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A dolorosa meditação do eu na poesia de Fernando Pessoa atinge frequentemente o sublime:
Cai amplo o frio e eu durmo na tardança
De adormecer —
Sou, sem lar, nem conforto, nem esperança,
Nem desejo de os ter.
E um choro por meu ser me inunda
A imaginação.
Saudade vaga, anónima, profunda,
Náusea da indecisão.
Frio do inverno duro, não se tira
Agasalho ou amor.
Dentro em meus ossos teu tremor delira.
Cessa, seja eu quem for!
19-01-1931
Questionando a verdade interior do eu na duplicidade do agir, ao ler esta poesia é sempre uma interrogação de nós o que fazemos, ou não fora, como o poeta escreveu, … quem lê versos lê só a própria alma… (17-03-1931).
As coisas que errei na vida
São as que acharei na morte,
Porque a vida é dividida
Entre quem sou e a sorte.
As coisas que a Sorte deu
Levou-as ela consigo,
Mas as coisas que sou eu
Guardei-as todas comigo.
E por isso os erros meus,
Sendo a má sorte que tive,
Terei que os buscar nos céus
Quando a morte tire os véus
À inconsciência em que estive.
21-08-1934
Por último, um poema menos perfeito (última quadra) e onde os versos
Falhei a tudo, mas sem galhardias, / Nada fui, nada ousei e nada fiz,
remetem para as reflexões de Tabacaria (15-01-1928):
Falhei em tudo. / Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. /…
Este poema de 02-07-1931 afasta-se da interrogação em Tabacaria (aquele talvez) e desenvolve reflexões pela afirmativa onde os belíssimos versos:
…
Nem colhi nas urtigas dos meus dias, / A flor de parecer feliz.
…
espelham a dualidade do ser e do parecer com as imagens do amargo dos dias referidos como urtigas, e a felicidade simulada, pela flor de parecer feliz.
Bem, hoje que estou só e posso ver
Com o poder de ver do coração
Quanto não sou, quanto não posso ser,
Quanto, se o for, serei em vão.
Hoje, vou confessar, quero sentir-me
Definitivamente ser ninguém,
E de mim mesmo, altivo, demitir-me
Por não ter procedido bem.
Falhei a tudo, mas sem galhardias,
Nada fui, nada ousei e nada fiz,
Nem colhi nas urtigas dos meus dias,
A flor de parecer feliz.
Mas fica sempre, porque o pobre é rico
Em própria casa, se procurar bem,
A grande indiferença com que fico
É um sonho… Leve-o quem o trate bem.
02-07-1931
Em nota final, refiro quanto o verso de abertura do poema inicial
Cai amplo o frio e eu durmo na tardança / …
me ecoa, apesar da variação na abordagem, o soneto de Sá de Miranda
O sol é grande, caem co’a calma as aves / …
e outro dia transcreverei.
No segundo poema de Pessoa, o verso As coisas que errei na vida / …, leva-me direitinho para o soneto de Camões:
Erros meus, má fortuna, amor ardente / Em minha perdição se conjuraram / …
E assim, neste deambular poético lá vou para o multifacetado da vida, na variedade das reflexões que a poesia induz.
Seria matéria de vasta prosa perambular pelas afinidade e oposições entre estes quatro poemas, o que não cabe no formato do blog, obviamente.
Poemas transcritos de Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935, edição de Manuela Parreira da Silva ed al., Assírio & Alvim, Lisboa, Julho 2006.
Abre o artigo a imagem de uma pintura (óleo s/tela) que fiz pelo ano de 2004.