeira entre as perdas: da amada para Camões, da perna para O’Neill.

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Pele escura e poesia portuguesa – uma digressão

30 Domingo Jan 2011

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Camões, Guerra Junqueiro, Júlio Diniz, Soror Maria do Céu

 

Suponho que as morenas hoje dispensam o encorajamento dos poetas do dia.


Não foi sempre assim.

Num tempo em que os padrões de beleza eram os a seguir figurados,

 

qualquer morena, por mais bela que fosse, acabava por se sentir na pele deste modelo.

 

Poetas condoidos, ou apreciando a beleza sem preconceito, louvaram a pele trigueira de morenas belas.

Desde logo Camões, na que há muito é considerada entre as melhores poesias portuguesas de sempre, canta em Endexas a uma cativa chamada Bárbara, os encantos, cuja Pretidão de amor[*], / Tão doce a figura, / que a neve lhe jura / que trocara a cor.

[*] Este verso tem feito correr rios de tinta com comentadores ao logo dos séculos indignados e a pretender demonstrar que a pretidão é apenas do cabelo. Outros concedem que Bárbara possa ser, talvez, morena.

Embora de longa data a brancura da pele tenha sido, nas sociedades de matriz católica, distintivo de classe e apanágio de beleza, já no virar do sec. XVII para o XVIII encontramos um poema que dá conta de uma realidade social onde a cor da pele determina o destino. Trata-se de um poema de Soror Maria do Céu (1658 – 1753) que, em A pérola e a pimenta, retrata o destino de duas donzelas, uma branca e uma preta, provavelmente meio-irmãs, filhas do mesmo pai como parece intuir-se do final do poema, em que a branca ficou por dama / a negra por cozinheira.


A PÉROLA E A PIMENTA

Companheira de jornada,

Duas donzelas havia,

Uma formosa e fria,

Outra feia e engraçada.

Uma tão negra se of’rece,

Que até carapinha tem,

A outra tão clara vem

Que filha da alva parce.

E olhando com desafogo

Nos efeitos que produz,

Uma tem cara de luz,

A outra entranhas de fogos.

Já acabada a carreira,

Ali onde a sorte as chama,

A branca ficou por dama,

A negra por cozinheira.

Uma e outra foi notada

Nesta jornada ou empresa,

Porque a dama ficou presa,

E a negra escalavrada.

Todos sabemos quem são

E as conhecemos bem,

Ainda que uma só tem

Árvore de geração.

E da outra não duvido

Venhais em conhecimento,

Porque é o seu nascimento

Claro, posto que escondido.

 

 

Avançando no tempo, é na segunda metade do século XIX que escolho dois poemas com a particularidade de terem sido seleccionados, por antologiadores de mérito, como representativos da poesia dos seus autores e se situarem entre os melhores da poesia portuguesa de sempre.

No primeiro, TRIGUEIRA,  Júlio Diniz (1839 – 1877) desdobra-se em argumentos de consolo:  Mais feia / Com essa cor te imaginas? / … / Pois serias tu mais linda, / Se tivesses outra cor?

ou ainda:

Tu, que assim fascinas / Com um só olhar dos teus!

…

Invejar a cor da rosa, / Em ti, é quase pecar.

…

Trigueira! Onde mais realça / O brilhar duns olhos pretos, / … / Do que numa cor assim?

 

Vamos então ao poema:

 

TRIGUEIRA

Trigueira! Que tem? Mais feia

Com essa cor te imaginas?

Feia! Tu, que assim fascinas

Com um só olhar dos teus!

Que ciumes tens da alvura

D’esses semblantes de neve!

Ai, pobre cabeça leva!

Que te não castigue Deus.


Trigueira! Se tu soubesses

O que é ser assim trigueira!

D’essa ardilosa maneira

Por que tu o sabes ser;

Não virias lamentar-te,

Toda sentida e chorosa,

Tendo inveja à cor da rosa,

Sem motivos para a ter.


Triguieira! Porque és trigueira

É que eu assim te quis tanto,

Daí provem todo o encanto

Em que me traz este amor.

E suspiras e murmuras!

