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No mundo da poesia e nos acasos da leitura, leio em sequência dois poetas rigorosamente contemporâneos, Miguel Torga (1907-1995) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), poetas em que a poesia e o humor não podiam estar mais afastados.
Não aproveitou Miguel Torga, do Brasil, apesar de para lá ter partido criança e regressado jovem adulto, aquela ligeireza com que se dizem coisas graves e sérias, como Drummond amplamente praticou. E de certeza escondeu dos olhos do público as pulsões que o sexo lhe inspirou e apenas timidamente afloram em alguma da sua poesia, caso das Odes que semanas atrás transcrevi aqui no blog.
Foi diferente com Carlos Drummond de Andrade. Reuniu para publicação póstuma (O amor natural, 1992) um vasto acervo de belíssima poesia erótica onde os tabus estão ausentes.
É desse surpreendente e atordoador livro de poesia que transcrevo um dos poemas que sobre o assunto do soneto Beija-me, minha alma, doce espelho e guia, o génio de Carlos Drummond de Andrade concebeu, talvez mais de quinhentos anos depois dele ter sido escrito, dando conta das continuidades que fazem com que a poesia seja um universal comum à humanidade.
Mimosa boca errante
Mimosa boca errante
à superfície até achar o ponto
em que te apraz colher o fruto em fogo
que não será comido mas fruído
até se lhe esgotar o sumo cálido
e ele deixar-te, ou o deixares, flácido,
mas rorejando a baba de delicias
que fruto e boca se permitem, dádiva.
Boca mimosa e sábia,
impaciente de sugar e clausurar
inteiro, em ti, o talo rígido
mas varado de gozo ao confinar-se
no limitado espaço que ofereçes
a seu volume e jato apaixonados,
como podes tornar-te, assim aberta,
recurvo céu infindo e sepultura?
Mimosa boca e santa,
que devagar vais desfolhando a liquida
espuma do prazer em rito mudo,
lenta-lambente-lambilusamente
ligada à forma ereta qual fossem
a boca o próprio fruto, e o fruto a boca,
oh, chega, chega, chega de beber-me,
de matar-me, e, na morte, de viver-me.
Já sei a eternidade: é puro orgasmo.