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vicio da poesia

Tag Archives: Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade — A vida apenas, sem mistificação

09 Segunda-feira Dez 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Brasileira sec. XX

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Carlos Drummond de Andrade, Joel Meyerowitz

No céu também há uma hora melancólica

Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas

Por que fiz o mundo? Deus se pergunta 

e se responde: Não sei.

…

 

Assim abre o poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Tristeza no Céu, relato silencioso do desabar do mundo em redor:

…

Todas as hipóteses: a graça, a eternidade, o amor, 

caem, são plumas.

 

Outra pluma, o céu se desfaz.

Tão manso, nenhum fragor denuncia

o momento entre tudo e nada,

ou seja, a tristeza de Deus.

 

 

É este descalabro em volta contado com a mansidão de tanta poesia de Carlos Drummond de Andrade que, num seu poema anterior,  Os ombros suportam o mundo, também nos surge. Nele, é melancolia escondida sob aparentes e ásperas certezas o que o poeta relata: … / És todo certeza, já não sabes sofrer. / E nada esperas de teus amigos. / …

Foram-se sonhos, esperanças … / Porque o amor resultou inútil. / E os olhos não choram. / E as mãos tecem apenas o rude trabalho. / E o coração está seco. / … e ficou um cerrar de dentes e seguir em frente, ou seja:

…

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.

 

Esta vontade expressa de domar sentimentos e crenças, se por vezes somos tentados a ela, não é sem consequências, e tarde ou cedo elas, devastadoras, chegam…

Este verso, A vida apenas, sem mistificação., com que o poema Os ombros suportam o mundo termina, é uma falácia, pois A vida apenas, é tudo, incluindo a mistificação de que o poeta fala: a amizade, o amor. Ele, o poema, é o relato de um homem que sente o peso enorme da solidão involuntária: … / Ficaste sozinho, a luz apagou-se, / …

 

 

Eis os poemas integralmente:

 

 

Os ombros suportam o mundo

 

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.

E o coração está seco.

 

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas de teus amigos.

 

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

Teus ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

provam apenas que a vida prossegue

e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo

prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.

 

in Sentimento do Mundo (1935-1940)

 

 

Tristeza no Céu

 

No céu também há uma hora melancólica

Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas

Por que fiz o mundo? Deus se pergunta 

e se responde: Não sei.

 

Os anjos olham-no com reprovação 

e plumas caem.

 

Todas as hipóteses: a graça, a eternidade, o amor, 

caem, são plumas.

 

Outra pluma, o céu se desfaz.

Tão manso, nenhum fragor denuncia

o momento entre tudo e nada,

ou seja, a tristeza de Deus.

 

in José (1941-1942)

 

Poemas transcritos de Obra Completa, Companhia José Aguilar editora, Rio de Janeiro, 1967.

Abre o artigo a imagem de uma fotografia de Joel Meyerowitz (1938), Young Dancer, 34th Street and 9th Ave, de 1978.

 

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O Amor Antigo segundo Carlos Drummond de Andrade

13 Segunda-feira Ago 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Carlos Drummond de Andrade, Fra Filippo Lippi

Viver um amor antigo é uma experiência aberta a poucos, pois primeiro é preciso que o tempo passe e o prove. As vicissitudes, a ambição de realização individual, os encontros/desencontros ocasionais que podem fazer trocar o certo pelo incerto, tudo ajuda a que o amor se desvaneça. E chegados a certa idade da vida, afinal o que se supôs à partida amor eterno esfumou-se.
Para aqueles a quem ele permaneceu, surge como uma dádiva, como o escreve Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) no poema O Amor Antigo:
… Ele venceu a dor, / e resplandece no seu canto obscuro, / tanto mais velho quanto mais amor.

 

O Amor Antigo

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

in Amar se aprende amando, Editora Record, Rio de Janeiro e São Paulo, 1987.

 

Abre o artigo a imagem do pormenor de uma pintura de Fra Filippo Lippi (1406-1469).

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Desaparecimento de Luísa Porto — um poema de Carlos Drummond de Andrade

08 Domingo Mar 2015

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Carlos Drummond de Andrade, Dorothea Lange

Dorothea Lange 08É para a mulher e o mundo que nos leva este poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Desaparecimento de Luísa Porto.

Protagonistas, mãe e uma filha, ambas de condição modesta, e nós, o mundo, para quem estas vidas humildes podem não ter relevância.

A ansiedade da mãe perante o desaparecimento da filha, o silêncio, o desamparo, o amor, a necessidade, o descaso dos outros, a vida em suma, tudo corre no poema em versos decantados, onde apenas a secura nos vibra as cordas da alma ao acompanhar o resignado desespero de quem se julga ninguém.

