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A profissão levou-me a um bairro poético. Moradias isoladas repousavam entre o silencio de pinheiros centenários dando aos seus moradores a tranquilidade de ruas com nomes de livros de poesia.
São livros que hoje ninguém lê – Campo de Flores – Folhas Soltas – Luar de Janeiro – A Musa em Férias e mais alguns.
Na diversidade dos seus autores são livros onde se espraia um olhar nostálgico pela natureza saída da criação divina, e onde a presença do homem tantas vezes entra em conflito com essa harmonia primordial.
Releio alguns poemas de A Musa em Férias onde esse contraste ressalta.
É um Guerra Junqueiro (1850 – 1923), nos antípodas do combatente politico pela dignidade humana cantada em longo e sonoros alexandrinos, quem, embalado em quadras singelas numa toada musical da palavra, cruza a ironia cáustica do feroz crítico social com um encanto deslumbrado da natureza.
IDÍLIO
Ah, que inefável pureza! / Que candura imaculada!…
Dir-se-ia que a Natureza / Nasceu esta madrugada!…
A primavera opulenta, / Estremecendo d’amores,
Palpita, anseia, rebenta / Em cataclismos de flores.
Os velhos sátiros nus / Correm atrás das bacantes…
A cor, o perfume e a luz / Dão saturnais deslumbrantes.
O olhar d’oiro das boninas / Contempla o azul; ao vê-las,
Dir-se-ia que nas campinas / Cairam chuvas de estrelas.
Uns feitos para a batalha, / Com a guerra por destino,
Puseram cotas de malha / De aço e bronze e d’oiro fino.
Outros, artistas mimosos, / Vestem librés refulgentes
Dos veludos mais preciosos / Das rendas mais transparentes.
Não sei que orgia incorpórea / Embebeda o pensamento…
A natureza é a glória; / O azul, um deslumbramento.
Tudo ri e brilha e canta / Neste divino esplendor:
O orvalho, o néctar da planta, / O aroma, a lingua da flor.
Enroscam-se aos troncos nus / As verdes cobras da hera.
Radiosos vinhos de luz / Cintilam pela atmosfera.
Entre os loureiros das matas, / Que crescem para os heróis,
Dá o luar serenatas / Com bandas de rouxinóis.
É a terra um paraíso. / E o céu profundo lampeja
Com o inefável sorriso / Da noiva – ao sair da igreja.
E o homem – verme do asfalto, / Que traz deus na consciencia,
O homem que está no alto / Da montanha da existência,
Que faz entre as harmonias / Deste esplendoroso assombro?
– Vai ouvir as cotovias, / Levando a espingarda ao ombro.
Funcionando como um corte vital, esta visita às fontes é uma recusa deliberada das práticas poéticas anteriores, talvez reflexos dum cansaço temporário da luta – Eu venho cheio de mágoa, / Venho triste, ó meus amores, / Como uma fonte sem água, / Como uma jarra sem flores. – onde uma componente biográfica certamente explica a mutação. Os poemas não são datados, pelo que os conflitos e a luta interior que conduziram o poeta a aderir ao Partido Progressista no ano da publicação deste livro não são neles escrutináveis. Fica-nos este louvor panteísta que continua:
CONVALESCENÇA
Ó verde bosque tranquilo, / O Natureza ridente,
Venho pedir-te um asilo, / Um quarto para um doente.
Chego morto de cansaço, / Triste como um lord inglês;
Pôs-me o Terreiro do Paço / No estado em que tu me vez.
O meu espirito anda / Como nem tu imaginas…
Lisboa, é verdade, manda / Recados para as boninas.
Eu venho cheio de mágoa, / Venho triste, ó meus amores,
Como uma fonte sem água, / Como uma jarra sem flores.
Esta frescura remoça / As anemias do asfalto.
Olha um melro a fazer troça, / Brejeiro, ao meu chapéu alto!
A floresta não precisa / As etiquetas das valsas:
As ninfas não têm camisa, / E os faunos não usam calças.
Silenos gordos e calvos, / A rir com um riso estranho
Espreitam os corpos alvos / Das loiras ninfas no banho.
Um deles, que traz muletas, / E a quem já falta um chavelho,
Segreda coisas facetas / Que têm pimentão vermelho.
Os faunos adolescentes, / Ouvindo pilhérias tais,
Abraçam-se, que indecentes!, / Aos troncos dos salgueirais!…
E um loiro silenozinho, / Guloso de bons segredos,
Dilata o róseo focinho, / A rir e a morder nos dedos…
Rosas, lírios, mocidade, / Abri-vos, cantai agora!
