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No céu também há uma hora melancólica
Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas
Por que fiz o mundo? Deus se pergunta
e se responde: Não sei.
…
Assim abre o poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Tristeza no Céu, relato silencioso do desabar do mundo em redor:
…
Todas as hipóteses: a graça, a eternidade, o amor,
caem, são plumas.
Outra pluma, o céu se desfaz.
Tão manso, nenhum fragor denuncia
o momento entre tudo e nada,
ou seja, a tristeza de Deus.
É este descalabro em volta contado com a mansidão de tanta poesia de Carlos Drummond de Andrade que, num seu poema anterior, Os ombros suportam o mundo, também nos surge. Nele, é melancolia escondida sob aparentes e ásperas certezas o que o poeta relata: … / És todo certeza, já não sabes sofrer. / E nada esperas de teus amigos. / …
Foram-se sonhos, esperanças … / Porque o amor resultou inútil. / E os olhos não choram. / E as mãos tecem apenas o rude trabalho. / E o coração está seco. / … e ficou um cerrar de dentes e seguir em frente, ou seja:
…
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
Esta vontade expressa de domar sentimentos e crenças, se por vezes somos tentados a ela, não é sem consequências, e tarde ou cedo elas, devastadoras, chegam…
Este verso, A vida apenas, sem mistificação., com que o poema Os ombros suportam o mundo termina, é uma falácia, pois A vida apenas, é tudo, incluindo a mistificação de que o poeta fala: a amizade, o amor. Ele, o poema, é o relato de um homem que sente o peso enorme da solidão involuntária: … / Ficaste sozinho, a luz apagou-se, / …
Eis os poemas integralmente:
Os ombros suportam o mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
in Sentimento do Mundo (1935-1940)
Tristeza no Céu
No céu também há uma hora melancólica
Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas
Por que fiz o mundo? Deus se pergunta
e se responde: Não sei.
Os anjos olham-no com reprovação
e plumas caem.
Todas as hipóteses: a graça, a eternidade, o amor,
caem, são plumas.
Outra pluma, o céu se desfaz.
Tão manso, nenhum fragor denuncia
o momento entre tudo e nada,
ou seja, a tristeza de Deus.
in José (1941-1942)
Poemas transcritos de Obra Completa, Companhia José Aguilar editora, Rio de Janeiro, 1967.
Abre o artigo a imagem de uma fotografia de Joel Meyerowitz (1938), Young Dancer, 34th Street and 9th Ave, de 1978.