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Arroz Amargo, o filme, e o poema Lezíria de Miguel Torga

16 Domingo Fev 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Alexandre O'Neill, Giuseppe de Santis, Miguel Torga, Silvana Mangano

Um filme ícone do cinema neo-realista italiano, Riso Amaro (Arroz Amargo) de 1949, cuja acção decorre entre  mondadeiras de arroz, dá conta simultaneamente de uma realidade social: as aspirações de vida melhor da juventude italiana pobre do pós- 2.ª guerra mundial, e de como o uso do corpo pode permitir uma ilusória melhoria material, se não alguma ascensão social. 

Filmado com mão de mestre por Giuseppe de Santis (1917-1997), toda aquela exploração humana é atravessada pelo erotismo que a juventude de qualquer condição social sente e vive. E aí, a pulposa e belíssima Silvana Mangano (1930-1989) nos seus 19 anos, dá corpo a uma personagem de antologia. O filme, proibido em Portugal até ao 25 de Abril de 1974 exactamente pela sua carga erótica, é um objecto precioso de uma certa maneira de ver pelo cinema. 

O trabalho das mondadeiras de arroz em meados do século XX, — Cantam, plantadas n’água, / Ao sol e à monda neste mês de Agosto. —, que em Portugal também existia, serviu a Miguel Torga (1907-1995) para um poema (Lezíria) em que a realidade social se associa a uma identidade de grupo nas mesmas condições de vida, e o poeta observa com empatia na distância da sua condição social.

O poema de Torga leva-nos a ver, naquela dura experiência, o amargo da condição humana — Cantam baixo, e parece / Que na raiz humana dos seus pés / Qualquer coisa apodrece. —, quando o conforto material é inexistente e a luta pela sobrevivência obrigava (e obriga) à emigração sazonal para os trabalhos duros do campo.

Sobre este poema de Miguel Torga escreveu Alexandre O’Neill (1924-1986) por ocasião de uma homenagem ao poeta(*):

“Lezíria de Miguel Torga é um objeto mágico que há mais de 30 anos me acompanha — e devo dizer, com toda a franqueza, que da poesia portuguesa de hoje poucos são os talismã que trago comigo.”

O artigo continua numa interessante análise do poema verso a verso.

 

 

Lezíria 

 

São duzentas mulheres. Cantam não sei que mágoa 

Que se debruça e já nem mostra o rosto. 

Cantam, plantadas n’água,

Ao sol e à monda neste mês de Agosto.

 

Cantam o Norte e o Sul duma só vez.

Cantam baixo, e parece 

Que na raiz humana dos seus pés 

Qualquer coisa apodrece.

 

Ribatejo, 11 de Agosto de 1941.

Poema incluído em Diário I, Coimbra, 

(*) Artigo publicado no jornal A Luta em 4 de Novembro de 1976, e republicado em Relâmpago, Revista de Poesia, 13, Out 2003.

Abre o artigo a imagem de um cartaz publicitário ao filme Arroz Amargo.

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Devolvo à tarde triste a luz que me entristece — Coimbra em poemas de Miguel Torga

07 Quinta-feira Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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James Holland, Miguel Torga

Para o indizível encanto das cidades que nos prendem busca a poesia resposta. Vã tentativa ou problemático sucesso. O mundo de cheiros, vistas, sabores e memórias não cabe por inteiro nas palavras. Apenas uma aproximação se consegue, às vezes em belos e comoventes poemas.

Coimbra como cidade universitária, lugar de experiências e memórias juvenis de tantos poetas, foi frequentemente o alvo da expressão desse encanto que às palavras foge.

Hoje deixo de fora delíquios e amores estudantis, ora contados em tom sério, ora risonhos ou irónicos, e transcrevo alguns poemas de Miguel Torga (1907-1995), quase uma espécie de poeta da cidade, pois aí exerceu profissionalmente, longos anos, como médico. São poemas onde o pitoresco se transcende para uma meditação do eu no quadro do lugar que o envolve:

 

Devolvo à tarde triste a luz que me entristece,
E vou entristecendo
O largo,
O rio,
O campo
E, mais além, a linha do horizonte.
…

 

 

Comecemos com uma espécie de epifania numa tarde de Abril quando  … uma alegria incontida / Sorri no rosto de tudo.