Que mais desejavas inda?

Pois serias tu mais linda,

Se tivesses outra cor?


Trigueira! Onde mais realça

O brilhar duns olhos pretos,

Sempre húmidos, sempre inquietos,

Do que numa cor assim?

Onde o correr duma lágrima

Mais encantos apresenta?

E um sorriso, um só, nos tenta,

Como me tentou a mim?


Trigueira! E choras por isso!

Choras, quando outras te invejam

Essa cor, e em vão forcejam

Por, como tu, fascinar?

Ó louca, nunca mais digas,

Nunca mais, que és desditosa,

Invejar a cor da rosa,

Em ti, é quase pecar.


Trigueira! Vamos, esconde-me

Esse choro de criança.

Ai, que falta de confiança!

Que graciosa timidez!

Enxuga os bonitos olhos,

Então, não chores, trigueira,

E nunca dessa maneira

Te lamentes outra vez.

 

Este poema, cuja popularidade, hoje, desconheço, figurou entre as 100 Melhores Poesias (Líricas) da Língua Portuguesa, escolhidas por Carolina Michaelis de Vasconcellos em 1910. À poesia de Júlio Diniz hoje desaparecida das livrarias (suponho), regressarei por estes dias.

Entre estas 100 poesias figura, obviamente, Endexas a uma cativa chamada Bárbara de Camões.

 

O segundo poema sobre a cor da pele, MORENA, é de Guerra Junqueiro (1850 – 1923).

Aqui o tom é outro, brincalhão, e a morena a quem se dirige o poema é ainda alvo de atenções prévias do poeta

… / Pois pouco te importa / Que eu goste ou que não.

e não o consolo que Júlio Diniz escreveu.

Ao longo do poema desenvolvem-se comparações com flores … / Há rosas dobradas / E há-as singelas; / … / Mas rosas morenas, / Só tu, linda flor.

 

E de elogio em elogio termina no mais convincente(?):

E a Virgem Maria / Não sei… mas seria / Morena também.

…

Vê lá depois disto / Se ainda tens pena / Que as mais raparigas / Te chamem morena!

 

Finalmente o poema:

 

MORENA

Não negues, confessa

Que tens certa pena

Que as mais raparigas

Te chamem morena.


Pois eu não gostava,

Parece-me a mim,

De ver o teu rosto

Da cor do jasmim.


Eu não… mas enfim

É fraca a razão,

Pois pouco te importa

Que eu goste ou que não.


Mas olha as violetas

Que, sendo umas pretas,

O cheiro que têm!

Vê lá que seria,

Se Deus as fizesse

Morenas também!


Tu és a mais rara

De todas as rosas;

E as coisas mais raras

São mais preciosas.


Há rosas dobradas

E há-as singelas;

Mas são todas elas

Azuis, amarelas,


De cor de açucenas,

De muita outra cor;

Mas rosas morenas,

Só tu, linda flor.


E olha que foram

Morenas e bem

As moças mais lindas

De Jerusalém.

E a Virgem Maria

Não sei… mas seria

Morena também.


Moreno era Cristo,

Vê lá depois disto

Se ainda tens pena

Que as mais raparigas

Te chamem morena!

 

Sendo um poema conhecido na sua época, foi escolhido como representativo do estro de Guerra Junqueiro por Cabral do Nascimento para a antologia COLECTÂNEA DE VERSOS PORTUGUESES  do século XII ao século XX, publicada em 1964, onde figurava apenas um poema por poeta.

Nesta antologia permaneceu a representar a obra camoneana  Endexas a uma cativa chamada Bárbara, mas desapareceu qualquer poema de Júlio Diniz.

Nas voltas da moda ou da sensibilidade de cada época se fazem génios hoje, esquecidos amanhã.

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Homenagem de Almada a Camões

10 Quinta-feira Jun 2010

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Almada negreiros, Camões, Faria e Sousa, Poesia


Comemorar Camões é ler-lhe a poesia, fazê-la nossa, brincar com ela.

Passam hoje 440 anos sobre a sua morte, e o poeta continua vivo, na nossa companhia, permitindo-nos o prazer quase quotidiano da sua poesia.

