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Desaparecimento de Luísa Porto — um poema de Carlos Drummond de Andrade

08 Domingo Mar 2015

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Carlos Drummond de Andrade, Dorothea Lange

Dorothea Lange 08É para a mulher e o mundo que nos leva este poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Desaparecimento de Luísa Porto.

Protagonistas, mãe e uma filha, ambas de condição modesta, e nós, o mundo, para quem estas vidas humildes podem não ter relevância.

A ansiedade da mãe perante o desaparecimento da filha, o silêncio, o desamparo, o amor, a necessidade, o descaso dos outros, a vida em suma, tudo corre no poema em versos decantados, onde apenas a secura nos vibra as cordas da alma ao acompanhar o resignado desespero de quem se julga ninguém.

 

Desaparecimento de Luísa Porto

 

Pede-se a quem souber

do paradeiro de Luísa Porto

avise sua residência

À Rua Santos Óleos, 48.

Previna urgente

solitária mãe enferma

entrevada há longos anos

erma de seus cuidados.

 

Pede-se a quem avistar

Luísa Porto, de 37 anos,

que apareça, que escreva, que mande dizer

onde está.

Suplica-se ao repórter-amador,

ao caixeiro, ao mata-mosquitos, ao transeunte,

a qualquer do povo e da classe média,

até mesmo aos senhores ricos,

que tenham pena de mãe aflita

e lhe restituam a filha volatilizada

ou pelo menos dêem informações.

É alta, magra,

morena, rosto penugento, dentes alvos,

sinal de nascença junto ao olho esquerdo,

levemente estrábica.

Vestidinho simples. Óculos.

Sumida há três meses.

Mãe entrevada chamando.

 

Roga-se ao povo caritativo desta cidade

que tome em consideração um caso de família

digno de simpatia especial.

Luísa é de bom génio, correcta,

meiga, trabalhadora, religiosa.

Foi fazer compras na feira da praça.

Não voltou.

 

Levava pouco dinheiro na bolsa.

(Procurem Luísa.)

De ordinário não se demorava.

(Procurem Luísa.)

Namorado isso não tinha.

(Procurem. Procurem.)

Faz tanta falta.

 

Se, todavia, não a encontrarem

nem por isso deixem de procurar

com obstinação e confiança que Deus sempre recompensa

e talvez encontrem.

Mãe, viúva pobre, não perde a esperança.

Luísa ia pouco à cidade

e aqui no bairro é onde melhor pode ser pesquisada.

Sua melhor amiga, depois da mãe enferma,

é Rita Santana, costureira, moça desimpedida,

a qual não dá noticia nenhuma,

limitando-se a responder: Não sei.

O que não deixa de ser esquisito.

 

Somem tantas pessoas anualmente

numa cidade como o Rio de Janeiro

que talvez Luísa Porto jamais seja encontrada.

Uma vez, em 1898,

ou 9,

sumiu o próprio chefe de polícia

que saíra à tarde para uma volta no Largo do Rocio

e até hoje.

 

A mãe de Luísa, então jovem,

leu no Diário Mercantil,

ficou pasma.

O jornal embrulhado na memória.

Mal sabia ela que o casamento curto, a viuvez,

a pobreza, a paralisia, o queixume

seriam, na vida, seu lote

e que sua única filha, afável posto que estrábica,

se diluiria sem explicação.

 

Pela ultima vez e em nome de Deus

todo-poderoso e cheio de misericórdia

procurem a moça, procurem

essa que se chama Luísa Porto

e é sem namorado.

Esqueçam a luta política,

ponham de lado preocupações comerciais,

percam um pouco de tempo indagando,

inquirindo, remexendo.

Não se arrependerão. Não

há gratificação maior do que o sorriso

de mãe em festa

e a paz íntima

consequente às boas e desinteressadas acções,

puro orvalho da alma.

 

Não me venham dizer que Luísa suicidou-se.

O santo lume da fé

ardeu sempre em sua alma

que pertence a Deus e a Teresinha do Menino Jesus.

Ela não se matou.

Procurem-na.

Tampouco foi vítima de desastre

que a polícia ignora

e os jornais não deram.

Está viva para consolo de uma entrevada

e triunfo geral do amor materno

filial

e do próximo.

 

Nada de insinuações quanto à moça casta

e que não tinha, não tinha namorado.

Algo de extraordinário terá acontecido,

terremoto, chegada de rei.

As ruas mudaram de rumo,

para que demore tanto, é noite.

Mas há de voltar, espontânea

ou trazida por mão benigna,

o olhar desviado e terno,

canção.

 

A qualquer hora do dia ou da noite

quem a encontrar avise a Rua Santos Óleos.

Não tem telefone.

Tem uma empregada velha que apanha o recado

e tomará providências.

 

Mas

se acharem que a sorte dos povos é mais importante

e que não devemos atentar nas dores individuais,

se fecharem ouvidos a este apelo de campainha,

não faz mal, insultem a mãe de Luísa,

virem a página:

Deus terá compaixão da abandonada e da ausente,

erguerá a enferma, e os membros perclusos

já se desatam em forma de busca.

Deus lhe dirá:

Vai,

procura tua filha, beija-a e fecha-a para sempre em teu coração.

 

Ou talvez não seja preciso esse favor divino.

