Etiquetas

,

Personagem de fábula e de lenda, escritor maior do nosso século XVII, foi Dom Francisco Manuel de Melo (1608-1666.10.13)  também poeta.

A sua poesia praticamente esquecida hoje, vitima de julgamentos datados, bem precisa de uma edição crítica que ao estudá-la, editando também a que permanece em manuscrito, chame a atenção para as várias pérolas que contém.

I

Responde a um amigo, que mandava perguntar a vida que fazia em sua prisão

Casinha desprezível, mal forrada;

Furna, lá dentro mais que inferno escura;

Fresta pequena, grade bem segura;

Porta só para entrar, logo fechada;

 

Cama que é potro; mesa destroncada;

Pulga que por picar faz matadura;

Cão só para agourar; rato que fura;

Candeia nem com os dedos atiçada;

 

Grilhão que vos assusta eternamente;

Negro, boçal; e mais boçal ratinho

Que mais vos leva que vos traz da praça!

 

Sem amor, sem amigo, sem parente,

Quem mais se dói de vós, diz: Coitadinho!

Tal vida levo. Santa prol me faça!

II

A  uma senhora que, estando de mui bom parecer, contraiu o parentesco de sogra

 

Quando deixareis vós de ser fermosa,

Minha senhora Dona Mariana?

Nunca jamais, se a vista não me engana,

Ou se a fé, mais que a vista, escrupulosa.

 

Filha vos conheci, e já vi rosa

Das que se preza Abril, Maio se ufana,

Que, em vendo essa beleza soberana,

Do prado se acolhia vergonhosa.

 

Conheci-vos esposa, em igual preço

Envejada das flores. Mas, que importa

Se mãe fostes, com raios semelhantes?

 

E até sogra, que agora vos conheço,

(contra o que dizem: nem de barro á porta…)

Aposto que inda sois como éreis dantes.

E ainda outro soneto:

III

 

Serei eu alguma hora tão ditoso,

Que os cabelos que amor laços fazia,

Por prémio de o esperar, veja algum dia

Soltos ao brando vento buliçoso?

 

Verei os olhos donde o sol fermoso

As portas da manhã mais cedo abria,

Mas em chegando a vê-los se partia,

Ou cego, ou lisonjeiro, ou temeroso?

 

Verei a limpa testa a quem a aurora

Graça sempre pediu? E os brancos dentes,

Por quem trocara as pérolas que chora?

 

Mas, que espero de ver dias contentes,

Se para se pagar de gosto uma hora,

Não bastam mil idades diferentes?

 

Se o corpo dos sonetos de Dom Francisco Manuel de Melo pode ser desigual, com o sublime ao lado do trivial, como,  julgo,  resulta evidente da escolha que aquí faço, as éclogas, de onde desapareceu o quadro pastoril, surgem como tese moral dialogada, dando a ver um curioso quadro mental da época.

Mas é sobretudo pelas cartas em verso que Dom Francisco Manuel de Melo merece ser lido, nomeadamente a carta conhecida como Canto da Babilónia:

 

Sôbolas águas correntes / de aqueles rios cantados / que a Babilónia levados / com lágrimas dos ausentes / chegam ricos e cansados.

 

Uma tarde me assentei / cheio de dor e fadiga / e hoje do que lá passei / me manda o tempo que diga / quanto em lágrimas direi.

 

Parafraseando Camões e a sua Sôbolos rios, Dom Francisco Manuel de Melo desenvolve em redondilha, ao longo de 500 versos, uma profunda e comovente reflexão sobre o sentido da vida tendo como ponto de partida os Salmos da Biblia e indo buscar à riqueza da sua experiência existencial, a matéria da sua formulação poética.

 

Mas tu, mas eu, que faremos, / Se nós mesmos fabricamos / O cavalo que adoramos / E dentro da alma metemos / O fogo em que nos queimamos?

Nota biográfica: As datas de nascimento e morte de Dom Francisco Manuel de Melo foram retiradas de

PRESTAGE, EDGAR, D. Francisco Manuel de Mello – Esboço biographico, Coimbra, Imprensa de Universidade, 1914.

Esta é uma obra fundamental no estudo da vida do autor e ainda hoje referência inultrapassada. Em diversos locais na net, nomeadamente  no site infopédia.pt, encontram-se referidas de forma errada, as datas de nascimento e morte do autor.