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Já a propósito do poema Elogia da sombra falei de alguma da poesia de Jorge Luis Borges (1899-1986) sobre a cegueira. Hoje volto com o poema Um cego, o qual, na sua concisão lapidar, dá conta do sentimento de ver, de si, apenas a alma.
É este apenas ver a alma, a que quem é cego está remetido, algo de enorme dificuldade na representação gráfica.
O desenho que abre o artigo, de autor anónimo e atribuído ao pintor italiano quinhentista Federico Barocci (1528-1602), é um dos raros exemplos de representação exemplar de cegueira humana. Mas o desenho tem mais: tem um homem de quem quase conseguimos saber tudo, apesar de a representação não mostrar a alma pelo olhar, caminho da empatia no ver. É o inacabado do cabelo e barba que permite o destaque de todo o rosto, na pungente expressão de um provável e desolado sofrimento. Pouco diferirá da ira muda, fatigada, aflita, que Borges refere no poema que a seguir se lê
Um cego
Não sei qual é a face que me fita
Quando observo a face de algum espelho;
No seu reflexo espreita-me esse velho
Com ira muda, fatigada, aflita.
Lento na sombra, com as mãos exploro
Meus invisíveis traços. O mais belo
Fulgor me atinge. Vi o teu cabelo
Que é já de cinza ou é ainda de ouro.
Repito que perdi unicamente
A superfície sempre vã das coisas.
O consolo é de Milton e é valente,
Mas eu penso nas letras e nas rosas,
Penso que se pudesse ver a cara
Saberia quem sou na tarde rara.
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
in Obras Completas III, 1975-1985, Editorial Teorema, 1998
Un Ciego
No sé cuál es la cara que me mira
cuando miro la cara del espejo;
no sé qué anciano acecha en su reflejo
con silenciosa y ya cansada ira.
Lento en mi sombra, con la mano exploro
mis invisibles rasgos. Un destello
me alcanza. He vislumbrado tu cabello
que es de ceniza o es aún de oro.
Repito que he perdido solamente
la vana superficie de las cosas.
El consuelo es de Milton y es valiente,
pero pienso en las letras y en las rosas.
Pienso que si pudiera ver mi cara
sabría quién soy en esta tarde rara.
Transcrito de Poesía completa, Debolsillo, Barcelona, 2013.
O desenho pertence à colecção da Galeria Albertina de Viena.