Dê salvas de hilaridade / O rubro canhão da aurora!,
Que além vem graciosa e nua / Vénus! Que esplendido seio!
São dois requeijões de Lua / Com dois morangos no meio!…
***
Deixemos por um instante / As coisas graves e sérias;
Declaro-me um estudante / Com quinze dias de férias.
Ando dispéptico, exangue, / Para as veias esfalfadas
Quero a transfusão do sangue / Ridente das madrugadas.
Despindo a guerreira farda, / A farda dos generais,
Licenceio a velha guarde / Das minhas odes marciais.
Doidas estrofes leoninas, / Amazonas impetuosas,
Carregai-me essas clavinas / De aurora e botões de rosas.
Carnificinas, deixá-las. / Hoje as hostes inimigas,
Em vez de as matar com balas / Picá-las-ei com ortigas.
Vamos! Riam, contem casos / Alegres, bons, maganões;
E dos elmos façam vasos / Para pôr manjericões.
Deixem os ultramontanos / Nas suas negras roupetas;
Depois de caçar tiranos / Vamos caçar borboletas.
Toca a fazer um idílio / À sombra dum castanheiro
Desçam dos corcéis; Virgílio / Que os vá deitar ao lameiro.
Pendurem as velhas lanças / Nos troncos dos salgueirais,
E riam como as crianças, / Ou como os melros joviais.
Entre os aromas dos buxos / Eu quero que os meus soldados,
Em vez de morder cartuchos, / Mordam pêssegos doirados.
Encravem-me em dois minutos / Esses canhões assassinos
De bombardear os redutos / Com bombas de alexandrinos.
E enfim largando as espadas, / Com toda a fúria guerreira
Levem-me entre gargalhadas, / D’assalto – uma cerejeira!
Embora querendo-se isolado e gozando Deste esplendoroso assombro, a cidade não o deixa e, implacável de ironia, lá vai esta resposta:
SEGUNDA CARTA
(A UM AMIGO QUE CONTINUA A PEDIR-ME VERSOS)
Não peças mais versos, não! / Não faças com que eu me zangue;
A teta da inspiração / Ordenho-a— e já bota sangue.
Deixa-me estar sossegado; / Eu a luta abandonei-a;
Tive baixa de soldado / E vim viver para a aldeia.
Levo a existência pacata / Dos grandes bonacheirões;
E arrumei a um canto a lata / Com que eu fabrico os trovões.
Pedes-me estrófes purpúreas! / Que coisa me pedes tu!
Guardei na gaveta as fúrias, / E os raios no meu baú.
Falo aos burgueses das tendas, / Cumprimento a vizinhança,
E arranjo às vezes merendas / Nos bosques, com Sancho Pança.
Meninas sérias, esguias, / Dizem-me já com amor:
– Doutor, como vai? Bons dias! / Tem feito versos, Doutor? –
Entrando eu não sei onde / Disse um banqueiro opulento:
– “Li nos jornais, senhor conde, / Que este rapaz tem talento”. –
E um discreto conselheiro / Murmurou do seu lugar:
“Quem é?” – É o Guerra Junqueiro. – / “Ah! Sim… já ouvi falar.” –
A minha vida é a mesma / Que teve, dormindo ao sol,
Diógenes – essa lesma / Na pipa – esse caracol.
Deito-me às ave-marias / Co’a consciencia regalada,
E tiro todos os dias / O meu chapéu à alvorada.
E enfim nas ervas do prado, / Nas tenras ervas felizes
Rolo o corpo ensanguentado, / Coberto de cicatrizes.
E, farto de ver abrolhos, / E de ter desassossegos,
Deixo pastar os meus olhos / No azul – como dois borregos.
É possivel que isto mude; / Sim é possivel talvez:
O génio é irmão da saúde, / Eu tenho saúde há um mês.
Andar num trabalho eterno / Quebra o corpo mais viril;
Sai do descanso do inverno / Todo o murmúrio d’ Abril
Até Hércules descansa: / Além anda neste instante
A rir como uma criança / Na encosta, esse bom gigante.
Olha: deitou-se ao comprido / Nas frescas ervas mimosas.
Junto dele anda Cupido / Contando histórias às rosas.
