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Fragmento de O Melro — poemeto de Guerra Junqueiro

01 Terça-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Guerra Junqueiro

Madrugada cedo, ainda o dia mal desponta, acordo com o chilrear dos melros a entrar pela janela.
É uma alegria contagiosa, aquele chilrear, e por mais de uma vez, já completamente desperto e sem sono, me tenho lembrado do poemeto de Guerra Junqueiro (1859-1923), O Melro. Nele temos uma família de melros a cuidar da sobrevivência e um padre lavrador em guerra com os pássaros. O padre, homem prosaico e sem poesia, era, como o descreve o poeta,

 

… um velhote conservado
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
Nem rosas no canteiro;
Andava às lebres pelo monte, a pé,
      Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
…

 

que apenas vê dos melros o estrago na horta

…
— Nada, já não tem jeito! este ladrão
      Dá cabo dos trigais!
      Qual seria a razão
Porque Deus fez os melros e os pardais?!
…

 

 

O poemeto, longa digressão sobre valores, dando conta de um hedonismo apaziguador, acrescenta ao encanto da natureza, a serenidade transmitida pela imutabilidade do ciclo solar:

 

…

Vinha tombando a noite silenciosa;
E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
      Uma bela tristeza
Harmónica, viril, indefinida.
      A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dolorida
Um misticismo heróico e salutar.
As árvores, de luz inda doiradas,
Sobre os montes longínquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
      Das plantas dos herbários.

…

 

Revela-se ainda o poema uma alegoria sobre o valor da liberdade: Encarcerar a asa / É encarcerar o pensamento humano.

 

O poema foi à época, quando integrado em  A Velhice do Padre Eterno, vigorosa denúncia de atitudes de algum clero, incompatíveis com o sacerdócio que haviam escolhido, e neste poemeto ridicularizado no propósito do padre de fazer pagar aos melros o pecado de Eva:

 

… Andando no quintal um certo dia / … / Enxergou por acaso (que alegria! / Que ditoso momento!) / Um ninho com seis melros escondido / … / E ao vê-los exclamou enfurecido: / — A mãe comeu o fruto proibido; / Esse fruto era a minha sementeira; / … / Era o pão, e era o milho; / Transmitiu-se o pecado. / E, se a mãe não pagou, que pague o filho. / É doutrina da Igreja. Estou vingado!

 

 

Os combates anti-clericais do final da monarquia estão enterrados, mas do poema vale a pena reter a comovente descrição alegórica da perseguição e soçobro dos mais fracos na sua labuta de sobrevivência, bem como o vigoroso hino ao amor maternal na parte final.

 

 

O MELRO
[fragmento]

  O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
      Madrugador, jovial;
      Logo de manhã cedo
Começava a soltar d’entre o arvoredo
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre cura abria a porta
      Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
      O melro d’entre a horta
      Dizia-lhe: — Bons dias!
      E o velho padre cura
Não gostava daquelas cortesias.
O cura era um velhote conservado
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
Nem rosas no canteiro;
Andava às lebres pelo monte, a pé,
      Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.

 

O melro desprezava os exorcismos
      Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
      Até que ultimamente
      O velho disse um dia:
— Nada, já não tem jeito! este ladrão
      Dá cabo dos trigais!
      Qual seria a razão
Porque Deus fez os melros e os pardais?!
      E o melro no entretanto,
      Honesto como um santo,
      Mal vinha no oriente
      A madrugada clara
Já ele andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno insecto.
E apesar disto o rude proletário,
      O bom trabalhador,
Nunca exigiu aumento de salário.
Que grande tolo o padre confessor!

 

Foi para a eira o trigo;
      E armando uns espantalhos
      Disse o abade consigo:
— Acabaram-se as penas e os trabalhos.
Mas logo de manhã, maldito espanto!
      O abade, inda na cama,
Ouviu do melro o costumado canto;
      Ficou ardendo em chama;
      Pega na caçadeira
      Levanta-se dum salto,
E vê o melro a assobiar na eira
Em cima do seu velho chapéu alto!
      Chegou a coisa a termo
Que o bom do padre cura andava enfermo,
      Não falava nem ria,
Minado por tão intimo desgosto;
E o vermelho oleoso do seu rosto
Tornava-se amarelo dia a dia.
E foi tal a paixão, a desventura,
(Muito embora o leitor não me acredite)
      Que o bom do padre cura
      Perdera… o apetite!

