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Se alguém levado pela curiosidade de um nome de rua quiser conhecer a poesia de Gonçalves Crespo, encontrará as maiores dificuldades.

Ao que julgo saber, a última edição em Portugal das  suas OBRAS COMPLETAS foi feita em 1913, há quase cem anos, portanto. E no entanto, no seu tempo, muitas das suas poesias foram conhecidas de cor nos salões de Portugal. Como por exemplo aquela   A SESTA em que uma crioula repousa na rede enquanto o negro que a embala a come com os olhos.

Lido o poema em voz alta, a suave dolência do quadro e o embalar da cena saltam do andamento dos versos numa simbiose perfeita.

Ora experimente:

A  SESTA

Na rede, que um negro moroso balança,

Qual berço de espumas,

Formosa crioula repousa e dormita,

Enquanto a mucamba nos ares agita

Um leque de plumas

 

Na rede perpassam as trémulas sombra

Dos altos bambus;

E dorme a crioula de manso embalada,

Pendidos os braços da rede nevada

Mimosos e nus.

 

A rede, que os ares em torno perfuma

De vivos aromas,

De súbito pára, que o negro indolente

Espreita lascivo da bela dormente

As túmidas pomas.

 

Na rede suspensa dos ramos erguidos

Suspira e sorri

A lânguida moça cercada de flores;

Aos guinchos dá saltos na esteira de cores

Felpudo saguí.

 

Na rede, por vezes, agita-se a bela,

Talvez murmurando

Em sonhos as trovas cadentes, saudosas,

Que triste colono por noites formosas

Descanta chorando.

 

A rede nos ares de novo flutua,

E a bela a sonhar!

Ao longo nos bosques escuros, cerrados,

De negros cativos os cantos magoados

Soluçam no ar.

 

Na rede olorosa, silêncio! Deixai-a

Dormir em descanso!…

Escravo balança-lhe a rede serena;

Mestiça, tem leque de plumas acena

De manso, de manso…

 

O vento que passa tranquilo, de leve,

Nas folhas do ingá;

As aves que abafem seu canto sentido;

As rodas do engenho não façam ruído,

Que dorme a Sinhá!

Este ambiente de sanzala, recordação da infância no Brasil, não é temática exclusiva da sua poesia, mas é destas memórias que saem alguns dos seus mais belos poemas, como nesteoutro poema, AS VELHAS NEGRAS, onde, num registo diferente, realçando a paz da noite envolvente da sanzala,

Na floresta rumorosa / Esparge a lua formosa / A clara luz tropical.

nos fala do lazer magoado dos negros cativos:

Que noite de paz! que noite! / Não se ouve o estalar do acoite, / Nem as pragas do feitor! / E as pobres negras, coitadas, / Pendem as frontes cansadas N’um letárgico torpor!

Na elegância que a caracteriza, fazendo fluir o verso com natural suavidade, somos levados para aquele mundo de contrastes violentos entre senhores e escravos, apenas com uma palavra aqui outra acolá, pintando um quadro onde as velha negras meditam a vida:

Conheceram muito dono: / Embalaram tanto sono / De tanta sinhá gentil! / Foram mucambas amadas, / E agora inuteis, curvadas, / N’uma velhice imbecil!

Eis o poema:

 

AS VELHAS NEGRAS

 

As velhas negras, coitadas,

Ao longe estavam sentadas

Do batuque folgazão.

Pulam creoulas faceiras

Em derredor das fogueiras

E das pipas de alcatrão.

 

Na floresta rumorosa

Esparge a lua formosa

A clara luz tropical.

Tremeluzem pirilampos

No verde escuro dos campos

E nos côncavos do val.

 

Que noite de paz! que noite!

Não se ouve o estalar do acoite,

Nem as pragas do feitor!

E as pobres negras, coitadas,

Pendem as frontes cansadas

N’um letárgico torpor!

 

E cismam: outrora, e d’antes

Havia também descantes,

E o tempo era tam feliz!

Ai! que profunda saudade

Da vida, da mocidade

Nas matas do seu país!