É de Almada Negreiros, esse português sem mestre como Augusto-França lhe chamou, que me socorro para assinalar a data.

No tom brincado que é ás vezes o seu, aqui temos a aventura de Camões e da poesia em Portugal.


LUÍS, O POETA

SALVA A NADO O POEMA


Era uma vez / um português / de Portugal.

O nome Luis / há-de bastar / toda a nação / ouviu falar.

Estala a guerra / e Portugal / chama Luis / para embarcar.

Na guerra andou / a guerrear / e perde um olho / por Portugal.

Livre da morte / pôs-se a contar / o que sabia / de Portugal.

Dias e dias / grande pensar / juntou Luis / a recordar.

Ficou um livro / ao terminar / muito importante / para estudar.

Ia num barco / ia no mar / e a tormenta / vá d’estalar.

Mais do que a vida / há-de guardar /o barco a pique / Luis a nadar.

Fora da água / um braço no ar / na mão o livro / há-de salvar.

Nada que nada / sempre a nadar / livro perdido / no alto mar.

– Mar ignorante / que queres roubar? / a minha vida / ou este cantar?

A vida é minha / ta posso dar / mas este livro / há-de ficar.

Estas palavras / hão de durar / por minha vida / quero jurar.

Tira-me as forças / podes matar / a minha alma / sabe voar.

Sou português / de Portugal / depois de morto / não vou mudar.

Sou português / de Portugal / acaba a vida / e sigo igual.

Meu corpo é Terra / de Portugal / e morto é ilha / no alto mar.

Há portugueses /a navegar / por sobre as ondas / me hão-de achar.

A vida morta / aqui a boiar / mas não o livro / se há-de molhar.

Estas palavras / vão alegrar / a minha gente / de um só pensar.

À nossa terra / irão parar / lá toda a gente / há-de gostar.

Só uma coisa / vão olvidar: / o seu autor / aqui a nadar.

É fado nosso / é nacional / não há portugueses / há Portugal.

Saudades tenho / mil e sem par / saudade é vida / sem se lograr.

A minha vida / vai acabar / mas estes versos / hão-de gravar.

O livro é este / é este o cantar / assim se pensa / em Portugal.

Depois de pronto / faltava dar / a minha vida / para o salvar.

Escrito em Madrid. Dezembro de 1931.


Como é sabido, a poesia lírica de Camões não foi publicada em livro em vida do autor, a menos de poucas peças incluídas em obras de terceiros, nem são conhecidos manuscritos autógrafos dos poemas.

Corre a lenda a partir de palavras de Diogo do Couto na Década VIII, que enquanto o poeta preparava Os Lusídas para edição, “foi escrevendo muito em um livro que ia fazendo, que intitulava Parnaso de Luis de Camões, livro que lhe furtaram e nunca pude saber no reino dela, por muito que inquiri, e foi furto notável …”.

Tal Parnaso … nunca foi encontrado. Os poemas circulavam de mão em mão e quando em 1595, 15 anos após a morte do poeta, Manuel de Lima preparou a 1ªedição das Rhythmas de Luís de Camões para o editor Estêvão Lopes, na ausência de manuscritos autógrafos, os editores socorreram-se das cópias que circulavam, sem segura atribuição de proveniência. Esta edição contemplou os poemas que à data conseguiram reunir.

A 2ªedição 3 anos depois, em 1598, acrescentou 63 novas composições e suprimiu 3. Uma 3ª edição em 1616 incluiu novas peças.

Na 4ª edição das Rimas em 1668 voltam a ser acrescentadas 60 obras poéticas de diversos géneros.

Faria e Sousa, em edição póstuma (1685-1689), acrescentou ao que era tomado pelo cânone da Lírica de Camões, 76 novas poesias. A novidade desta edição prende-se com o circunstanciado comentário que acompanha cada poesia, fazendo da obra, ainda hoje, uma aliciante experiência de leitura.

A admiração apaixonada de Faria e Sousa pela obra de Camões, levou-o a reconhecidos exageros de atribuição de autoria com o caso mais notável de erro em relação a Diogo Bernardes.