 

Andando no quintal um certo dia
Lendo em voz alta o Velho Testamento
Enxergou por acaso (que alegria!
      Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros escondido
      Entre uma carvalheira.
E ao vê-los exclamou enfurecido:
— A mãe comeu o fruto proibido;
Esse fruto era a minha sementeira;
      Era o pão, e era o milho;
      Transmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho.
É doutrina da Igreja. Estou vingado!
E engaiolando os pobres passaritos
      Soltava exclamações:
      — É uma praga. Malditos!
Dão-me cabo de tudo estes ladrões!
Raios os partam! andai lá que enfim…
E deixando a gaiola pendurada
Continuou a ler o seu latim
      Fungando uma pitada.

 

Vinha tombando a noite silenciosa;
E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
      Uma bela tristeza
Harmónica, viril, indefinida.
      A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dolorida
Um misticismo heróico e salutar.
As árvores, de luz inda doiradas,
Sobre os montes longínquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
      Das plantas dos herbários.
Recolhiam-se a casa os lavradores.
Dormiam virginais as coisas mansas:
      Os rebanhos e as flores,
      As aves e as crianças.
Ia subindo a escada o velho abade;
A sua negra, atlética figura
Destacava na frouxa claridade,
      Como uma nódoa escura.
E introduzindo a chave no portal
      Murmurou entre dentes:
      — Tal e qual… tal e qual!…
Guisados com arroz são excelentes.

 

Nasceu a lua. As folhas dos arbustos
Tinham o brilho meigo, aveludado
Do sorriso dos mártires, dos justos.
Um eflúvio dormente e perfumado
Embebedava as seivas luxuriantes.
Todas as forças vivas da matéria
Murmuravam dialogos gigantes
      Pela amplidão etérea.
São precisos silencios virginais,
Disposições simpáticas, nervosas,
Para ouvir estas falas silenciosas
      Dos mudos vegetais.
As orvalhadas, frescas espessuras
Pressentiam-se quasi a germinar.
Desmaiavam-se as cândidas verduras
Nos magnetismos brancos do luar

 

E nisto o melro foi direito ao ninho.
Para o agasalhar andou buscando
Umas penugens doces como arminho,
Um feltrozito assetinado e brando.
      Chegou lá, e viu tudo.
Partiu como uma frecha; e louco e mudo
Correu por todo o matagal; em vão!
Mas eis que solta de repente um grito
Indo encontrar os filhos na prisão.
— Quem vos meteu aqui?! O mais velhito
Todo tremente, murmurou então:
— Foi aquele homem negro. Quando veio
Chamei, chamei… Andavas tu na horta…
Ai que susto, que susto! Ele é tão feio!…
Tive-lhe tanto medo!… Abre esta porta,
E esconde-nos debaixo da tua asa!
Olha, já vão florindo as açucenas;
Vamos a construir a nossa casa
      Num bonito lugar…
Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas
      Para voar, voar!
      E o melro alucinado
      Clamou:
             — Senhor! Senhor!
É por ventura crime ou é pecado
      Que eu tenha muito amor
      A estes inocentes?!
Ó natureza, ó Deus, como consentes
Que me roubem assim os meus filhinhos,
      Os filhos que eu criei!
Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,
      Quanta noite perdida
         Nem eu sei…
      E tudo, tudo em vão!
      Filhos da minha vida!
      Filhos do coração!!…
Não bastaria a natureza inteira,
Não bastaria o céu para voardes,
E prendem-vos assim desta maneira!…
      Covardes!
A luz, a luz, o movimento insano
Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa…
Encarcerar a asa
É encarcerar o pensamento humano.
A culpa tive-a eu! quasi à noitinha
      Parti, deixei-os sós…
A culpa tive-a eu, a culpa é minha,
      De mais ninguém!… Que atroz!
      E eu devia sabê-lo!
Eu tinha obrigação de adivinhar…
Remorso eterno! eterno pesadelo!…