 

E ante o seu olhar vazio

De esperanças, frio, frio

Como um véu de viuvez,

Ressurge e chora o passado

– Pobre ninho abandonado

Que a neve alagou, desfez…

 

E pensam nos seus amores

Efémeros como as flores

Que o sol queima no sertão…

Os filhos quando crescidos,

Foram levados, vendidos,

E ninguém sabe onde estão.

 

Conheceram muito dono:

Embalaram tanto sono

De tanta sinhá gentil!

Foram mucambas amadas,

E agora inuteis, curvadas,

N’uma velhice imbecil!

 

No entanto o luar de prata

Envolve a colina e a mata

E os cafezais em redor!

E os negros mostrando os dentes,

Saltam lépidos, contentes,

No batuque estrugidor.

 

No espaçoso e amplo terreiro

A filha do fazendeiro,

A sinhá sentimental,

Ouve um primo recém-vindo,

Que lhe narra o poema infindo

Das noites de Portugal.

 

E ela avista, entre sorrisos,

De uns longínquos paraísos

A tentadora visão…

No entanto as velhas, coitadas,

Cismam ao longe sentadas

Do batuque folgazão…

 

É de Teixeira de Queiroz, companheiro de uma vida, desde estudante em Coimbra até à véspera da morte, que me socorro para transmitir um retrato do poeta, senhor de um riso de bondade e de uma ironia travessa e inofensiva:

No seu quarto de estudo[em Coimbra]… entrava todo o mundo e todo o mundo era bem acolhido. A força de simpatia que este excelente rapaz resumia era um tesouro. Os neófitos da literatura procuravam-no animosamente sem o conhecerem, e em poucos minutos de conversação, quase se transformavam em íntimos amigos do poeta. Este traço vivo do seu carácter, conservou-o toda a vida, mesmo quando já era um nome laureado. Muitas vezes, no seu gabinete da Travessa de Santa Catarina, em Lisboa, encontrei indivíduos totalmente desconhecidos, que o Crespo me apresentava como notáveis poetas, romancistas e dramaturgos e que, afinal de contas, eram somente apreciáveis cavalheiros do Rio Grande do Sul, de Macau, ou do Alentejo, os quais ele conhecera pela primeira vez nesse dia, o que não obstava a tratarem-se reciprocamente como companheiros de colégio.

(in Prólogo de Teixeira de Queiroz à 3ª edição de MINIATURAS em 1884, publicada após a morte do poeta. Este é o retrato fascinante de uma personalidade, escrito num português cuja elegância o excerto evidencia)

e continuo a citar:

O segredo do seu proverbial poder de atracção compunha-se de elementos bem diversos. Alguns vinham do seu talento de poeta, outros da sua ciência de conversar, outros finalmente da sua distinção pessoal. Combinava-os a todos instintivamente… A voz insinuante, o olhar vivo de míope, tendo doçuras e lampejos, iluminava-lhe a palavra persuasiva; os dentes brancos, iguais como os dum pente de marfim, sobressaiam na cor escura do seu rosto, dando a esta fisionomia singular uma expressão que rarissimamente se encontra. Crespo não tinha nada da vulgaridade dos homens formosos, nem mesmo do ridículo dos homens bem parecidos; porém todas as pessoas que se aproximavam dele confessavam que era um rosto atraente e de uma mobilidade cativante.

Crioulo, nascido no Rio de Janeiro de pai português, aos 10 (14?) anos veio para Portugal, que adoptou como Pátria e onde foi deputado (legislaturas de 1879 e 1882). Licenciado em Direito em Coimbra em 1875, onde estudou e foi condiscípulo de João Penha e Guerra Junqueiro, entre outras personalidade de menor memória, casou com Maria Amália Vaz de Carvalho, influente personalidade da época, e ao Brasil nunca mais voltou.

Como refere Maria Amália Vaz de Carvalho, foi o livro MINIATURAS que a levou ao casamento, ou nas suas palavras “Pareceu-me que era um poeta como aquele, que eu positivamente tinha esperado havia muito, e que ele chegara;”.