 

 

Boletim

Tarde limpa,
De pureza comungada.
No rio, corre, parada,
A paisagem reflectida;
Há não sei que voz traída
No silêncio do que é mudo;
A luz parece despida;
E uma alegria incontida
Sorri no rosto de tudo.

Coimbra, 17 de Abril de 1969.
in Diário XI, 1973.

 

 

Abril, mês de Primavera, quando o tempo afecta os sentidos, tanto a alegria pode ser esfuziante como o desalento pode chegar, e num registo melancólico aí o temos ao crepúsculo: E uma sombra de mudo / Desalento / Começa a desfazer as rugas animadas / Do próprio sofrimento / Cada vez mais informe nas calçadas.

 

Crepúsculo

Caiu a tarde, e nem sequer ficou
A colorir a talha de alguns versos
Uma réstia do sol que o dia inteiro
Iluminou a praça.
Foi-se a graça
De tudo.
E uma sombra de mudo
Desalento
Começa a desfazer as rugas animadas
Do próprio sofrimento
Cada vez mais informe nas calçadas.

Coimbra, 8 de Abril de 1975.
in Diário XII, 1977.

 

 

E, contudo, é bonito / O entardecer. / A luz poente cai do céu vazio / Sobre o tecto macio / Da ramagem / E fica derramada em cada folha. São as palavras do poeta para estes diferentes findar dos dias em Abril, na cidade, quando …  o rumor citadino / Ondula nos ouvidos / Distraídos / Dos que vão pelas ruas caminhando / Devagar / E como que sonhando / Sem sonhar…

 

 

Vesperal

E, contudo, é bonito
O entardecer.
A luz poente cai do céu vazio
Sobre o tecto macio
Da ramagem
E fica derramada em cada folha.
Imóvel, a paisagem
Parece adormecida
Nos olhos de quem olha.
A brisa leva o tempo
Sem destino.
E o rumor citadino
Ondula nos ouvidos
Distraídos
Dos que vão pelas ruas caminhando
Devagar
E como que sonhando
Sem sonhar…

Coimbra, 28 de Abril de 1984.
in Diário XIV, 1987.

 

 

Terminada esta curta viagem por Coimbra em Abril na poesia de Miguel Torga, concluo com o poema que citei a abrir, Expectação. Desejo de poeta que anseia A luz de um novo dia./ Um dia alegre, / Limpo, / Singular, / … / Miraculosamente amanhecido / Nas sílabas de um verso enfeitiçado, / A ressoar, medido e desmedido, / Na concha do ouvido / Deslumbrado.

 

 

Expectação

Devolvo à tarde triste a luz que me entristece,
E vou entristecendo
O largo,
O rio,
O campo
E, mais além, a linha do horizonte.
Mas repreendo os olhos e regresso
À página vazia
Onde, possesso,
Aguardo que desponte
A luz de um novo dia.

Um dia alegre,
Limpo,
Singular,
De nenhuma semana,
De nenhum mês,
De nenhum ano,
Miraculosamente amanhecido
Nas sílabas de um verso enfeitiçado,
A ressoar, medido e desmedido,
Na concha do ouvido
Deslumbrado.

Coimbra, 9 de Julho de 1975.
in Diário XII, 1977.

 

Poemas transcritos de Poesia Completa, 2 volumes, Publicações D. Quixote, Lisboa, 2007.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de James Holland (1799-1870), imagem de Coimbra ao tempo em que moços estudantes/poetas aí pululavam, do desabrochar do romantismo ao seu estertor, ou seja, entre António Feliciano de Castilho e Antero de Quental, e foram uma plêiade. Não já a cidade pintada nos poemas que transcrevi acima.

 

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Pelo Natal com poemas de Miguel Torga

21 Sexta-feira Dez 2018

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Master Francke, Miguel Torga

Ao longo das páginas dos XVI volumes do Diário (1941-1993) tem Miguel Torga (1907-1995) espalhado um Cancioneiro de Natal. Não livro temático deliberado, mas poemas/apontamentos reflexivos e sentimentais sobre a data e o seu significado pessoal. Se em muitos poemas é a memória e o sentir próprio que se reflectem, noutros é a leitura social do significado da crença, o que encontramos.