 

Falta-me a luz e o ar!… Oh, quem me dera
      Ser abutre ou ser fera
Para partir o cárcere maldito!…
E como a noite é límpida e formosa!
      Nem um ai, nem um grito…
Que noite triste! oh noite silenciosa!…

 

E a natureza fresca, omnipotente,
      Sorria castamente
Com o sorriso alegre dos heróis.
      Nas sebes orvalhadas,
Entre folhas luzentas como espadas,
      Cantavam rouxinóis

 

…
E entre a luz do luar e os sons e as flores,
Na atonia cruel das grandes dores,
      O melro solitário
Jazia inerte, exanime, sereno,
Bem como outrora a mãe do Nazareno
      Na noite do calvário!…
 

O Melro teve inicialmente publicação autónoma, sendo posteriormente integrado no livro A Velhice do Padre Eterno.

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Pele escura e poesia portuguesa – uma digressão

30 Domingo Jan 2011

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Camões, Guerra Junqueiro, Júlio Diniz, Soror Maria do Céu

 

Suponho que as morenas hoje dispensam o encorajamento dos poetas do dia.


Não foi sempre assim.

Num tempo em que os padrões de beleza eram os a seguir figurados,

 

qualquer morena, por mais bela que fosse, acabava por se sentir na pele deste modelo.

 

Poetas condoidos, ou apreciando a beleza sem preconceito, louvaram a pele trigueira de morenas belas.

Desde logo Camões, na que há muito é considerada entre as melhores poesias portuguesas de sempre, canta em Endexas a uma cativa chamada Bárbara, os encantos, cuja Pretidão de amor[*], / Tão doce a figura, / que a neve lhe jura / que trocara a cor.

[*] Este verso tem feito correr rios de tinta com comentadores ao logo dos séculos indignados e a pretender demonstrar que a pretidão é apenas do cabelo. Outros concedem que Bárbara possa ser, talvez, morena.

Embora de longa data a brancura da pele tenha sido, nas sociedades de matriz católica, distintivo de classe e apanágio de beleza, já no virar do sec. XVII para o XVIII encontramos um poema que dá conta de uma realidade social onde a cor da pele determina o destino. Trata-se de um poema de Soror Maria do Céu (1658 – 1753) que, em A pérola e a pimenta, retrata o destino de duas donzelas, uma branca e uma preta, provavelmente meio-irmãs, filhas do mesmo pai como parece intuir-se do final do poema, em que a branca ficou por dama / a negra por cozinheira.


A PÉROLA E A PIMENTA

Companheira de jornada,

Duas donzelas havia,

Uma formosa e fria,

Outra feia e engraçada.

Uma tão negra se of’rece,

Que até carapinha tem,

A outra tão clara vem

Que filha da alva parce.

E olhando com desafogo

Nos efeitos que produz,

Uma tem cara de luz,

A outra entranhas de fogos.

Já acabada a carreira,

Ali onde a sorte as chama,

A branca ficou por dama,

A negra por cozinheira.

Uma e outra foi notada

Nesta jornada ou empresa,

Porque a dama ficou presa,

E a negra escalavrada.

Todos sabemos quem são

E as conhecemos bem,

Ainda que uma só tem

Árvore de geração.

E da outra não duvido

Venhais em conhecimento,

Porque é o seu nascimento

Claro, posto que escondido.

 

 

Avançando no tempo, é na segunda metade do século XIX que escolho dois poemas com a particularidade de terem sido seleccionados, por antologiadores de mérito, como representativos da poesia dos seus autores e se situarem entre os melhores da poesia portuguesa de sempre.

No primeiro, TRIGUEIRA,  Júlio Diniz (1839 – 1877) desdobra-se em argumentos de consolo:  Mais feia / Com essa cor te imaginas? / … / Pois serias tu mais linda, / Se tivesses outra cor?

ou ainda:

Tu, que assim fascinas / Com um só olhar dos teus!