Não pararam aqui os acréscimos à obra do poeta.

A chamada edição Jorumenha no séc. XIX (1860-1869) duzentos anos depois da edição Faria e Sousa, traz mais 50 sonetos e 52 peças de géneros diversos.

A este conjunto sobre o qual se debruçam os especialistas questionando a autoria de algumas poesias, porque anteriormente publicadas em nome de outros, ou com características de estilo não atribuíveis a Camões, acrescentou-se o conhecimento público em 1922 do que é conhecido como Cancioneiro Fernandes Tomás, ainda hoje por estudar aprofundadamente e onde abundam composições atribuídas expressamente a Camões. Outros Cancioneiros têm sido entretanto estudados ao sabor das curiosidades e estratégias pessoais dos investigadores.

Passaram mais de 4 séculos sobre a morte de Luís de Camões e hoje está ainda longe de existir qualquer edição da Lírica que possa ser tomada como canónica. É uma vergonha que o país, para o seu poeta nacional, não tenha encontrado os meios, as vontades e recursos, para fixar de forma incontroversa o conjunto da obra do poeta, e que até hoje ninguém tenha conhecido e estudado tão profundamente a obra de Camões como Faria e Sousa no século XVII.

Que panorama triste para situação da obra do poeta com quem Portugal se comemora.

Algumas edições da Lírica surgiram ao longo de século XX. Nenhuma compulsou com critérios legitimados, a obra conhecida e as criações dispersas pelos Cancioneiros de mão que dormem nas bibliotecas do mundo, com vista a apurar o que é de Camões, o que não é de Camões e o que talvez seja.

Para o curioso leitor, em minha opinião de apaixonado pela Lírica camoneana, a mais proba das edições com grafia modernizada, é a LÍRICA COMPLETA DE LUÍS DE CAMÕES, em 3 volumes, publicada em 1980/81 pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda e preparada por Maria de Lurdes Saraiva.

É uma edição inclusiva onde se publica tudo o que alguma vez foi atribuído a Camões, com excepções mínimas justificadas em prefácio. O conjunto vem separado e anotado entre o que tem sido considerado de autoria genuína, e aqueles poemas cuja autoria tem sido controvertida, independentemente da opinião da organizadora, deixando esta em  notas circunstanciadas as suas opiniões.

Esta edição apresenta pela primeira vez uma tentativa de organização cronológica das poesias, agrupadas estas por géneros líricos.

A edição estará provavelmente esgotada, como é costume, mas como teve tiragem elevada (10.000ex.) é talvez facil ao interessado encontrá-la em alfarrabista por módica quantia.

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A fermosa Lianor

19 Segunda-feira Abr 2010

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI

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Camões, Francisco Rodrigues Lobo

Ainda recentemente, em conversa sobre a poesia aprendida na escola e que acompanha tantos de nós pela vida fora, se discutia a autoria do poema  “Descalça vai para a fonte / Lianor pela verdura / …”. A memória já não é o que era, e uns, que a poesia era de Luís de Camões, outros que era de Rodrigues Lobo.

A discussão ficou em aberto.

Chegado a casa, tirei-me de cuidados e fui à procura. Aqui deixo a solução da controvérsia que ficou por resolver.  Ambos os partidos tinham razão.

 

Descalça vai para a fonte

Lianor pela verdura;

Vai fermosa e não segura.

é o mote de autoria desconhecida que tanto Camões como Rodrigues Lobo glosaram, ambos em metro de redondilha maior e com resultado de igual mérito.

Tem nelas a poesia portuguesa duas obras-primas, em minha modesta opinião.

Ei-las:

Luís de Camões

Mote

Descalça vai para a fonte

Lianor pela verdura;

Vai fermosa e não segura.


Voltas

Leva na cabeça o pote,

O testo nas mãos de prata,

Cinta de fina escarlata

Sainho de chamalote:

Traz a vasquinha de cote

Mais branca que a neve pura

Vai fermosa e não segura.


Descobre a touca a garganta,

Cabelos de ouro entrançado,

Fita de cor de encarnado,

Tão linda que o mundo espanta.