Destes vinte e tal poemas explicitamente assinalados, e espalhados ao longo dos últimos cinquenta anos da vida do poeta (do Natal de 1940 ao Natal de 1991), transcrevo a seguir cinco. Se o consolo da fé não surge evocado, a esperança que a mitologia da data encerra nas suas múltiplas possibilidades, está sempre presente, à mistura com a amargura de que o mundo não seja o lugar de paz e harmonia que a cada nascimento se promete.

 

Loa

É nesta mesma lareira,
E aquecido ao mesmo lume,
Que confesso a minha inveja
De mortal
Sem remissão
Por esse dom natural,
Ou divina condição,
De renascer cada ano,
Nu, inocente e humano
Como a fé te imaginou,
Menino Jesus igual
Ao do Natal
Que passou.

S. Martinho da Anta, 24 de Dezembro de 1969.

 

 

Natal

Todos os anos, nesta data exacta,
Momentos antes
De fechar o cartório
De poeta
— Um registo civil ultra-real —,
O mago desse arquivo de presságios
Regista de antemão o mesmo nome
No seu livro de assentos:
— Jesus… — repete com melancolia,
A consumar a morte prematura
Do nascituro,
E a lamentar que a mãe, Virgem Maria,
Humana criatura,
Continue a ter filhos no futuro
Condenados à mesma desventura.

S. Martinho da Anta, 24 de Dezembro de 1973.

 

 

Natal

Soa a palavra nos sinos,
E que tropel nos sentidos,
Que vendaval de emoções!
Natal de quantos meninos
Em nudez foram paridos
Num presépio de ilusões.

Natal da fraternidade
Solenemente jurada
Num contraponto em surdina.
A imagem da humanidade
Terrenamente nevada
Dum halo de luz divina.

Natal do que prometeu,
Só bonito na lembrança.
Natal que aos poucos morreu
No coração da criança,
Porque a vida aconteceu
Sem nenhuma semelhança.

Coimbra, Natal de 1974.

 

 

Natal

Ninguém o viu nascer.
Mas todos acreditam
Que nasceu.
É um menino e é Deus.
Na Páscoa vai morrer, já homem,
Porque entretanto cresceu
E recebeu
A missão singular
De carregar a cruz da nossa redenção.
Agora, nos cueiros da imaginação,
Sorri apenas
A quem vem,
Enquanto a Mãe,
Também
Imaginada,
Com ele ao colo,
Se enternece
E enternece
Os corações,
Cúmplice do milagre, que acontece
Todos os anos e em todas as nações.

Coimbra, 25 de Dezembro de 1983.

 

 

Natal

Menino Jesus feliz
Que não cresceste
Nestes oitenta anos!
Que não tiveste
Os desenganos
Que eu tive
De ser homem,
E continuas criança
Nos meus versos
De saudade
Do presépio
Em que também nasci,
E onde me vejo sempre igual a ti.

Coimbra, 24 de Dezembro de 1988.

 

 

Poemas transcritos de Miguel Torga, Poesia Completa, 2 volumes, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2007.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Master Francke, presumivelmente de 1424. Mestre Francke foi pintor activo no norte da Alemanha nos primórdios do século XV, e de cuja vida e obra hoje pouco se sabe.

 

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Torga em três poemas de despedida

26 Quarta-feira Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Miguel Torga

O mundo a cores XX

Há por toda a obra de Miguel Torga (1907-1995) uma lucidez que dói e ensina. Nos últimos poemas que publicou (Diário XVI) esta lucidez ganha uma dimensão sobre-humana nas reflexões poéticas com a vida em fundo e o fim que se avizinha. São poemas de despedida de quem ao partir conserva a dignidade que distingue os homens e os faz merecedores de terem vivido. Escolho três.