…

Invejar a cor da rosa, / Em ti, é quase pecar.

…

Trigueira! Onde mais realça / O brilhar duns olhos pretos, / … / Do que numa cor assim?

 

Vamos então ao poema:

 

TRIGUEIRA

Trigueira! Que tem? Mais feia

Com essa cor te imaginas?

Feia! Tu, que assim fascinas

Com um só olhar dos teus!

Que ciumes tens da alvura

D’esses semblantes de neve!

Ai, pobre cabeça leva!

Que te não castigue Deus.


Trigueira! Se tu soubesses

O que é ser assim trigueira!

D’essa ardilosa maneira

Por que tu o sabes ser;

Não virias lamentar-te,

Toda sentida e chorosa,

Tendo inveja à cor da rosa,

Sem motivos para a ter.


Triguieira! Porque és trigueira

É que eu assim te quis tanto,

Daí provem todo o encanto

Em que me traz este amor.

E suspiras e murmuras!

Que mais desejavas inda?

Pois serias tu mais linda,

Se tivesses outra cor?


Trigueira! Onde mais realça

O brilhar duns olhos pretos,

Sempre húmidos, sempre inquietos,

Do que numa cor assim?

Onde o correr duma lágrima

Mais encantos apresenta?

E um sorriso, um só, nos tenta,

Como me tentou a mim?


Trigueira! E choras por isso!

Choras, quando outras te invejam

Essa cor, e em vão forcejam

Por, como tu, fascinar?

Ó louca, nunca mais digas,

Nunca mais, que és desditosa,

Invejar a cor da rosa,

Em ti, é quase pecar.


Trigueira! Vamos, esconde-me

Esse choro de criança.

Ai, que falta de confiança!

Que graciosa timidez!

Enxuga os bonitos olhos,

Então, não chores, trigueira,

E nunca dessa maneira

Te lamentes outra vez.

 

Este poema, cuja popularidade, hoje, desconheço, figurou entre as 100 Melhores Poesias (Líricas) da Língua Portuguesa, escolhidas por Carolina Michaelis de Vasconcellos em 1910. À poesia de Júlio Diniz hoje desaparecida das livrarias (suponho), regressarei por estes dias.

Entre estas 100 poesias figura, obviamente, Endexas a uma cativa chamada Bárbara de Camões.

 

O segundo poema sobre a cor da pele, MORENA, é de Guerra Junqueiro (1850 – 1923).

Aqui o tom é outro, brincalhão, e a morena a quem se dirige o poema é ainda alvo de atenções prévias do poeta

… / Pois pouco te importa / Que eu goste ou que não.

e não o consolo que Júlio Diniz escreveu.

Ao longo do poema desenvolvem-se comparações com flores … / Há rosas dobradas / E há-as singelas; / … / Mas rosas morenas, / Só tu, linda flor.

 

E de elogio em elogio termina no mais convincente(?):

E a Virgem Maria / Não sei… mas seria / Morena também.

…

Vê lá depois disto / Se ainda tens pena / Que as mais raparigas / Te chamem morena!

 

Finalmente o poema:

 

MORENA

Não negues, confessa

Que tens certa pena

Que as mais raparigas

Te chamem morena.


Pois eu não gostava,

Parece-me a mim,

De ver o teu rosto

Da cor do jasmim.


Eu não… mas enfim

É fraca a razão,

Pois pouco te importa

Que eu goste ou que não.


Mas olha as violetas

Que, sendo umas pretas,

O cheiro que têm!

Vê lá que seria,

Se Deus as fizesse

Morenas também!


Tu és a mais rara

De todas as rosas;

E as coisas mais raras

São mais preciosas.


Há rosas dobradas

E há-as singelas;

Mas são todas elas

Azuis, amarelas,


De cor de açucenas,

De muita outra cor;

Mas rosas morenas,

Só tu, linda flor.