 

Desaparecimento de Luísa Porto

 

Pede-se a quem souber

do paradeiro de Luísa Porto

avise sua residência

À Rua Santos Óleos, 48.

Previna urgente

solitária mãe enferma

entrevada há longos anos

erma de seus cuidados.

 

Pede-se a quem avistar

Luísa Porto, de 37 anos,

que apareça, que escreva, que mande dizer

onde está.

Suplica-se ao repórter-amador,

ao caixeiro, ao mata-mosquitos, ao transeunte,

a qualquer do povo e da classe média,

até mesmo aos senhores ricos,

que tenham pena de mãe aflita

e lhe restituam a filha volatilizada

ou pelo menos dêem informações.

É alta, magra,

morena, rosto penugento, dentes alvos,

sinal de nascença junto ao olho esquerdo,

levemente estrábica.

Vestidinho simples. Óculos.

Sumida há três meses.

Mãe entrevada chamando.

 

Roga-se ao povo caritativo desta cidade

que tome em consideração um caso de família

digno de simpatia especial.

Luísa é de bom génio, correcta,

meiga, trabalhadora, religiosa.

Foi fazer compras na feira da praça.

Não voltou.

 

Levava pouco dinheiro na bolsa.

(Procurem Luísa.)

De ordinário não se demorava.

(Procurem Luísa.)

Namorado isso não tinha.

(Procurem. Procurem.)

Faz tanta falta.

 

Se, todavia, não a encontrarem

nem por isso deixem de procurar

com obstinação e confiança que Deus sempre recompensa

e talvez encontrem.

Mãe, viúva pobre, não perde a esperança.

Luísa ia pouco à cidade

e aqui no bairro é onde melhor pode ser pesquisada.

Sua melhor amiga, depois da mãe enferma,

é Rita Santana, costureira, moça desimpedida,

a qual não dá noticia nenhuma,

limitando-se a responder: Não sei.

O que não deixa de ser esquisito.

 

Somem tantas pessoas anualmente

numa cidade como o Rio de Janeiro

que talvez Luísa Porto jamais seja encontrada.

Uma vez, em 1898,

ou 9,

sumiu o próprio chefe de polícia

que saíra à tarde para uma volta no Largo do Rocio

e até hoje.

 

A mãe de Luísa, então jovem,

leu no Diário Mercantil,

ficou pasma.

O jornal embrulhado na memória.

Mal sabia ela que o casamento curto, a viuvez,

a pobreza, a paralisia, o queixume

seriam, na vida, seu lote

e que sua única filha, afável posto que estrábica,

se diluiria sem explicação.

 

Pela ultima vez e em nome de Deus

todo-poderoso e cheio de misericórdia

procurem a moça, procurem

essa que se chama Luísa Porto

e é sem namorado.

Esqueçam a luta política,

ponham de lado preocupações comerciais,

percam um pouco de tempo indagando,

inquirindo, remexendo.

Não se arrependerão. Não

há gratificação maior do que o sorriso

de mãe em festa

e a paz íntima

consequente às boas e desinteressadas acções,

puro orvalho da alma.

 

Não me venham dizer que Luísa suicidou-se.

O santo lume da fé

ardeu sempre em sua alma

que pertence a Deus e a Teresinha do Menino Jesus.

Ela não se matou.

Procurem-na.

Tampouco foi vítima de desastre

que a polícia ignora

e os jornais não deram.

Está viva para consolo de uma entrevada

e triunfo geral do amor materno

filial

e do próximo.

 

Nada de insinuações quanto à moça casta

e que não tinha, não tinha namorado.

Algo de extraordinário terá acontecido,

terremoto, chegada de rei.

As ruas mudaram de rumo,

para que demore tanto, é noite.

Mas há de voltar, espontânea

ou trazida por mão benigna,

o olhar desviado e terno,

canção.

 

A qualquer hora do dia ou da noite

quem a encontrar avise a Rua Santos Óleos.

Não tem telefone.

Tem uma empregada velha que apanha o recado

e tomará providências.

 

Mas

se acharem que a sorte dos povos é mais importante

e que não devemos atentar nas dores individuais,

se fecharem ouvidos a este apelo de campainha,

não faz mal, insultem a mãe de Luísa,

virem a página:

Deus terá compaixão da abandonada e da ausente,

erguerá a enferma, e os membros perclusos

já se desatam em forma de busca.

Deus lhe dirá:

Vai,

procura tua filha, beija-a e fecha-a para sempre em teu coração.

 

Ou talvez não seja preciso esse favor divino.

A mãe de Luísa (somos pecadores)

sabe-se indigna de tamanha graça.