E enquanto o gigante dorme / Entre as roseiras vermelhas,
E vêm ao seu corpo enorme / Poisar sem medo as abelhas,
Na clave grosseira e bruta / Que a tronco enorme equivale,
Cupido co’a mão astuta, / Sorrindo escreveu – Onfale.
E, apesar da inscrição terna, / Co’a mesma clave no entanto,
Matará a hidra de Lerna / E o javali de Erimanto.
Precisa depois do Outono / Repouso a terra mais forte.
Eu creio que este meu sono / Não é ainda o da morte.
Dormir faz bem às canseiras / Dos grandes trabalhadores;
Quem é que viu amendoeiras / Sempre cobertas de flores?
Além vai o Deus romântico, / Já murchos os seus lauréis,
À grande pia do Atlântico / Dar de beber aos corcéis.
Pobres corcéis! Vão de rastros, / Retalhados pelo açoite,
Comer a aveia dos astros / Nas manjedoiras da noite.
Mas amanhã romperão / De novo do sorvedoiro,
Iluminando a amplidão / No azul – com as crinas de oiro!
Haveria mais, haveria sobretudo outra poesia para saborear. Fica para outra oportunidade.
Noticia Bibliográfica:
Obra de um moço de 29 anos, A Musa em Férias foi publicado em 1ªedição em 1879, ano que viu também a publicação de O Melro, obra-prima da poesia portuguesa e poemeto simultâneamente anti-clerical, de enorme dimensão humana e com nítida inspiração panteísta, a qual, de forma menos eloquente, perpassa nas poesias aqui deixadas. A Musa em Férias é um livro onde falta a unidade temática comum às restantes obras do poeta, o que o título evidencia. Em 1893 a obra conheceu uma 3ª edição corrigida e aumentada de 5 novos poemas.
Na transcrição utilizámos a edição da Lello & Irmão com actualização ortográfica.
Poeta do Panteão Nacional, a sua obra aguarda ainda a edição crítica que expurgue das edições em circulação, as gralhas tipográficas que muitas vezes maculam a irrepreensível metrificação de Junqueiro.
Olá! Por favor, poderiam ajudar-me a localizar um poema do autor, que versa sobre a candura e a inocência de duas crianças, um menino e uma menina, é cheio de lirismo e retrata a inocência da infância… Ouvi trechos de um velho, saudoso, amigo já falecido que me apresentou o autor, pela primeira vez, a muitos anos atrás quando recitava trechos da coletânea, A Musa em Férias e a Velhice do Padre Eterno, e também a Agonia do Castanheiro… Muito Obrigado, pela ajuda preciosa..
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Penso que se refere ao longo poema (em sete partes) As Crianças. O poema abre o livro primeiro de A Musa em Férias. Trata da relação de dois irmãos com os seus brinquedos e brincadeiras, a sua assimilação com elas à vida dos adultos, e a tragédia que para a menina é a destruição da boneca de trapos, que trata como filha, pelo impulsivo irmão.
Carlos Mendonça Lopes
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Olá. Você poderia me ajudar a identificar um poemas de Guerra Junqueiro? Eu só tenho um trecho dele e gostaria de saber o título, bem como o livro em que foi publicado. Transcrevo o trecho que possuo para que você possa analisar. Grata.
A ideia que conduz.
Nas entranhas de bronze o espírito da luz,
Esmagado os repteis, sorrindo aos exorcismos,
Transpõe como um leão as curvas dos abismos
Imprimindo na treva um sulco flamejante
Quando encontra um chacal, esmaga-o, passa adiante
Porque, para suster a marcha à liberdade
Não existe poder, nem cárcere, nem grade,
Nem velhas tradições, nem velhos pretorianos:
É uma ideia que cai do alto de seis mil anos,
Até que toda a alma e todo o peito humano
Seja um ninho de luz e seja um vaticano D’amor Universal (GUERRA JUNQUEIRO)
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Paula Guimarães, obrigado pela pergunta.
O fragmento que transcreve pertence à Introdução do livro-poema A Morte de D. João.
É parte da fala de “uma mulher estranha, … Nas forma colossais, olímpicas, altivas, …” que se dirige ao poeta.
Os dois últimos versos que a Paula transcreve não se encontram em sequência e surgem um pouco mais à frente.
Deixo-lhe um link para um e-book da 1ª edição do livro (1874), sendo que o poeta na 4ªedicao em 1887 procedeu a algumas emendas.
Até breve,
Carlos Mendonça Lopes
https://archive.org/stream/amortededjoo00junqgoog#page/n11/mode/2up
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