Chove nela graça tanta,

Que dá graça à fermosura.

Vai fermosa e não segura.

 

E agora a inspiração de Francisco Rodrigues Lobo

 

Vilancete

Descalça vai para a fonte

Lianor pela verdura;

Vai fermosa e não segura.


A talha leva pedrada,

Pucarinho de feição,

Saia de cor de limão,

Beatilha soqueixada.

Cantando de madrugada

Pisa as flores na verdura

Vai fermosa e não segura.


Leva na mão a rodilha,

Feita da sua toalha;

Com uma sustenta a talha,

Ergue com outra a fraldilha.

Mostra os pés por maravilha

Que a neve deixam escura

Vai fermosa e não segura.


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Dom Francisco Manuel de Melo — 3 Sonetos

20 Sábado Mar 2010

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Camões, Francisco Manuel de Melo

Personagem de fábula e de lenda, escritor maior do nosso século XVII, foi Dom Francisco Manuel de Melo (1608-1666.10.13)  também poeta.

A sua poesia praticamente esquecida hoje, vitima de julgamentos datados, bem precisa de uma edição crítica que ao estudá-la, editando também a que permanece em manuscrito, chame a atenção para as várias pérolas que contém.

I

Responde a um amigo, que mandava perguntar a vida que fazia em sua prisão

Casinha desprezível, mal forrada;

Furna, lá dentro mais que inferno escura;

Fresta pequena, grade bem segura;

Porta só para entrar, logo fechada;

 

Cama que é potro; mesa destroncada;

Pulga que por picar faz matadura;

Cão só para agourar; rato que fura;

Candeia nem com os dedos atiçada;

 

Grilhão que vos assusta eternamente;

Negro, boçal; e mais boçal ratinho

Que mais vos leva que vos traz da praça!

 

Sem amor, sem amigo, sem parente,

Quem mais se dói de vós, diz: Coitadinho!

Tal vida levo. Santa prol me faça!

II

A  uma senhora que, estando de mui bom parecer, contraiu o parentesco de sogra

 

Quando deixareis vós de ser fermosa,

Minha senhora Dona Mariana?

Nunca jamais, se a vista não me engana,

Ou se a fé, mais que a vista, escrupulosa.

 

Filha vos conheci, e já vi rosa

Das que se preza Abril, Maio se ufana,

Que, em vendo essa beleza soberana,

Do prado se acolhia vergonhosa.

 

Conheci-vos esposa, em igual preço

Envejada das flores. Mas, que importa

Se mãe fostes, com raios semelhantes?

 

E até sogra, que agora vos conheço,

(contra o que dizem: nem de barro á porta…)

Aposto que inda sois como éreis dantes.

E ainda outro soneto:

III

 

Serei eu alguma hora tão ditoso,

Que os cabelos que amor laços fazia,

Por prémio de o esperar, veja algum dia

Soltos ao brando vento buliçoso?

 

Verei os olhos donde o sol fermoso

As portas da manhã mais cedo abria,

Mas em chegando a vê-los se partia,

Ou cego, ou lisonjeiro, ou temeroso?

 

Verei a limpa testa a quem a aurora

Graça sempre pediu? E os brancos dentes,

Por quem trocara as pérolas que chora?

 

Mas, que espero de ver dias contentes,

Se para se pagar de gosto uma hora,

Não bastam mil idades diferentes?

 

Se o corpo dos sonetos de Dom Francisco Manuel de Melo pode ser desigual, com o sublime ao lado do trivial, como,  julgo,  resulta evidente da escolha que aquí faço, as éclogas, de onde desapareceu o quadro pastoril, surgem como tese moral dialogada, dando a ver um curioso quadro mental da época.

Mas é sobretudo pelas cartas em verso que Dom Francisco Manuel de Melo merece ser lido, nomeadamente a carta conhecida como Canto da Babilónia:

 

Sôbolas águas correntes / de aqueles rios cantados / que a Babilónia levados / com lágrimas dos ausentes / chegam ricos e cansados.

 

Uma tarde me assentei / cheio de dor e fadiga / e hoje do que lá passei / me manda o tempo que diga / quanto em lágrimas direi.