E resta a espera, que sempre é um dom.

Sim, os extraviados um dia regressam

ou nunca, ou pode ser, ou ontem.

E de pensar realizamos.

Quer apenas sua filhinha

que numa tarde remota de Cachoeiro

acabou de nascer e cheira a leite,

a cólica, a lágrima.

Já não interessa a descrição do corpo

nem esta, perdoem, fotografia,

disfarces de realidade mais intensa

e que anúncio algum proverá.

Cessem pesquisas, rádios, calai-vos·

Calma de flores abrindo

no canteiro azul

onde desabrocham seios e uma forma de virgem

intacta nos tempos.

E de sentir compreendemos.

Já não adianta procurar

minha querida filha Luísa

que enquanto vagueio pelas cinzas do mundo

com inúteis pés fixados, enquanto sofro

e sofrendo me solto e me recomponho

e torno a viver e ando,

está inerte

gravada no centro da estrela invisível

Amor.

Dorothea Lange 06 600px

 

Poema publicado pela primeira vez em Novos Poemas (1946-1947).

Transcrito de Obra Completa, Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1967 e adoptada a ortografia de Portugal conforme publicado em Antologia da Poesia Brasileira, vol III, Lello & Irmão Editores, Porto, 1984.

 

As fotos que abrem e fecham o artigo são de Dorothea Lange (1895-1965).

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Caso do vestido — poema de Carlos Drummond de Andrade lido por João Villaret

04 Sexta-feira Out 2013

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Carlos Drummond de Andrade, João Villaret

Graham_John_D.-Two_Sisters 1944Hoje, um poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-87) sobre mulheres, Caso do vestido.

Encontramos aqui um triângulo amoroso entre duas mulheres e um homem de onde resplandece a capacidade infinita de amar de ambas. Não há sofrimento que as canse ou faça soçobrar. Nesta abnegação e entrega ao amor, concentrada em sublime síntese poética, ocorre-me a história de Senso, sobretudo na versão filmada de Visconti, onde uma Alida Valli (a actriz) no papel da condessa, se arrasta do esplendor à maior degradação, traindo os seus, e os valores em que viveu, roubando ouro que lhe confiaram para o entregar e ir atrás do homem que ama e a repudia de forma ignóbil. Que mola move uma mulher a tal abnegação? Nenhum homem é capaz desta desmesura. Também não sei se algum homem quer um amor assim.

Na história poética do Caso do vestido, o homem é afinal um pobre diabo que nunca esteve à altura das mulheres que o amaram.

Ouçamos o poema lido de forma ímpar por João Villaret.

https://s3-eu-west-1.amazonaws.com/viciodapoesiamedia/Jo%C3%A3o+Villaret+-+Caso+do+Vestido+de+Carlos+Drummond+de+Andrade.mp3

Caso do Vestido

Nossa mãe, o que é aquele

vestido, naquele prego?

 Minhas filhas, é o vestido

de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?

Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.

Vosso pai ai vem chegando.

Nossa mãe, dizei depressa

que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo

ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,

está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido

tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai

palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,

vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,

se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,

se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,

bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,

foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.

Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda,

dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,

lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.

Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,

a essa dona perversa,

que tivesse paciência

e fosse dormir com ele…

Nossa mãe, por que chorais?

Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai

chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos

pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei

aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse

de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,

me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele

se a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,

não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,

os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,

os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,

de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia

as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,

me curvei… disse que sim.

Saí pensando na morte,

mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,

passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,

não comia, não falava,

tive uma febre terçã,

mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,

fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,

costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,

meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro

pagou conta de farmácia.

Vosso pai sumiu no mundo.

O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba

me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,

com uma trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,

não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.

Mas te dou este vestido,

última peça de luxo

que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,

da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,

ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado

confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.

Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengue,

no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,

me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,

me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,

rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:

vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa

que recorda meu malfeito

de ofender dona casada

pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido

e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,

quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,

quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha

delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados

com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,

boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus

nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho

e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.

Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestido

e disse apenas: — Mulher,

põe mais um prato na mesa.

Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,

era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado

e nem estava mais velho.

O barulho da comida

na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,

um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,

vestido não há… nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço

vosso pai subindo a escada.

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Era manhã de Setembro — poema de Carlos Drummond de Andrade

28 Segunda-feira Nov 2011

Posted by viciodapoesia in Erótica, Poetas e Poemas

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Carlos Drummond de Andrade

Passados que estão os prazeres de Setembro, de que aqui dei conta, restam recordações avivadas com este poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), o Sábio.