Solidão

Pouco a pouco, vamos ficando sós,
Esquecidos ou lembrados
Como nomes de ruas secundárias
Que a custo recordamos
Para subscritar
A urgência de um beijo epistolar
Ainda inutilmente apetecido.
Mortos sem ter morrido,
Lúcidos defuntos,
Vemos a vida pertencer aos outros.
E descobrimos, na maneira deles,
Que nada somos
Para além do seu dissimulado
Enfado
Paciente.
E que lá fora, diariamente,
Conforme arde no céu,
O sol aquece
Ou arrefece
Os versáteis e alheios sentimentos.
E que fomos riscados
No rol da humanidade
A que já não pertencemos
De maneira nenhuma.
E que tudo o que em nós era claridade
Se transformou em bruma.

Coimbra 20 de Julho de 1992

 

Termo

Pára, imaginação!
Não há mais aventura, nem poesia.
A hora é de finados,
Com versos apagados
Na lareira onde a fogueira ardia.

Pára, é a lei.
Agora é só cansaço desiludido
E memória teimosa que entristece
O nada que acontece
E o muito acontecido.

Pára, porque findou
O tempo intemporal
Do amor e da graça concedida
A quem nele, no seu barro original,
Modela a própria vida.

Coimbra, 3 de Novembro de 1993

 

Requiem por Mim

Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que dele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.

Coimbra, 10 de Dezembro de 1993

 

Este foi o último poema publicado por Miguel Torga.

A foto foi feita por mim há alguns anos num centro comercial em Lisboa.

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Portugal – soneto de Miguel de Unamuno e homenagem de Torga ao filósofo-poeta

14 Sexta-feira Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Miguel de Unamuno, Miguel Torga

Jean Froissart - cerco lisboa em 1384Lermo-nos pelo olhar dos outros, quando inteligentes e despreconceituados, ajuda-nos a perspectivar uma história e um sentir colectivo que frequentemente parece perdido nestes conturbados tempos de crise.

É sabido o conhecimento, o carinho, e admiração de Don Miguel de Unamuno (1864-1936) por Portugal, pela cultura portuguesa, por terras e gentes de Portugal; o que a correspondência conhecida, trocada com grandes vultos da cultura portuguesa, e o livro Por Tierras de Portugal y de España evidenciam.

Transcrevo hoje o poema PORTUGAL dando na sua forma condensada em soneto, algo do que nos define enquanto povo: a geografia que nos desenhou e a história que deixou para as mulheres a guarda do que ficou, quais leoas de olhar desconfiado protegendo as crias, e a ansiedade expectante do que o futuro trará. Partem os homens na busca de melhor vida. Regressarão?

 

Não sei se será este PORTUGAL o poema a que Unamuno se refere em carta a Manuel Laranjeira datada de Salamanca, 08-10-1908, onde diz a certa altura:

“Voltei outra vez a um poema que comecei há três anos no Porto e a que chamo Portugal. Essa sua terra atrai-me e atrai-me sobretudo por causa das suas desgraças e prostração.“

 

PORTUGAL

 

Do atlântico mar na praia areosa

uma matrona descalça e desgrenhada

senta-se ao pé de uma serra coroada

por triste pinheiral. Nos joelhos pousa

 

os cotovelos e nas mãos a ansiosa

face, e olhos de leoa desconfiada

crava no poente; o mar dá a toada

trágica, de altos feitos sonorosa.

 

Fala de vastas terras e de azares

enquanto ela, seus pés nessas espumas

banhando, sonha no fatal império

 

que se sumiu nos tenebrosos mares,

e olha como entre agoureiras brumas

se ergue D. Sebastião, rei do mistério.

 

Salamanca, 28 IX 1910

Tradução de José Bento in Miguel de Unamuno, Antologia Poética, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003.

 

Termino com o poema-homenagem que Miguel Torga (1907-1995) escreveu para Unamuno.

 

Unamuno

 

D. Miguel…

Fazia pombas brancas de papel

Que voavam da Ibéria ao fim do mundo…

Unamuno Terceiro!

(Foi o Cid o primeiro,

D. Quixote o segundo.)

 

Amante duma outra Dulcineia,

Ilusória, também

(Pátria, mãe,

Ideia

E namorada),

Era seu defensor quando ninguém

Lhe defendia a honra ameaçada!

 

Chamado pelo aceno da miragem,

Deixava o Escorial onde vivia,

E subia, subia,

A requestar na carne da paisagem

A alma que, zeloso, protegia.

