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Certo bacharel formado
Depois de muita canseira
Voltou a casa enfronhado
Na ciência financeira,
Com fumaças de estadista,
De sagaz economista,
Inventor de panaceias,
De altos e belos
Castelos,
Tendo só por fundamento
As movediças areias.
A mãe nele se revia
Ao ver tão grande talento.
O pai, que pouco sabia,
Mas tinha clara razão,
Deu-lhe um dia
Uma lição.
Estavam todos três sentados
A jantar.
Vêm franguinhos assados,
Mas só dois; o que notar
O velho fez à mulher.
Quis mostrar
O seu saber
Dizendo então o rapaz:
– “Onde há dois há um também
Que, com os outros, três perfaz.”
Volta-lhe o pai: – “ Dizes bem:
Come pois tu o terceiro,
Que o segundo e o primeiro
Como-os eu mais tua mãe.”
Estou velho. E em toda a vida
Sempre vi que nesta lida
De provar
Que pode um povo gastar
À larga mais do que tem,
O futuro antecipando,
Andavam economistas
(ou modernos alquimistas)
Até que vinha a verdade,
Sem piedade
Com tudo em terra pregando,
Fatalmente conseguir
Ficarem poucos a rir
E a maior parte a chorar.
Ou cedo ou tarde descamba
Quem dançar
Na corda bamba.
Henrique O’Neill publicou esta fábula na 1ª edição do seu livro In Memorian, em 1887, saído sem identificação do autor.
In Memorian é um livro de poesias e 53 fábulas. Terá havido um 2ªedição do livro em 1889 (que não conheço), de onde foram retiradas as fábulas e acrescentadas mais poesias.
A parte monumental da obra de Henrique O’Neill, é o Fabulário, gigantesca colecção de mais de 300 fábulas, umas de invenção própria, outras adaptadas de assuntos conhecidos desde Esopo e Fedro, que continuam a ler-se, na sua maior parte com o encanto da memória da infância.
Poeta do grupo O Trovador, sobre a sua poesia correm alguns juizos, talvez apressados, de negrume e morbidez, ao não realçarem a ironia que subjaz muitos dos seus poemas.
Como exemplo transcrevo o soneto À minha perna:
À MINHA PERNA
Depois de trinta dias de doença que teve o autor
seis meses de cama e o deixou coxo
Perna minha gentil, nunca te viste
Tanto tempo estendida em cama quente;
Não te vás amuar eternamente
Nem fique eu num só pé, cegonha triste.
Desceste escadas tantas e as subiste
A dois e dois degraus, perna valente;
E agora há trinta dias estás doente,
Diabo-coxo a ser me reduziste!
Vê lá, cruel, se pode merecer-te
Alguma cousa a desgraçada irmã
Com o peso todo d’este corpo inerte.
Se de todo a ciência não for vã:
Possa eu, perna minha, sempre ver-te
Fugir-lhe, caso um dia ficas sã.
O leitor, mesmo desprevenido, terá reparado como o eco do soneto de Camões, Alma minha, gentil, que te partiste, percorre todo este soneto À minha perna, numa saborosa brincadeira entre as perdas: da amada para Camões, da perna para O’Neill.