E olha que foram

Morenas e bem

As moças mais lindas

De Jerusalém.

E a Virgem Maria

Não sei… mas seria

Morena também.


Moreno era Cristo,

Vê lá depois disto

Se ainda tens pena

Que as mais raparigas

Te chamem morena!

 

Sendo um poema conhecido na sua época, foi escolhido como representativo do estro de Guerra Junqueiro por Cabral do Nascimento para a antologia COLECTÂNEA DE VERSOS PORTUGUESES  do século XII ao século XX, publicada em 1964, onde figurava apenas um poema por poeta.

Nesta antologia permaneceu a representar a obra camoneana  Endexas a uma cativa chamada Bárbara, mas desapareceu qualquer poema de Júlio Diniz.

Nas voltas da moda ou da sensibilidade de cada época se fazem génios hoje, esquecidos amanhã.

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Num bairro poético — A Musa em Férias e Guerra Junqueiro

14 Quinta-feira Out 2010

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poetas e Poemas

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Guerra Junqueiro

A profissão levou-me a um bairro poético. Moradias isoladas repousavam entre o silencio de pinheiros centenários dando aos seus moradores a tranquilidade de ruas com nomes de livros de poesia.

São livros que hoje ninguém lê – Campo de Flores – Folhas Soltas – Luar de Janeiro – A Musa em Férias e mais alguns.

Na diversidade dos seus autores são livros onde se espraia um olhar nostálgico pela natureza saída da criação divina, e onde a presença do homem tantas vezes entra em conflito com essa harmonia primordial.

Releio alguns poemas de A Musa em Férias onde esse contraste ressalta.

É um Guerra Junqueiro (1850 – 1923), nos antípodas do combatente politico pela dignidade humana cantada em longo e sonoros alexandrinos, quem, embalado em quadras singelas numa toada musical da palavra, cruza a ironia cáustica do feroz crítico social com um encanto deslumbrado da natureza.

IDÍLIO

Ah, que inefável pureza! / Que candura imaculada!…

Dir-se-ia que a Natureza / Nasceu esta madrugada!…

 

A primavera opulenta, / Estremecendo d’amores,

Palpita, anseia, rebenta / Em cataclismos de flores.

 

Os velhos sátiros nus / Correm atrás das bacantes…

A cor, o perfume e a luz / Dão saturnais deslumbrantes.

 

O olhar d’oiro das boninas / Contempla o azul; ao vê-las,

Dir-se-ia que nas campinas / Cairam chuvas de estrelas.

 

Uns feitos para a batalha, / Com a guerra por destino,

Puseram cotas de malha / De aço e bronze e d’oiro fino.

 

Outros, artistas mimosos, / Vestem librés refulgentes

Dos veludos mais preciosos / Das rendas mais transparentes.

 

Não sei que orgia incorpórea / Embebeda o pensamento…

A natureza é a glória; / O azul, um deslumbramento.

 

Tudo ri e brilha e canta / Neste divino esplendor:

O orvalho, o néctar da planta, / O aroma, a lingua da flor.

 

Enroscam-se aos troncos nus / As verdes cobras da hera.

Radiosos vinhos de luz / Cintilam pela atmosfera.

 

Entre os loureiros das matas, / Que crescem para os heróis,

Dá o luar serenatas / Com bandas de rouxinóis.

 

É a terra um paraíso. / E o céu profundo lampeja

Com o inefável sorriso / Da noiva – ao sair da igreja.

 

E o homem – verme do asfalto, / Que traz deus na consciencia,

O homem que está no alto / Da montanha da existência,

 

Que faz entre as harmonias / Deste esplendoroso assombro?

– Vai ouvir as cotovias, / Levando a espingarda ao ombro.