É em Maria Amália Vaz de Carvalho que encontro uma caracterização penetrante da poesia de Gonçalves Crespo, referindo-se a essa poesia como parnasiana a qual junta: “a suavidade, a melodia, a correcção do metro, ao sentimento profundo, à compreensão clara,… da alma contemporânea”.

Possa a escolha poética que fiz traduzir a verdade destas considerações.

Vamos então a mais poesia.

Depois das recordações tropicais aproximemo-nos desta poesia de salão com as várias sínteses do amor vivido em sociedade, e contado com a suavidade apanágio do autor:

 

UM NUMERO DO INTERMEZZO

 

Ria, tomando chá em torno à mesa,

Da sociedade a flor;

E no campo de estéticas opostas

Discutia-se o amor.

 

“O amor deve ser etéreo e puro,!

O conselheiro diz.

Sorrindo, a conselheira um ai! abafa

Com gestos de infeliz.

 

Diz i cónego: “ O amor destrói, mas quando

Sensual, já se vê!”

A donzela pergunta ingenuamente:

“Reverendo, porquê?”

 

A condessa murmura em voz dolente:

“O amor é uma paixão”

E lânguida uma chávena oferece

Ao pálido barão.

 

Era vago um lugar em torno à mesa;

Era o teu, minha flor!

Tu, só tu, poderias, se o quisesses,

Dizer o que era amor!

 

Num contrate surpreendente com este suave amor de salão, aí vai o desejo solitário da paixão de uma negra por um branco no poema A NEGRA:

Nas esteiras, à noite, o teu corpo estiras / E com ânsias sem fim, / Levas aos seios nus, beijas e aspiras / Um cândido jasmim…

É uma força primordial que rompe neste retrato de mulher em desejo onde o poeta vê não apenas a fêmea: Teu corpo é forte, elástico, nervoso, mas também o ser humano apaixonado: Mas andas triste, inquieta e distraída / .. E no escuro das matas, escondida, / Soltas magoados ais…

 

A  NEGRA

Teus olhos, ó robusta creatura,

Ó filha tropical!

Relembram os pavores de uma escura

Floresta tropical!

 

És negra sim, mas que formosos dentes,

Que pérolas sem par

Eu vejo e admiro em rubidos crescentes

Se te escuto falar!

 

Teu corpo é forte, elástico, nervoso,

Que doce a ondulação

Do teu andar, que lembra o andar gracioso

Das onças do sertão!

 

As lânguidas sinhás, gentis, mimosas,

Desprezam tua cor,

Mas invejam-te as formas gloriosas

E o olhar provocador.

 

Mas andas triste, inquieta e distraída;

Foges dos cafezais

E no escuro das matas, escondida,

Soltas magoados ais…

 

Nas esteiras, à noite, o teu corpo estiras

E com ânsias sem fim,

Levas aos seios nus, beijas e aspiras

Um candido jasmim…

 

Amas a lua que embranqueou os matos,

Ó negra jurity!

A flor da laranjeira, e os níveos catos

E tens horror de ti!…

 

Amas tudo o que lembre o branco, o rosto

Que viste por teu mal,

Um dia que saías, ao sol posto,

De um verde taquaral…

Vai longo o artigo. Haveria mais alguns poemas a merecer inclusão como Alguém e outros. Termino com este soneto à lacrimosa estátua da amargura, provavelmente a mãe, de quem se despediu uma vez, para não voltar a ver.

Poema de despedida, na praia de todos os adeus o esplendor da natureza indiferente mostra Dos céus a curva tranquila e pura.

 

MATER DOLOROSA

Quando se fez ao largo a nave escura

Na praia essa mulher ficou chorando,

No doloroso aspecto figurando

A lacrimosa estátua da amargura.

 

Dos céus a curva era tranquila e pura:

Das gementes alciones o bando

Via-se ao longe, em círculos voando

Dos mares sobre a cérula (*) planura.

 

Nas ondas se atufara o sol radiosos,

E a lua sucedera, astro mavioso,

De alvor banhando os alcantis das fragas…

 

E aquela pobre mãe, não dando conta

Que o sol morrera, e que o luar desponta,

A vista embebe na amplidão das vagas…

(*) azul

 

Noticia e minudências bibliográficas:

São dois os livros publicados em vida por Gonçalves Crespo: Miniaturas, ainda solteiro e no tempo de Coimbra, em 1870, e Nocturnos, já casado com Maria Amália Vaz de Carvalho.