 

Depois, correspondido,

Voltava à cela desse nosso lar

Por Filipe Segundo construído

Com granito da fé peninsular.

 

E falava com Deus em castelhano.

Contava-lhe a patética agonia

Dum espírito católico, romano,

Dentro dum corpo quente de heresia.

 

Até que a madrugada o acordava

Da noite tumular.

E lá ia de novo o cavaleiro andante

Desafiar

Cada torvo gigante

Que impedia o delírio de passar.

 

Unamuno Terceiro!

Morreu louco.

O seu amor, por ser demais, foi pouco

Para rasgar o ventre da Donzela.

D. Miguel…

Fazia pombas brancas de papel,

E guardava a mais pura na lapela.

 

Publicado em Poemas Ibéricos (1ªedição em 1965).

 

Abre o artigo uma iluminura medieval figurando o cerco castelhano a Lisboa durante a crise de 1383-1385 — “Se Lisboa se não opusera todo o reino se perdera, D. João I”.

Termino com outra iluminura, desta vez pretendendo ilustrar a batalha de Aljubarrota onde Castela foi definitivamente derrotada, e figurou como heroína a célebre Padeira de Aljubarrota.

Batalha Aljubarrota

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O sexo e a idade I — Picasso e Tentação de Miguel Torga

02 Domingo Jun 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Crónicas, Poetas e Poemas

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Miguel Torga, Picasso

Untitled-32

Tal como os filhos olham para os pais como entidades assexuadas, sendo para eles quase impossível imaginá-los nos transportes do amor, ainda que seja exactamente por tal ter acontecido que eles nasceram, todos nós quando jovens adultos, temos dificuldade em imaginar tumultos eróticos quando a vida avança para aqueles patamares onde as chamadas terceira e quarta idades aparecem. Eles existem com a acutilancia inerente à biologia de cada um: Que me queres, nesta idade sonolenta / Dos sentidos? diz o poeta.

Recordo hoje frequentemente o que nos meus vinte anos me dizia um senhor com quem amiúde conversava: a idade avança mas só o corpo envelhece, a cabeça fica sempre a mesma — e com isto referia-se ao desejo sexual.

Ocorre-me toda esta conversa a propósito do poema Tentação de Miguel Torga (1907-1995) onde, com o pudor que o caracteriza, disso dá conta:

Tentação

Vénus lançada à praia pelo mar inquieto,
Inquietas os meus olhos, sátiros cansados.
Vem de ti uma luz que o sol não tem,
E sozinha povoas o areal.
Que me queres, nesta idade sonolenta
Dos sentidos?
Lembrar-me e convidar-me a renegar
Os desejos despidos?
Como se algum poeta se esquecesse
E arrependesse
Dos antigos pecados cometidos!

O poema foi escrito na Praia do Pedrógão a 22 de Agosto de 1981, tinha o poeta 74 anos, portanto, e foi publicado no volume XIII do Diário.

Se na poesia este envelhecimento surge, nas artes plásticas também o encontramos.

Picasso (1881-1973) para o final da vida, e já perto dos 90 anos, produziu varias series de gravuras eróticas.

Untitled-19

No grupo que escolhi hoje, obras de 1970, a mulher surge como pretexto de veneração e aproximação táctil, e não já envolvida no acto sexual explicito como em series anteriores acontecera.

Untitled-30

São obras de arte onde de alguma maneira o artista exorcizou a conhecida impotência sexual que o atingiu à época, fazendo-o não partícipe, mas desejoso, dos prazeres do sexo.

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Miguel Torga – quatro poemas de Cântico do Homem

27 Quarta-feira Mar 2013

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Miguel Torga

Michelangelo-Creation_of_Adam_detail-1508-1512-III

A curtos espaços releio a poesia de Miguel Torga (1907-1995). Vogo por entre os poemas num deambular de interrogações sobre o sentido deste viver de homem só em frente ao mundo.

Bato à porta da minha solidão,
E ninguém abre!
Na grande noite que me rodeou,
Quem vinha ao meu encontro, desviou
A direcção fraterna da ternura…

Trevas — é o que ficou
Na concha de que fiz a sepultura.