 

Funcionando como um corte vital, esta visita às fontes é uma recusa deliberada das práticas poéticas anteriores, talvez reflexos dum cansaço temporário da luta – Eu venho cheio de mágoa, / Venho triste, ó meus amores, / Como uma fonte sem água, / Como uma jarra sem flores. – onde uma componente biográfica certamente explica a mutação. Os poemas não são datados, pelo que os conflitos e a luta interior que conduziram o poeta a aderir ao Partido Progressista no ano da publicação deste livro não são neles escrutináveis. Fica-nos este louvor panteísta que continua:

CONVALESCENÇA

Ó verde bosque tranquilo, / O Natureza ridente,

Venho pedir-te um asilo, / Um quarto para um doente.

 

Chego morto de cansaço, / Triste como um lord inglês;

Pôs-me o Terreiro do Paço / No estado em que tu me vez.

 

O meu espirito anda / Como nem tu imaginas…

Lisboa, é verdade, manda / Recados para as boninas.

 

Eu venho cheio de mágoa, / Venho triste, ó meus amores,

Como uma fonte sem água, / Como uma jarra sem flores.

 

Esta frescura remoça / As anemias do asfalto.

Olha um melro a fazer troça, / Brejeiro, ao meu chapéu alto!

 

A floresta não precisa / As etiquetas das valsas:

As ninfas não têm camisa, / E os faunos não usam calças.

 

Silenos gordos e calvos, / A rir com um riso estranho

Espreitam os corpos alvos / Das loiras ninfas no banho.

 

Um deles, que traz muletas, / E a quem já falta um chavelho,

Segreda coisas facetas / Que têm pimentão vermelho.

 

Os faunos adolescentes, / Ouvindo pilhérias tais,

Abraçam-se, que indecentes!, / Aos troncos dos salgueirais!…

 

E um loiro silenozinho, / Guloso de bons segredos,

Dilata o róseo focinho, / A rir e a morder nos dedos…

 

Rosas, lírios, mocidade, / Abri-vos, cantai agora!

Dê salvas de hilaridade / O rubro canhão da aurora!,

 

Que além vem graciosa e nua / Vénus! Que esplendido seio!

São dois requeijões de Lua / Com dois morangos no meio!…

 

***

 

Deixemos por um instante / As coisas graves e sérias;

Declaro-me um estudante / Com quinze dias de férias.

 

Ando dispéptico, exangue, / Para as veias esfalfadas

Quero a transfusão do sangue / Ridente das madrugadas.

 

Despindo a guerreira farda, / A farda dos generais,

Licenceio a velha guarde / Das minhas odes marciais.

 

Doidas estrofes leoninas, / Amazonas impetuosas,

Carregai-me essas clavinas / De aurora e botões de rosas.

 

Carnificinas, deixá-las. / Hoje as hostes inimigas,

Em vez de as matar com balas / Picá-las-ei com ortigas.

 

Vamos! Riam, contem casos / Alegres, bons, maganões;

E dos elmos façam vasos / Para pôr manjericões.

 

Deixem os ultramontanos / Nas suas negras roupetas;

Depois de caçar tiranos / Vamos caçar borboletas.

 

Toca a fazer um idílio / À sombra dum castanheiro

Desçam dos corcéis; Virgílio / Que os vá deitar ao lameiro.

 

Pendurem as velhas lanças / Nos troncos dos salgueirais,

E riam como as crianças, / Ou como os melros joviais.

 

Entre os aromas dos buxos / Eu quero que os meus soldados,

Em vez de morder cartuchos, / Mordam pêssegos doirados.

 

Encravem-me em dois minutos / Esses canhões assassinos

De bombardear os redutos / Com bombas de alexandrinos.

 

E enfim largando as espadas, / Com toda a fúria guerreira

Levem-me entre gargalhadas, / D’assalto – uma cerejeira!

Embora querendo-se isolado e gozando Deste esplendoroso assombro, a cidade não o deixa e, implacável de ironia, lá vai esta resposta:

SEGUNDA CARTA

(A UM AMIGO QUE CONTINUA A PEDIR-ME VERSOS)

Não peças mais versos, não! / Não faças com que eu me zangue;

A teta da inspiração / Ordenho-a— e já bota sangue.

Deixa-me estar sossegado; / Eu a luta abandonei-a;

Tive baixa de soldado / E vim viver para a aldeia.

