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Namorar por jardins é ocupação de bom tempo. Num passeio em que a memória se cruza com o novo, lia eu poesia de Ana Hatherly (1929) quando subitamente um poema se colou à imagem da pintura de Claude Monet (1840-1926) que abre o artigo:

 

 

Esta obscuridade salubre

 

Olha peço-te não venhas assim quando eu estava tão quieta

sentada no jardim e até com óculos

não venhas peço-te

não venhas melindroso e sorrindo

com a cabeça inclinada como um particípio

não venhas

Eu estava já me aproximando

quase tocava a recorrência das coisas

nesse momento eu olhava para o chão e via mesmo cada

pequena pedra saudável

eu estava tão quieta sentada no jardim

Respirava

sentia as veias ligeiramente activas

mas tão ligeiramente

tudo corria fundo em sua sumidade

meus braços tinham apenas o seu peso

sem outras asas

Quando tu vieste sorrindo melindroso e tão salubre

de repente o jardim é a dificuldade essencial da minha

botânica

a minha indústria difícil

o fim que a alma lograda obtém dos corpos

Corro agora por minha alucinação dirigível

minhas tarefas são histriónicas

Eu estava ali tão quieta

estava até com óculos

e tu inclinavas-te como um simulacro

Intui, peço-te

esta obscuridade salubre

esta consternação despenhada

tropeçando pela alma recorrente silva

 

in Eros Frenético, 1968.

Transcrito de Poesia 1958-1978, Moraes Editores, Lisboa 1980.

 

A pintura é um prodígio de sentimento. Um casal, presumivelmente namorados, está de amuo, ou pelo menos ela está amuada, e faz beicinho: vejam-lhe além da boca, o olhar entre triste e desolado. Ele, olhar sardónico, aguarda que as flores oferecidas, abandonadas no banco, façam a reconciliação. Longe, a provável dama de companhia, para manter a decência do encontro, aguarda. Toda a envolvente resplandece, apenas à espera que o arrufo se esfume, o que certamente acontecerá, e para nós que observamos, será coisa de pouca demora, pois esse é o milagre de namorar pelos jardins.

Deixo-vos e volto ao passeio.