 

Parafraseando Camões e a sua Sôbolos rios, Dom Francisco Manuel de Melo desenvolve em redondilha, ao longo de 500 versos, uma profunda e comovente reflexão sobre o sentido da vida tendo como ponto de partida os Salmos da Biblia e indo buscar à riqueza da sua experiência existencial, a matéria da sua formulação poética.

 

Mas tu, mas eu, que faremos, / Se nós mesmos fabricamos / O cavalo que adoramos / E dentro da alma metemos / O fogo em que nos queimamos?

Nota biográfica: As datas de nascimento e morte de Dom Francisco Manuel de Melo foram retiradas de

PRESTAGE, EDGAR, D. Francisco Manuel de Mello – Esboço biographico, Coimbra, Imprensa de Universidade, 1914.

Esta é uma obra fundamental no estudo da vida do autor e ainda hoje referência inultrapassada. Em diversos locais na net, nomeadamente  no site infopédia.pt, encontram-se referidas de forma errada, as datas de nascimento e morte do autor.

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Um poema de Dom Manuel de Portugal

18 Quinta-feira Mar 2010

Posted by viciodapoesia in A mulher imaginada, Poesia Antiga

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Camões, Dom Manuel Portugal

A perfeição, a graça, o suave geito,

A primavera cheia de frescura

Que sempre em vós florece, a quem Ventura

E a Razão entregaram este peito;

 

Aquelle cristalino e puro aspeito

Que em si comprende toda a fermosura;

O resplendor dos olhos, e a brandura

De que Amor a ninguem quis ter respeito

 

Se isto, que em vós se vê, ver desejaes

Como digno de ser visto somente,

Por mais que vós de amor vos isentaes

 

Traduzido o vereis tam fielmente

No meio d’este peito onde estaes

Que, vendo-vos, sintaes o que elle sente.

 

Contemporâneo de Camões, a quem sobreviveu mais de 20 anos, é curta a obra que de Dom Manuel de Portugal (c. 1516 – 1606) se conhece.

Neste retrato de mulher, a delicadeza e o quase pudor da descrição comove pela perfeição, pela graça e pelo suave geito, tal como o poeta define a mulher a quem o dedica.

É um segredo da poesia portuguesa de meados de quinhentos, esta suavidade de linguagem em que as palavras transmitem todo o resplendor do que os olhos vêem associando delicadeza de imagens e profundidade de sentimento.

Na transcrição do poema conservei a ortografia adoptada por Carolina Michaelis de Vasconcellos na sua escolha das “Cem Melhores Poesias (Líricas) da Lingua Portuguesa”, onde o conheci.

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A prostituição na poesia (2) – Ardentes filhas do prazer, dizei-me!

29 Sexta-feira Jan 2010

Posted by viciodapoesia in A mulher imaginada

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Antero de Quental, Camões

METEMPSICOSE

Ardentes filhas do prazer, dizei-me!

Vossos sonhos quais são, depois da orgia?

Acaso nunca a imagem fugidia

Do que foste em vós se agita e freme?


Noutra vida e outra esfera, aonde geme

Outro vento, e se acende um outro dia,

Que corpo tínheis? Que matéria fria

Vossa alma incendiou, com fogo estreme?


Vós fostes, nas florestas, bravas feras,

Arrastando, leoas ou panteras,

De dentadas de amor um corpo exangue…


Mordei pois esta carne palpitante,

Feras feitas de gaze flutuante…

Lobas! Leoas! Sim, bebei meu sangue!

Sem que o comércio venal seja explicitamente referido, há um amor despido de sentimento neste soneto de Antero de Quental (1842-1891) que permite supor as  Ardentes filhas do prazer como as damas de aluguer de Camões, aqui vistas como devoradoras fêmeas selvagens, lobas ou leoas, bravas feras arrastando… de dentadas de amor um corpo exangue, ainda que vestidas com o requinte da gaze flutuante de alcova.

O poeta recusa-lhes origem humana, daí chamar ao soneto METEMPSICOSE, transmigração da alma de um corpo para outro.