Levo a existência pacata / Dos grandes bonacheirões;

E arrumei a um canto a lata / Com que eu fabrico os trovões.

Pedes-me estrófes purpúreas! / Que coisa me pedes tu!

Guardei na gaveta as fúrias, / E os raios no meu baú.

Falo aos burgueses das tendas, / Cumprimento a vizinhança,

E arranjo às vezes merendas / Nos bosques, com Sancho Pança.

Meninas sérias, esguias, / Dizem-me já com amor:

– Doutor, como vai? Bons dias! / Tem feito versos, Doutor? –

Entrando eu não sei onde / Disse um banqueiro opulento:

– “Li nos jornais, senhor conde, / Que este rapaz tem talento”. –

E um discreto conselheiro / Murmurou do seu lugar:

“Quem é?” – É o Guerra Junqueiro. –  / “Ah! Sim… já ouvi falar.” –

A minha vida é a mesma / Que teve, dormindo ao sol,

Diógenes – essa lesma / Na pipa – esse caracol.

Deito-me às ave-marias / Co’a consciencia regalada,

E tiro todos os dias / O meu chapéu à alvorada.

E enfim nas ervas do prado, / Nas tenras ervas felizes

Rolo o corpo ensanguentado, / Coberto de cicatrizes.

E, farto de ver abrolhos, / E de ter desassossegos,

Deixo pastar os meus olhos / No azul – como dois borregos.

É possivel que isto mude; / Sim é possivel talvez:

O génio é irmão da saúde, / Eu tenho saúde há um mês.

Andar num trabalho eterno / Quebra o corpo mais viril;

Sai do descanso do inverno / Todo o murmúrio d’ Abril

Até Hércules descansa: / Além anda neste instante

A rir como uma criança / Na encosta, esse bom gigante.

Olha: deitou-se ao comprido / Nas frescas ervas mimosas.

Junto dele anda Cupido / Contando histórias às rosas.

E enquanto o gigante dorme / Entre as roseiras vermelhas,

E vêm ao seu corpo enorme / Poisar sem medo as abelhas,

Na clave grosseira e bruta / Que a tronco enorme equivale,

Cupido co’a mão astuta, / Sorrindo escreveu – Onfale.

E, apesar da inscrição terna, / Co’a mesma clave no entanto,

Matará a hidra de Lerna / E o javali de Erimanto.

Precisa depois do Outono / Repouso a terra mais forte.

Eu creio que este meu sono / Não é ainda o da morte.

Dormir faz bem às canseiras / Dos grandes trabalhadores;

Quem é que viu amendoeiras / Sempre cobertas de flores?

Além vai o Deus romântico, / Já murchos os seus lauréis,

À grande pia do Atlântico / Dar de beber aos corcéis.

Pobres corcéis! Vão de rastros, / Retalhados pelo açoite,

Comer a aveia dos astros / Nas manjedoiras da noite.

Mas amanhã romperão / De novo do sorvedoiro,

Iluminando a amplidão / No azul – com as crinas de oiro!

Haveria mais, haveria sobretudo outra poesia para saborear. Fica para outra oportunidade.

Noticia Bibliográfica:

Obra de um moço de 29 anos, A Musa em Férias foi publicado em 1ªedição em 1879, ano que viu também a publicação de O Melro, obra-prima da poesia portuguesa e poemeto simultâneamente anti-clerical, de enorme dimensão humana e com nítida inspiração panteísta, a qual, de forma menos eloquente, perpassa nas poesias aqui deixadas. A Musa em Férias é um livro onde falta a unidade temática comum às restantes obras do poeta, o que o título evidencia. Em 1893 a obra conheceu uma 3ª edição corrigida e aumentada de 5 novos poemas.

Na transcrição utilizámos a edição da Lello & Irmão com actualização ortográfica.

Poeta do Panteão Nacional, a sua obra aguarda ainda a edição crítica que expurgue das edições em circulação, as gralhas tipográficas que muitas vezes maculam a irrepreensível metrificação de Junqueiro.

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