 

Era manhã de setembro

e

 ela me beijava o membro

 

Aviões e nuvens passavam

coros negros rebramiam

ela me beijava o membro

 

O meu tempo de menino

o meu tempo ainda futuro

cruzados floriam junto

 

Ela me beijava o membro

 

Um passarinho cantava,

bem dentro da árvore, dentro

da terra, de mim, da morte

 

Morte e primavera em rama

disputavam-se a água clara

água que dobrava a sede

 

Ela me beijando o membro

 

Tudo o que eu tivera sido

quanto me fora defeso

já não formava sentido

 

Somente rosa crispada

o talo ardente, uma flama

aquele êxtase na grama

 

Ela a me beijar o membro

 

Dos beijos era o mais casto

na pureza despojada

que é própria das coisas dadas

 

Nem era preito de escrava

enrodilhada na sombra

mas presente de rainha

 

tornando-se coisa minha

circulando-me no sangue

e doce e lento e erradio

 

como beijara uma santa

no mais divino transporte

e num solene arrepio

 

beijava beijava o membro

 

Pensando nos outros homens

eu tinha pena de todos

aprisionados no mundo

 

Meu império se estendia

por toda a praia deserta

e a cada sentido alerta

 

Ela me beijava o membro

 

O capítulo do ser

o mistério de existir

o desencontro de amar

 

eram tudo ondas caladas

morrendo num cais longínquo

e uma cidade se erguia

 

radiante de pedrarias

e de ódios apaziguados

e o espasmo vinha na brisa

 

para consigo furtar-me

se antes não me desfolhava

como um cabelo se alisa

 

e me tornava disperso

todo em circulos concêntricos

na fumaça do universo

 

Beijava o membro

beijava

e se morria beijando

a renascer em setembro

 

 

 

Nota final

O poema foi publicado em O amor natural, recolha de poesia erótica, editada postumamente por indicação do poeta, em 1992 no Brasil e em 1993 em Portugal em edição Europa-América com ilustrações de Clementina Cabral. Terá existido em vida do poeta uma edição particular em 1981. No Brasil o livro vai, ao que suponho, em 18ª edição.

Nada de semelhante terá alguma vez um grande poeta português aceitado publicar – 40 poemas eróticos onde a obscenidade está ausente, e as práticas do amor são exaltadas sem véus de falso pudor. Não serão capazes de os escrever?

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Mimosa boca errante – poema de Carlos Drummond de Andrade

21 Quarta-feira Set 2011

Posted by viciodapoesia in Erótica, Poetas e Poemas

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Carlos Drummond de Andrade

No mundo da poesia e nos acasos da leitura, leio em sequência dois poetas rigorosamente contemporâneos, Miguel Torga (1907-1995) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), poetas em que a poesia e o humor não podiam estar mais afastados.

Não aproveitou Miguel Torga, do Brasil, apesar de para lá ter partido criança e regressado jovem adulto, aquela ligeireza com que se dizem coisas graves e sérias, como Drummond amplamente praticou. E de certeza escondeu dos olhos do público as pulsões que o sexo lhe inspirou e apenas timidamente afloram em alguma da sua poesia, caso das Odes que semanas atrás transcrevi aqui no blog.

Foi diferente com Carlos Drummond de Andrade. Reuniu para publicação póstuma (O amor natural, 1992) um vasto acervo de belíssima poesia erótica onde os tabus estão ausentes.

É desse surpreendente e atordoador livro de poesia que transcrevo um dos poemas que sobre o assunto do soneto Beija-me, minha alma, doce espelho e guia,  o génio de Carlos Drummond de Andrade concebeu, talvez mais de quinhentos anos depois dele ter sido escrito, dando conta das continuidades que fazem com que a poesia seja um universal comum à humanidade.

 

Mimosa boca errante

Mimosa boca errante
à superfície até achar o ponto
em que te apraz colher o fruto em fogo
que não será comido mas fruído
até se lhe esgotar o sumo cálido
e ele deixar-te, ou o deixares, flácido,
mas rorejando a baba de delicias
que fruto e boca se permitem, dádiva.

Boca mimosa e sábia,
impaciente de sugar e clausurar
inteiro, em ti, o talo rígido
mas varado de gozo ao confinar-se
no limitado espaço que ofereçes
a seu volume e jato apaixonados,
como podes tornar-te, assim aberta,
recurvo céu infindo e sepultura?

Mimosa boca e santa,
que devagar vais desfolhando a liquida
espuma do prazer em rito mudo,
lenta-lambente-lambilusamente
ligada à forma ereta qual fossem
a boca o próprio fruto, e o fruto a boca,
oh, chega, chega, chega de beber-me,
de matar-me, e, na morte, de viver-me.