São poesia que insiste em fugir-nos no pouco amável do seu verso, e onde as exigências do existir nos confrontam.

Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou, e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!

Hoje paro em mais dois poemas do livro Cântico do Homem pela primeira vez publicado em 1950.

Sonho perdido

Como foi que o meu sonho se perdeu
No liso descampado desta vida?
Distraída
Atenção
Que tão ingloriamente empobreceu
Quem não tinha outro vinho e outro pão!

Na fundura dos bolsos não encontro
Nem sequer a lembrança desenhada
Do seu calor!
Perdi o sonho… E resta-me o pudor
Deste triste poema ressequido…
Perdi o sonho… E nunca se encontrou
Nenhum sonho perdido.

Último Reduto

Meu coração é bom naturalmente.
Gosta do mar, da terra e das crianças.
Bate uma vida inteira sem mudanças,
Se ninguém o magoar.
No seu calor, é quente
Qualquer amor que o venha visitar.

Fonte dum rio que dá volta ao corpo
Da humanidade,
Nunca, em nenhuma idade,
Empobreceu a força do caudal!
Generosa, fecunda e permanente,
A vermelha corrente
Regou sempre a secura do areal.

E querem duvidar desta certeza!
Querem que uma represa
De amargura
Seja a vil sepultura
Dum braço que sempre se alargou!
Querem que a noite da desilusão
Se dobre sobre cada pulsação
Da onda que a ternura levantou!

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Ai, a vida! com Miguel Torga

26 Sábado Jan 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à fotografia, Poetas e Poemas

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Dorothea Lange, Miguel Torga

Dorothea Lange - Foto FSAVesperal

E, contudo, é bonito
O entardecer.
A luz poente cai do céu vazio
Sobre o tecto macio
Da ramagem
E fica derramada em cada folha.
Imóvel, a paisagem
Parece adormecida
Nos olhos de quem olha.
A brisa leva o tempo
Sem destino.
E o rumor citadino
Ondula nos ouvidos
Distraídos
Dos que vão pelas ruas caminhando
Devagar
E como que sonhando,
Sem sonhar…

Publicou Miguel Torga (1907-1995), já nos anos 80, uma Antologia Poética da sua poesia surgida em livro, constituindo-se como escolha pessoal da sua obra. A esse grupo acrescentou alguns poemas inéditos, um dos quais este Vesperal, transcrito acima, com que o livro se encerra.

Há na poesia de Torga uma verdade de sentimento ancorada em valores de ombridade, fidelidade à terra, e respeito pelos homens, que encanta e seduz mais e mais a cada leitura. Reflectindo sobre o seu estar no mundo, é com pudor que o poeta deixa transparecer as suas emoções, e é sobretudo nos poemas do final da vida que mais confidente se mostra, ainda que por detrás do verso velado que é a sua forma de se exprimir.

Termino com este MAGNIFICAT de 28 de Novembro de 1981 publicado no volume XIII do Diário.

MAGNIFICAT

Aí, a vida!
Quanto mais me magoa, mais a canto.
Mais exalto este espanto
De viver.
Este absurdo humano,
Quotidiano,
Dum poeta cansado
De sofrer,
E a fazer versos como um namorado,
Sem namorada que lhos queira ler.

Cego de luz, e sempre a olhar o sol
Num aturdido
Deslumbramento.
Cada breve momento
Recebido
Como um dom concedido
Que se não merece.
Aí, a vida!
Como dói ser vivida,
E como a própria dor a quer e agradece.

A foto que abre o artigo é de Dorothea Lange (1895-1965), feita nos EUA, no âmbito do programa FSA nos anos 30 do século XX, e o negativo é propriedade da Biblioteca do Congresso dos EUA.

 

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Miguel Torga, um poema de Natal

22 Sábado Dez 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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Giotto, Miguel Torga

GIOTTO di Bondone 1310Embora no Ocidente a comemoração do Natal seja generalizada, a sua natureza e origem religiosa é muito menos tida em conta.
Esperada, organizada, e finalmente celebrada, a festa do Natal, para muitos é feita na ausência de Deus, ou como nos versos de Miguel Torga (1907-1995) se diz, no poema que vos trago:

O homem nem perguntou / Se Deus era necessário… / E Deus não representou.

