Etiquetas
Ocupado a trabalhar para a reforma, esqueci-me de viver. Hoje, pequeno livro aberto leio:
FASTIO
Quem me faz descer desta mansarda já,
onde me icei?
Farto estou já de estar sozinho
a caçar as moscas,
como se minha fosse a voz irada
que assim me mantém
divinizado.
Com a pressa de não ter nada que fazer, olhei o dia.
NOVO DIA
A manhã sobe
na minha vidraça
Ó penumbra nítida!
Ó claridade!
A manhã rebenta
como explosão
Salto remoçado
da cama pró chão.
Ó realidade
crescida, sincrónica,
sempre afirmação
só para quem ama!
A manhã vibrou
numa gota fina
suspensa da folha
que à janela assoma.
Que manhã tão fria
me anuncia inverno.
Quanto arrepio
na minha cidade.
Medito na vida
ano após ano
um mês repetido
sempre um desengano.
Estava sol e hesitei: fico em casa? Não, vou à Baixa. Entre a vidraça espreita
CAPARICA ALÉM
Luz e mais luz é o que eu quero,
translúcido à luz que me atravessa
e desenha na parede branca
as linhas puras do desejo oculto.
Luz é o que avança e me prende
às formas inefáveis, ao meu espírito
fugaz, mas delírio célere
de lâminas, vertigem-vácuo.
E da janela que me atrasa eu vejo
montes além, o dominio da praia
onde os passos são ondas e retraem
paisagem povoada de almas.
Afinal vou à Baixa!
Ir à baixa é uma ocupação de coisa nenhuma. Encontramos o Fernando, lembramo-nos do Esteves ao passar na Tabacaria, tropeçamos no pedinte de olhos tristes por profissão. Se formos pelas bandas do Martim Moniz e Mouraria, lá estará o corvo Vicente, sim porque embora o Cardoso Pires não diga onde mora o corvo, sempre achei que devia ser para aquelas bandas. Enfim, enquanto as pernas andam olhamos em redor e distraímos o espírito.
TRÂNSITO
A navegação parava
a meio do rio,
como a sinalização
nos Restauradores, no Rossio.
Paragem demorada,
signo vermelho na mão
mais do que em qualquer cidade
da Europa lembrada.
No rio, era mansa a tarde
em que aflitos os navios
esperam a vez de virar
rebocados pelo piloto.
Na cidade, o peão
apalermado, ciente
de que a qualquer momento
pode atravessar sem perigo.
Ora lembrando o contraste
desta cidade e do rio,
havia um homem pausado
no olhar, na intenção.
Dizia, de si para si:
Lisboa é uma aventura
qualificada de repente
morte lenta ou suicídio.
Mas tão bela que é valente
até na estúpida falta
de conceito ou de estrutura
mental ou de relação.
Havia a atracção do rio
e do mar, depois seguindo
brumas de bastidor
do continente perdido.
O que há agora, eu sei:
desastre após desastre,
a navegação parada
a meio do rio.
E eu, homem pausado no olhar, na intenção , vejo:
ALEGRIA
Novidade é uma rapariga solta
que passa,
me afaga,
redime
quando nela fito
os meus olhos pidescos
e rio.
FACTO
Tenho aprendido muito convosco, ó amigos homens,
a gostar de aventuras e, sobretudo,
mulheres, ao alto, ao lado, ao fundo
e, adormecido, sonhar fora do mundo.
7/12/76
Mas estou acordado e vejo o rio, o rio que dá cabo de mim:
QUASE UMA ODE AO TEJO
…
O rio dá cabo de mim.
Quando volto a casa, subo a escada,
abro a janela, olho o rio,
sorrio, bebo uisque ou limonada,
tanto se me dá – é sempre um rio.
Tejo – aventura desaguada – ,
livre de mim, enfim, segue o destino
seguido pela mal amada
que bate à tua porta, insiste e nada
persiste do que fora infindo.
…
Quem pudesse continuar esquecido de mim em ti
O TÉDIO RECOMPENSADO
I
Entre mulheres, eu sinto-me cansado.
Veio profundo
corre por mim
que aflora antigas ocorrências,
que me demovem
a fastidiosas empresas.
Sorrio agora
quando muito.
Há supercílios oculares que iludem
a passagem do tempo.
II
Mulher, mulheres, mulher,
fruto proibido
pela carne que ma nega.
Fruto desejado,
tomá-lo-ei nas mãos. Afluirei
aromas de mulher,
com ócios masculinos, reflectindo,
delicado.
III
Saciado,
procuro os teus lábios
semiabertos. Flor
quase a abrir-se…
Meto os teus dedos
nos meus. Suspiro fundo.
E renuncio ao mundo
esquecido de mim em ti.
LISBOA À NOITE… EM MIM
Já a noturna sombra se adianta.
O dia evade-se
entre cansaços e meditação.
Contemplo pernas e braços.
Desmaio na minha face.
Doce a escultura da chuva
no vidro baço, na lisa
flutuação das imagens.
O vento lima as arestas
da minha imaginação.
Clamorosos no som passam os táxis
na pista do esquecimento.
Sussurram depois no fundo
da pergunta que não cessa, que não cessa
– obcessiva pergunta cega-rega.
Com o seu ar de polícias reformados
têm as suas preocupações
os motoristas
do transito alado
A noite julga-se imensa
O momento é de noivado.
É de noivado longínquo
e de choro a noite imensa.
Não magoes as palavras
com a tua sem-razão.
Recorda-te apenas só
numa verdade falida.
O muro excrementado, a morte iniludível,
são a tua mansarda, a tua fé na vida.
Não magoes as palavras,
nem lhes queiras mal por isso .
Afivela-te aos sapatos.
Afirma-te num sorriso.
Os teus amigos esperam-te.
Pergunta-lhes onde fica,
se lembram o paraíso.
FIM DE VIAGEM!
Noticia Bibliográfica:
A cidade destes poemas incluídos em tempo da cidade, publicação póstuma de 1996 na colecção forma da Presença, é a Lisboa de RUY CINATTI (1915 – 1986) segundo Peter Stilwell, o editor da obra póstuma de Cinatti, a Lisboa da casa-mansarda ao Bairro Alto com vista soberba sobre a Outra Margem, a Ponte Pênsil e Caparica Além, e datarão do final dos anos 60 tal como O Tédio Recompensado livro e poema do mesmo título publicado em 1968 por Guimarães Editores
FACTO é o primeiro de 56 POEMAS publicado NA REGRA DO JOGO em 1981, antologia escolhida entre os poemas policopiados dos anos anteriores e distribuidos em folhas volantes.
A pequena efabulação encenada com os poemas é da minha responsabilidade. Comentários aos poemas são desnecessários.