E o nosso autor pergunta Que corpo tinheis? depois de já se ter interrogado: Noutra vida, noutra esfera, que matéria fria vossa alma incendiou, com fogo estreme?

Deixadas as perguntas, ao homem que o poeta é, apenas o desejo e a orgia importa, e grita:

Mordei esta carne palpitante, bebei meu sangue!

Acalmada a carne, surge o intelecto e a reflexão, e com eles o poema e a interrogação a abrir: Ardentes filhas do prazer, dizei-me! Vossos sonhos quais são.

Não direi que estamos perante a velha história do cliente inexperiente que, depois de satisfeito, se interessa pela vida da prostituta enquanto pessoa, num rebate sincero de simpatia humana. Direi antes que estamos perante a perplexidade eterna da razão face à força da carne para fazer valer os seus direitos.

Força essa transmitida no poema por vocábulos como feras, dentadas, exangue, sangue, num resultado poético global em que a precisão da forma se alia à concisão do soneto, sem paralelo na poesia portuguesa.


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A prostituição na poesia (1)

28 Quinta-feira Jan 2010

Posted by viciodapoesia in A mulher imaginada

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Afonso Lopes Vieira, Camões

Damas de aluguer lhes chamou Camões numa carta que, entre outras coisas, dava conta do ambiente de baixa boémia na Lisboa de meados do séc.XVI.

Baixa boémia, a expressão não é minha mas de Hernâni Cidade, quando comenta parte da carta onde se lê:

…

Quanto é ao que toca a estoutras damas de aluguer, há muito que escrever delas. Alguns dirão que, como quer que nestas não há aí mais que pagar e andar, não pode haver engano. Neste jogo digo que é ao contrário, porque vereis estar um rosto que é a castidade de Lucrécia luxuriosa, uma tez de alabastro, uns olhos de mordifuge, um nariz de manteiga crua, uma boca de pucarinho de Estremoz; mas o pueri, latet… (*)

Muito haveria que conversar sobre esta e as outras cartas do poeta, mas, por agora, ela é apenas o pretexto directo de uma poesia de Afonso Lopes Vieira:

Damas de Aluguer

Damas de aluguer

são remédio santo

para o que ama tanto

a quem o não quere.

Deixe o seu cuidado

a pobre alma terna,

ame na taberna

do Malcozinhado!


Ao sol que aí faz

rebrilhem seus nomes:

a Chiquita Gomes

mais a Antónia Brás.

Damas de má nota,

que a Glória vos queira:

Maria Caldeira,

Beatriz da Mota.


Forte espadachim

das vielas de Alfama,

com essa má fama

mais te admiro em mim.

Parecem amargos

os fados beninos,

mas versos divinos

não querem os cargos.


Nem no paço estrelas,

nem em Ceuta as mouras

Como estas senhoras

lhe parecem belas.

Ah! Se amado fosse!

Mas assim só quere

ninfas de água doce,

damas de aluguer.

O amor à venda que atravessa sociedades urbanas histórica e geograficamente, não podia ser indiferente à poesia.


E na poesia portuguesa, desde tempos tão recuados como as primeiras cantigas de escárnio e maldizer, até bem entrado o séc. XX, o sexo a contado se faz presente.

Da prostituta ao cliente, a poesia capta modos de ver e de sentir num leque diversificado em que o homem se vê a si na impotência do amor.

Desse percurso imaginado iremos deixando alguns picos de notável realização poética.

Notícia bibliográfica.

O poema Damas de Aluguer de Afonso Lopes Vieira (1878-1946) foi publicado em 1940 no livro Onde a terra se acaba [e o mar começa. Todo o poema é uma referência directa ao conteúdo da carta de Camões e vem inserido num grupo de poesias “NO SIGNO DE CAMÕES” constituindo-se como uma homenagem singular ao poeta.

O extracto da carta de Camões (152? – 1580) e nota, pertence à Carta III na forma publicada por Hernâni Cidade na edição das Obras Completas de Luís de Camões editadas pela Livraria Sá da Costa em 1946.

(*)pueri, latet… querendo significar que, sob tão formosas aparências, se oculta algo de perigoso.


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