Natal

Foi tudo tão pontual
Que fiquei maravilhado.
Caiu neve no telhado
E juntou-se o mesmo gado
No curral.

Nem as palhas da pobreza
Faltaram na manjedoira!
Palhas babadas da toira
Que ruminava a grandeza
Do milagre pressentido.
Os bichos e a natureza
No palco já conhecido.

Mas, afinal, o cenário
Não bastou.
Fiado no calendário,
O homem nem perguntou
Se Deus era necessário…
E Deus não representou.

O poema foi publicado num dos volumes do Diário do poeta, que, longe da biblioteca, não consigo identificar, e se não erro, vem datado de 25 de Dezembro de 1950.

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Câmara Ardente de Miguel Torga

20 Terça-feira Set 2011

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Miguel Torga

Uma turbada emoção surpreendeu-me hoje ao ler Câmara Ardente de Miguel Torga (1907-1995).
O poeta estava na curva dos cinquenta, idade de balanço em que a esperança na vida por vir teima em permanecer.

Olhar para trás, olhar em volta, é inevitável. O encontro com a nossa circunstância nem sempre é fácil.

E o cavalo do tempo a galopar…
Ninguém pode detê-lo.
Vê-lo,
É ver, a sonhar,
Um relâmpago a rasgar
O céu dum pesadelo
…


Transcrevo quase ao acaso alguns poemas. Dão conta da interrogação perante si e o mundo, num falar poético repleto de contida emoção.

Lastro

Depois da noite, o dia, a claridade!
A benção de acordar
E de ter vida!
Olhar
E descobrir a eternidade
Em cada contingência renascida.

A música concreta dos ruídos…
A frescura dos frutos orvalhados…
O perfume da brisa que perpassa…
E os sentidos
Felizes, excitados
Como podengos que farejam caça.

Assim dentro de nós o sol nascesse
E apagasse
Nessa madrugada,
A teimosa e penosa consciência
Da existência
Passada!

Calendário

Pregados na parede da memória,
Os dias do passado
Amarelecem.
Folhas mortas dum bloco de emoções,
Solto-as ao vento da melancolia.
Seis de Outubro, um de Abril,
Ano tal, ano tal, e a mais bela manhã primaveril
Desfeita numa pústula outonal!

A inútil persistência de viver!
O erro de lutar
Por qualquer duração!
Mesmo antes do
Letes
conhecido,
Todo o sonho,
Ou gemido,
Ou alegria,
É uma data vazia
No sepulcro do tempo decorrido.

Colóquio

Duvida das palavras…
Nunca disseram nada.
Palmeiras no deserto
Da expressão,
O mais que dão
É sombra aos sentimentos,
Nos momentos
Em que o sol é uma cruz de expiação.


Ouve o silêncio – a voz universal.
Só ele é o verdadeiro confidente
Do coração de tudo.
Poeta angustiado
E penitente,
Mudo
A teu lado
É que eu sou transparente…

Encontro

Rasgo todos os véus da minha vida,
Como quem despe a noiva em pensamento.
Eterno adolescente, desatento
Aos adultos conselhos da razão,
Violento
O pudor que lhe vela a imperfeição.

Quero a sua nudez desencantada,
Bosque sem folhas, onde a claridade
Desça à raiz das sombras e as desfaça.
Quero ver a pureza
Da impureza,
A intima brancura da desgraça.

E descubro o que sou no que ela é:
O triste dia a dia
Deste absurdo humano:
Erguida pelo vento da loucura,
Uma onda à procura
De oceano.

Viagem

Aparelhei o barco da ilusão
E reforçei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar…
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura…
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

E os poemas surgem-nos ordenados no livro como um olhar de balanço numa simbólica:

Câmara Ardente

Serve-se no presente
Dum símbolo futuro…
Um frio prematuro
De mortalha
Coalha
A inspiração
Que animava o seu canto.
Não morreu. Mas enquanto
A vida lhe negar um novo sol,
Mais quente e mais fecundo,
Não vislumbra outra imagem
Da intima paisagem
Deste mundo…

CÂMARA ARDENTE foi publicado em 1962, em Coimbra.

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