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É um prazer sempre renovado perder-me na poesia de Camões (1524-10 Junho 1580). Aos poemas familiares que cantam na cabeça nas mais inesperadas situações, e se renovam a cada leitura, acrescentam-se outros, fugazes, que no trivial da ideia nos levam ao encontro do homem por detrás do génio. Desses, transcrevo hoje três redondilhas em voltas sobre mote, onde de ardências de amor e esquivanças femininas se trata.
Começo com um poema de dúbio sentido onde calores masculinos se disfarçam.
Esforçaram-se especialistas em encontrar fundamento histórico para explicar a letra desta redondilha. Por mim é sem questão: é uma gabarolice em torno da firmeza da erecção do poeta e um convite ao acto sem destinatária identificada.
Mote
Quem disser que a barca pende,
dir-lhe-ei, mana, que mente.
Volta
Se vos quereis embarcar
e para isso estais no cais,
entrai logo; que tardais?
Olhai que está preiamar!
E se outrem, por vos fretar,
vos disser que esta que pende,
dir-lhe-ei, mana, que mente.
Esta barca é de carreira,
tem seus aparelhos novos;
não há como ela outra em Povos,
boa de leme e veleira.
Mas, se por ser a primeira,
aos disser alguém que pende,
dir-lhe-ei, mana, que mente.
Notas
V. 12 — Povos — localidade do concelho de Vila Franca, próxima do rio Tejo.
Agora, para a doença que ataca homens e mulheres, o conselho com o remédio óbvio: Eu cá sinto a vossa dor / e, se vós sintis a minha, / dai e tomai a mezinha.
O mote explica o assunto do poema de forma cabal.
A üa dama que estava doente
Mote
Da doença em que ardeis
eu fora vossa mezinha
só com vós serdes a minha.
Voltas
É muito para notar
cura tão bem acertada,
que podereis ser curada
somente com me curar.
Se quereis, Dama, trocar,
ambos temos a mezinha:
eu a vossa, e vós a minha.
Olhai que não quer Amor
(por que fiquemos iguais),
pois meu ardor não curais,
que se cure vosso ardor.
Eu cá sinto a vossa dor
e, se vós sintis a minha,
dai e tomai a mezinha.
Notas
V. 2 — mezinha — remédio
V. 13 — pois — já que; não curais — não tratais.
V. 13-14 — ardor — tomado no duplo sentido de paixão e febre.
Termino com as promessas e esquivas de uma Catarina: Mas pois folgais de mentir, / prometendo de me ver, / eu vos deixo o prometer, / deixai-me vós o cumprir: / Haveis então de sentir / quanto fica mais contente / o que cumpre que o que mente.
Mote alheio
Catarina bem promete…
Eramá! como ela mente!
Voltas Próprias
Catarina é mais fermosa
para mim que a luz do dia;
mas mais fermosa seria,
se não fosse mentirosa.
Hoje a vejo piadosa;
amanhã tão diferente,
que sempre cuido que mente.
Catarina me mentiu
muitas vezes, sem ter lei;
mas todas lhe perdoei
por ûa só que cumpriu.
Se, como me consentiu
falar, o mais me consente,
nunca mais direi que mente.
Má, mentirosa, malvada,
dizei: para que mentis?
Prometeis, e não cumpris.
Pois, sem cumprir, tudo é nada.
Não sois bem aconselhada;
que quem promete, se mente,
o que perde não no sente.
Jurou-me aquela cadela
de vir, pela alma que tinha.
Enganou-me: tem a minha;
dá-lhe pouco de perdê-la.
A vida gasto após ela
porque ma dá, se promete;
mas tira-ma, quando mente.
Tudo vos consentiria
quanto quisésseis fazer,
se esse vosso prometer
fosse por me ter um dia;
todo então me desfaria
convosco; e vós, de contente,
zombaríeis de quem mente.
Prometeu-me ontem de vir,
nunca mais apareceu;
creio que não prometeu
senão só por me mentir.
Faz-me enfim chorar e rir:
rio, quando me promete;
mas choro, quando me mente.
Mas pois folgais de mentir,
prometendo de me ver,
eu vos deixo o prometer,
deixai-me vós o cumprir:
Haveis então de sentir
quanto fica mais contente
o que cumpre que o que mente.
Notas
Eramá! — interjeição usada na língua popular do tempo, como se vê em Gil Vicente, às vezes com a forma ieramá (nota da edição das Redondilhas de Hernani Cidade).
V. 13 — cumprir tem na época, entre outros, o sentido de satisfazer, dar satisfação.
V. 15 — o mais me consente — consente-me mais que falar-lhe.
V. 21 — bem aconselhada — de bom conselho, previdente, sensata.
V. 23 — nem sabe o que perde.
V. 24 — cadela — na Comédia de el-rei Seleuco encontra-se este falar namorado: ” Vossos descuidos? Cadela! / Ah, minh’alma Sois tão bela…”— É possível que o sentido não fosse então meramente depreciativo, como hoje.
V. 33-34 — trocadilho entre vários sentidos: prometer, por me ter, por meter. — no texto o verbo prometer vem sempre grafado com a forma pormeter.
V. 41 — se não só por — a não ser para.
V. 45 — mas pois — mas visto que.
V. 48 — vide nota ao V. 13.
Transcrição dos poemas e notas de Luis de Camões, Lírica Completa I, prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, 1980.
A imagem de abertura mostra uma obra de Larry Rivers (1923-2002).