A edição das OBRAS COMPLETAS, preparada pela viúva, saiu em Lisboa, em 1897, com alguns poemas inéditos e textos em prosa. A edição foi de TAVARES CARDOSO & IRMÃO – EDITORES.

À margem comento que, como vem sendo costume, asneira que surja na net em site que deveria ter responsabilidade, propaga-se como cogumelos depois da chuva. É consultar o Google e ver por todo o lado a data de edição das OBRAS COMPLETAS ser 1887. Acontece que o volume que possuo tem lá escrito 1897. Onde foi esta gente buscar a data de 1887?

Mas voltemos à obra do poeta.

Existem noticias de colaboração dispersa por jornais através de artigos de comentário, nomeadamente. A ajuizar pela prosa incluída em OBRAS COMPLETAS, onde a graça se associa à elegância do estilo e à penetração da observação, valeria certamente a pena a sua leitura.

Os juízos sobra a obra do poeta que circulam pelas diferentes histórias da literatura e dicionários que consultei lêem-se uns aos outros sem visitar a obra do poeta. Entretidos com a conversa de Parnasianismo, segmentam e tresleem sem ter lido.

Porque citam sem ler, nos artigos sobre o poeta, que a edição das OBRAS COMPLETAS saída em 1897 é prefaciada por Teixeira de Queiroz e Maria Amália Vaz de Carvalho, tanto Urbano Tavares Rodrigues no DICIONÁRIO DE LITERATURA dirigido por Jacinto do Prado Coelho, Figueirinhas 1983, como A. S. Fernandes Viegas no DICIONÁRIO DO ROMANTISMO LITERÁRIO PORTUGUÊS coordenado por Helena Carvalhão Buescu, Caminho 1997, como Etelvina Santos no DICIONÁRIO DE LITERATURA PORTUGUESA dirigido por Álvaro Manuel Machado, Editorial Presença 1996, aproveito para precisar que as “OBRAS COMPLETAS” são “precedidas de uma advertência prévia” [sic] por JOSÉ DE SOUSA MONTEIRO, segue-se-lhe o Prólogo de Teixeira de Queiroz que acompanhou a 3ªedição de MINIATURAS em 1884 e no final de MINIATURAS encontra-se  um ESTUDO CRÍTICO  de Maria Amália Vaz de Carvalho, escrito depois da morte do poeta, por volta de 1887 e que a mesma editou previamente no seu livro “Alguns Homens do Meu Tempo” em1889.

Todos os artigos  destes dicionários referem 1871 como data da 1ªedição de Miniaturas. Não tive oportunidade de consultar um exemplar dessa edição, pelo que não posso confirmar esta data, sendo que M.A. Vaz de Carvalho no citado ESTUDO CRÍTICO  refere 1870 como data desta 1ªedição, tal como Mendes dos Remédios na sua História da Literatura Portuguesa. Este último acrescenta que a melhor edição de MINIATURAS é a 6ª de 1923, sem adiantar qualquer motivo. É edição que não conheço e não vi mencionada por mais ninguém.

Todos os artigos que referi citam Gonçalves Crespo e António Feijó como os únicos representantes em Portugal do Parnasianismo, movimento poético que floresceu em França no 3º quartel do século XIX. Talvez seja verdade, e estes poetas sejam seus lídimos representantes no Portugal de oitocentos. Quem sou eu para duvidar. Lida a obra tanto de um como de outro, obras que prezo especialmente, encontro lá mais que seguimento de escola  E fora apenas esse o caso, a obra tanto de um como do outro bem merecia uma edição crítica e uma nova leitura informada e despreconceituada que a trouxesse para junto de novos leitores, eventualmente agradecidos. Neste blog, o artigo sobre António Feijó teve picos de leitura à data da sua publicação.

Filha ou não de qualquer escola francesa, é uma poesia a que vale a pena voltar uma vez por outra.