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Por muito que estejamos convencidos do acerto das nossas escolhas, uma vez por outra ou o desânimo, ou as contrariedades, ou a constatação pela evidência do erro, conduzem-nos a reflexões próximas das de Camões no famoso soneto que hoje trago, sem que, evidentemente, as consigamos expressar com a elegante inspiração do nosso génio maior.
As escolhas, os enganos, a sorte, tudo lá está, na concisão que o soneto exige, servido pela admirável simplicidade de uma linguagem que nos faz participar desse destino.
Na perpétua releitura a que os clássicos convidam, os nossos poetas, por vezes, encontram aí inspiração. É o caso, hoje, de Gastão Cruz (1941) que ao famosíssimo soneto de Camões
[Erros meus, má fortuna, amor ardente]
foi buscar âncora para a glosa que o seu poema Erros traduz.
É num diálogo com o soneto de Camões que o poema de Gastão Cruz se inicia, ganhando rapidamente o caminho da interrogação própria do poeta, atendo-se apenas às perplexidades do amor e que o tempo se encarrega de esgotar:
em que tudo era eterno e só durou / o espaço da manhã do teu sorriso
…
frio só porque tudo tem um tempo / até as rosas…
A simplicidade da linguagem acompanha o soneto de Camões, um dos motivos porque ele continua a falar-nos, e a reflexão desencantada de Gastão Cruz termina sem resposta à interrogação inicial:
Não sei se má fortuna erros decerto / erros somente?…
Erros
Não sei se má fortuna erros decerto
erros somente? Pode o amor ardente,
algum tempo omitido, descoberto
cobrir de novo a pele neste presente,
que de pouco já serve a sua chama
lugar comum tão pobre e tão verídico
que sopras e apagas como a cama
negas ao corpo Foge o tempo mítico
em que tudo era eterno e só durou
o espaço da manhã do teu sorriso
como a rosa que tarde já chegou
e pousou devagar no corpo liso
e frio não de morte ou indiferença
frio só porque tudo tem um tempo
até as rosas e não há presença
nem chama do amor que o torne eterno
Para o caso de haver leitores a quem o soneto de Camões não seja familiar, ele aqui fica, sem comentários intrusivos.
Camões
Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.
Tudo passei; mas Tejo tão presente
a grande dor das cousas, que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro génio de vinganças!
A pintura, de Paul Klee, que abre o artigo, é de 1930.
Noticia bibliográfica
O poema Erros de Gastão Cruz inclui-se no livro Crateras, publicado em 2000, suponho. Esta transcrição foi feita a partir da poesia reunida do poeta OS POEMAS (1960-2006), ed. Assírio & Alvim, 2009.
O soneto de Camões, publicado pela 1ª vez em 1616, é aqui transcrito com actualização ortográfica de Maria de Lurdes Saraiva, e consta de Lírica Completa II, INCM, 1980.