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Lembram-se do Zé tornado famoso na televisão? Foi título de um livro de histórias de Cardoso Pires, mas antes foi poema de Carlos Drummond de Andrade.
José
E agora José? / A festa acabou, / a luz apagou / o povo sumiu, / a noite esfriou, / e agora José? / e agora você? / você que é sem nome, / que zomba dos outros, / você que faz versos, / que ama, protesta? / e agora José?
Está sem mulher, / está sem discurso, / está sem carinho, / já não pode beber, / já não pode fumar, / cuspir já não pode, / a noite esfriou, / o dia não veio, / o bonde não veio, / o riso não veio, / não veio a utopia / e tudo acabou / e tudo fugiu / e tudo mufou, / e agora José?
E agora José? / sua doce palavra, / seu instante de febre, / sua gula e jejum, / sua biblioteca, / sua lavra de ouro, / seu terno de vidro, / sua incoerência, / seu ódio – e agora?
Com a chave na mão / quer abrir a porta, / não existe porta; / quer morrer no mar, / mas o mar secou; / quer ir para Minas, / Minas não há mais. / José, e agora?
Se você gritasse, / se você gemesse, / se você tocasse / a valsa vienense, / se você dormisse, / se você cansasse, / se você morresse… / mas você não morre, / você é duro, José!
Sozinho no escuro / qual bicho-do-mato, / sem teogonia, / sem parede nua / para se encostar, / sem cavalo preto / que fuja a galope, / você marcha, José! / José, para onde?
Carlos Drummond de Andrade dispensa apresentação. É dos raros poetas brasileiros cuja obra tem sido regularmente editada em Portugal.
Senhor de uma inspiração singular, estilista maior da língua portuguesa, no aparente nada do dia-a-dia encontra a inspiração para nos fazer ver a beleza em que constantemente tropeçamos sem reparar:
Foi no Rio.
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seios batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
…
Havia a promessa do mar – que verso lindo.
Ou aquele outro Poema de sete faces
…
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos não perguntam nada.
Sigo por esta poesia com a Confidência do Itabirano
…
A vontade de amar, que me paraliza o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
…
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
E termino por agora com os versos de abertura do poema A mesa, gigantesco quadro da vida na sua beleza e contradições.
E não gostavas da festa…
Ó velho, que festa grande
hoje te faria a gente.