Etiquetas
Por este tempo de Natal, ao querer comprar uma prenda para uma criança da família, disseram-me da paixão do miúdo por dinossauros e outros monstros. Lembrei-me de quando o meu filho pelos sete/oito anos vivia apaixonado pelos monstros da moda, à época, umas chamadas tartarugas Ninja, e, depois, dinossauros, seguidos de toda uma galeria que lhes sucedeu, e certamente se reproduzirá ad seculum seculorum.
A um adulto como eu, o que chama primeiro a atenção é a estética do feio apanágio das figuras, o que parece deixar os infantes indiferentes. Com efeito, pensando na coisa sem preparação de especialista, concluo que para os miúdos aqueles seres corporizam o assustador do mundo por conhecer e, simultaneamente, nas suas acções, permitem à criança que joga e brinca, viver intensamente actos de coragem e bravura que significam a aprendizagem de vencer o medo e enfrentar o desconhecido que crescer na verdade é.
É ainda com a memória dessa época que recordo o entusiasmo com que o meu filho ouviu ler o poema O Mostrengo de Fernando Pessoa incluído no livro Mensagem. Nele, é também uma figura monstruosa e aparentemente invencível que, enfrentada pela pequenez de um capitão de coragem, é derrotada. Afinal a repetição da história bíblica de David e Golias.
A descrição poética do episódio do Adamastor em Os Lusíadas de Luís de Camões, para onde o poema O Mostrengo remete, é, do ponto de vista da infância, e para lá da dificuldade vocabular, totalmente diferente, ao que julgo. Em Camões, é tão só um relato de terror perante o monstro o que temos, reduzindo, por isso o apelo do episódio do Adamastor para estes jovens aprendizes da vida, pois, ao que suponho, é no desenlace por coragem que a atracção infantil por estes monstros reside.
Deixo-o, leitor, com os poemas.
O Mostrengo
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
Fernando Pessoa, in Mensagem
Camões, Os Lusíadas, Canto V
Estrofes 37- 40
37
«Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca de outrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando hüa noute, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Hüa nuvem, que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.
38
«Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo, o negro mar de longe brada,
Como se desse em vão nalgum rochedo.
“Ó Potestade (disse) sublimada:
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?”
39
«Não acabava, quando hüa figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
40
«Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo.
Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo,
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!
Sim..!!!
E até depois da infância a coragem ainda me impressiona!
GostarGostar