A mãe de Luísa (somos pecadores)

sabe-se indigna de tamanha graça.

E resta a espera, que sempre é um dom.

Sim, os extraviados um dia regressam

ou nunca, ou pode ser, ou ontem.

E de pensar realizamos.

Quer apenas sua filhinha

que numa tarde remota de Cachoeiro

acabou de nascer e cheira a leite,

a cólica, a lágrima.

Já não interessa a descrição do corpo

nem esta, perdoem, fotografia,

disfarces de realidade mais intensa

e que anúncio algum proverá.

Cessem pesquisas, rádios, calai-vos·

Calma de flores abrindo

no canteiro azul

onde desabrocham seios e uma forma de virgem

intacta nos tempos.

E de sentir compreendemos.

Já não adianta procurar

minha querida filha Luísa

que enquanto vagueio pelas cinzas do mundo

com inúteis pés fixados, enquanto sofro

e sofrendo me solto e me recomponho

e torno a viver e ando,

está inerte

gravada no centro da estrela invisível

Amor.

Dorothea Lange 06 600px

 

Poema publicado pela primeira vez em Novos Poemas (1946-1947).

Transcrito de Obra Completa, Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1967 e adoptada a ortografia de Portugal conforme publicado em Antologia da Poesia Brasileira, vol III, Lello & Irmão Editores, Porto, 1984.

 

As fotos que abrem e fecham o artigo são de Dorothea Lange (1895-1965).

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Dorothea Lange – As fotos da mãe migrante

03 Sexta-feira Maio 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à fotografia

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Dorothea Lange, FSA (Farm Security Administration), Mãe Migrante, Migrant Mother

migrant mother 1

Entre o conjunto de fotos sobre trabalhadores migrantes na California feitas por Dorothea Lange (1895-1965) entre os anos de 1936 – 1939 avultam as fotos conhecidas como da Mãe Migrante,

Tiradas ao abrigo do programa da FSA (Farm Security Administration) que se propunha documentar a Grande Depressão dos Anos 30 nos EUA, são hoje a imagem mesma desse período, para além dos filmes ou livros como As Vinhas da Ira de John Steinbeck.

Nas fotos vemos uma mulher que, sabemos hoje, tinha sete filhos e 32 anos à data das fotos.

É a ausência de esperança no olhar o que mais impressiona, naquele desolado enquadramento de miséria. Não durou eternamente, e a vida mudou (a Senhora, Florence Thompson, aceitou ser fotografada com três filhas em 1979, por Bill Ganzel).

Apesar da crueza, as fotos acabam por ser iconografia de esperança, e na sua verdade mostram como o eterno não dura sempre, e aos tempos difíceis melhores dias se sucedem.

Abri o artigo com a mais famosa das cinco fotos conhecidas. Seguem-se as restantes. São todas fotos feitas a partir dos negativos digitalizados, propriedade da Biblioteca do Congresso dos EUA.

migrant mother 5

migrant mother 2

migrant mother 4

migrant mother 3

 

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Ai, a vida! com Miguel Torga

26 Sábado Jan 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à fotografia, Poetas e Poemas

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Dorothea Lange, Miguel Torga

Dorothea Lange - Foto FSAVesperal

E, contudo, é bonito
O entardecer.
A luz poente cai do céu vazio
Sobre o tecto macio
Da ramagem
E fica derramada em cada folha.
Imóvel, a paisagem
Parece adormecida
Nos olhos de quem olha.
A brisa leva o tempo
Sem destino.
E o rumor citadino
Ondula nos ouvidos
Distraídos
Dos que vão pelas ruas caminhando
Devagar
E como que sonhando,
Sem sonhar…

Publicou Miguel Torga (1907-1995), já nos anos 80, uma Antologia Poética da sua poesia surgida em livro, constituindo-se como escolha pessoal da sua obra. A esse grupo acrescentou alguns poemas inéditos, um dos quais este Vesperal, transcrito acima, com que o livro se encerra.

Há na poesia de Torga uma verdade de sentimento ancorada em valores de ombridade, fidelidade à terra, e respeito pelos homens, que encanta e seduz mais e mais a cada leitura. Reflectindo sobre o seu estar no mundo, é com pudor que o poeta deixa transparecer as suas emoções, e é sobretudo nos poemas do final da vida que mais confidente se mostra, ainda que por detrás do verso velado que é a sua forma de se exprimir.

Termino com este MAGNIFICAT de 28 de Novembro de 1981 publicado no volume XIII do Diário.

MAGNIFICAT

Aí, a vida!
Quanto mais me magoa, mais a canto.
Mais exalto este espanto
De viver.
Este absurdo humano,
Quotidiano,
Dum poeta cansado
De sofrer,
E a fazer versos como um namorado,
Sem namorada que lhos queira ler.

Cego de luz, e sempre a olhar o sol
Num aturdido
Deslumbramento.
Cada breve momento
Recebido
Como um dom concedido
Que se não merece.
Aí, a vida!
Como dói ser vivida,
E como a própria dor a quer e agradece.

A foto que abre o artigo é de Dorothea Lange (1895-1965), feita nos EUA, no âmbito do programa FSA nos anos 30 do século XX, e o negativo é propriedade da Biblioteca do Congresso dos EUA.

 

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