Já sei a eternidade: é puro orgasmo.

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E agora José?

29 Sábado Maio 2010

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Carlos Drummond de Andrade


Lembram-se do Zé tornado famoso na televisão? Foi título de um livro de histórias de Cardoso Pires, mas antes foi poema de Carlos Drummond de Andrade.

José

E agora José? / A festa acabou, / a luz apagou / o povo sumiu, / a noite esfriou, / e agora José? / e agora você? / você que é sem nome, / que zomba dos outros, / você que faz versos, / que ama, protesta? / e agora José?

Está sem mulher, / está sem discurso, / está sem carinho, / já não pode beber, / já não pode fumar, / cuspir já não pode, / a noite esfriou, / o dia não veio, / o bonde não veio, / o riso não veio, / não veio a utopia / e tudo acabou / e tudo fugiu / e tudo mufou, / e agora José?

E agora José? / sua doce palavra, / seu instante de febre, / sua gula e jejum, / sua biblioteca, / sua lavra de ouro, / seu terno de vidro, / sua incoerência, / seu ódio – e agora?

Com a chave na mão / quer abrir a porta, / não existe porta; / quer morrer no mar, / mas o mar secou; / quer ir para Minas, / Minas não há mais. /  José, e agora?

Se você gritasse, / se você gemesse, / se você tocasse / a valsa vienense, / se você dormisse, / se você cansasse, / se você morresse… / mas você não morre, / você é duro, José!

Sozinho no escuro / qual bicho-do-mato, / sem teogonia, / sem parede nua / para se encostar, / sem cavalo preto / que fuja a galope, / você marcha, José! / José, para onde?

Carlos Drummond de Andrade dispensa apresentação. É dos raros poetas brasileiros cuja obra tem sido regularmente editada em Portugal.

Senhor de uma inspiração singular, estilista maior da língua portuguesa, no aparente nada do dia-a-dia encontra a inspiração para nos fazer ver a beleza em que constantemente tropeçamos sem reparar:


Foi no Rio.

Eu passava na Avenida quase meia-noite.

Bicos de seios batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.

Havia a promessa do mar

e bondes tilintavam,

…

Havia a promessa do mar –   que verso lindo.


Ou aquele outro Poema de sete faces

…

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos não perguntam nada.


Sigo por esta poesia com a Confidência do Itabirano

…

A vontade de amar, que me paraliza o trabalho,

vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,

é doce herança itabirana.

…

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.

Hoje sou funcionário público

Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!


E termino por agora com os versos de abertura do poema A mesa, gigantesco quadro da vida na sua beleza e contradições.


E não gostavas da festa…

Ó velho, que festa grande

hoje te faria a gente.

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A bunda, que engraçada — poema de Carlos Drummond de Andrade

27 Quinta-feira Maio 2010

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Carlos Drummond de Andrade


 

Há imagens indeléveis que nos acompanham e no inesperado de um momento assaltam a memória.

Subia eu as escadas do metro e à minha frente flutuava, levitava, tornava-se imponderável no seu andar dançante, uma negra de ancas opulentas, lá vai sorrindo a bunda pensei.

Num flash voltou-me a imagem daquele filme absoluto sobre a adolescência – Amarcord – quando Gradiska, escultura de curvas em movimentos, quais esferas harmoniosas sobre o caos, surgia e desaparecia entre montes de neve onde o vermelho rompia o branco imaculado.

Não contente ainda, deixei rolar a memória cinéfila até Quanto mais Quente Melhor e revi Marilyn no autocarro da orquestra a caminhar de costas ao longo do corredor, fazendo soar todas as trombetas do desejo na caricia de ser e balançar.

Como o poeta tem razão!

 

A bunda, que engraçada.

Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

 

Não lhe importa o que vai

pela frente do corpo. A bunda basta-se.

Existe algo mais? Talvez os seios.

Ora – murmura a bunda – esses garotos

ainda lhes falta muito estudar.

 

A bunda são duas luas gemeas

em rotundo meneio. Anda por si

na cadência mimosa, no milagre

de ser duas em uma, plenamente.

 

A bunda se diverte

por conta própria. E ama.

Na cama agita-se. Montanhas

avolumam-se, descem. Ondas batendo

numa praia infinita.

 

Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz

na caricia de ser e balançar.

Esferas harmoniosas sobre o caos.

 

A bunda é a bunda,

redunda.

 

Notícia Bibliográfica:

O poema é de Carlos Drummond de Andrade e encontrei-o num livro em tempos oferecido por uma amiga querida – Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século. Foi editado em 2001 pela Editora Objectiva do Rio de Janeiro.

 

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