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As madonas de Fra Filippo Lippi e sonetos de Diogo Bernardes

29 Domingo Set 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga

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Diogo Bernardes, Fra Filippo Lippi

Imagem em tudo rara e peregrina, / Retrato de beleza virginal, / Se tão bela te fez a mão mortal, /Que tal faria a própria mão divina? / …

A idealização da mãe de Jesus como modelo de beleza absoluta é uma das características-chave do culto Mariano entre católicos, e é da Virgem como essa imagem da beleza absoluta que no final do século XVI fala o poema de Diogo Bernardes (1530-1605), Soneto a Uma Imagem da Virgem, que citei a abrir à frente transcrevo integralmente.

No poema de Diogo Bernardes colhido entre a sua poesia religiosa, a enunciação dessa beleza representada: … / Se tanta luz uns cegos olhos tem, / Se tal espírito morta formosura, / …, como se leu, não se materializa nos seus atributos físicos, antes se refere a um difuso conceito de belo:

…

Mas serão sombras, onde a sombra é tal

Que a vista no conceito desatina.

 

Ficam os mais retratos sombra escura

Diante ti, …

A humanidade católica sempre sentiu a necessidade da representação visível desta beleza absoluta,  e durante séculos, muito do trabalho encomendado a pintores foram cenas da vida da Virgem Maria. A sua beleza ideal foi sendo captada e representada consoante os valores estéticos de cada época e os respectivos padrões da beleza feminina quando jovem.

Hoje, e para acompanhar o soneto de Diogo Bernardes, escolho algumas das imagens da Virgem pintadas por Fra Filippo Lippi (1406-1469), o mais requisitado pintor de imagens representando a Virgem Maria, na Florença da sua época, capital cultural do ocidente em pleno renascimento italiano. 

Espelho das ideias da época sobre os cânones de beleza humana colhidos na herança greco-latina, nessas pinturas encontramos plasmada a ideia platónica de que a beleza da alma se estampa na beleza física do rosto, num canon de suavidade de linhas e harmonia de proporção. E assim, estas pinturas simbolicamente representando Maria entregam à eternidade dos mais belos rostos femininos que a pintura antiga nos deixou.

Soneto a Uma Imagem da Virgem

 

Imagem em tudo rara e peregrina,

Retrato de beleza virginal,

Se tão bela te fez a mão mortal,

Que tal faria a própria mão divina?

 

Belezas nunca vistas imagina

Quem bem te vê no próprio original,

Mas serão sombras, onde a sombra é tal

Que a vista no conceito desatina.

 

Ficam os mais retratos sombra escura

Diante ti, tu menos ante quem

Tão branda representas, tão formosa.

 

Se tanta luz uns cegos olhos tem,

Se tal espírito morta formosura,

Qual sereis vós, oh Virgem piedosa?

 

O aspecto simbólico do retrato religioso passa hoje ao lado da maior parte dos apreciadores de pintura antiga. Retirados do contexto de ritual e devoção, enchem as galerias dos museus de arte antiga, oferecendo ao visitante o espectáculo do seu esplendor estético e mestria de factura, e com isso ganham uma outra vida, ensinando a quem olha e vê, o sublime que o belo pode conter. 

Não ocorrerá hoje a nenhum crente, perante uma pintura da virgem Maria numa sala de museu, dirigir-lhe uma oração de qualquer tipo, ainda que na sua origem, o propósito dessa pintura fosse exactamente o de desencadear no seu observador esse sentimento de contrição, como ainda hoje pode acontecer num local reservado ao culto, público ou privado, onde uma imagem equivalente se mostre. Com essa componente de devoção, em presença ou ausência de imagens alegóricas, transcrevo mais dois sonetos de Diogo Bernardes. 

 

Num primeiro poema, Soneto a Nossa Senhora,  pede-se um genérico perdão por pecados não explicitados:

…

Virgem cheia de graça, e de humildade,

Por cuja intersecção, por cujo meio

Perdão o pecador contrito alcança:

 

Posto que me vejais de culpas cheio,

Pondo olhos em mim com piedade,

Vereis que sempre em vós tive esperança.

No último soneto que transcrevo, é a intersecção da Virgem para que o liberte do cárcere o que o poeta solicita (Diogo Bernardes ficou preso em Marrocos quando de derrota portuguesa em Alcácer-Quibir, onde o rei D. Sebastião encontrou a morte), num quadro comum de devoção religiosa e seu socorro face às dificuldades, usando não a formulação trivial da oração mas o precioso da palavra poética:

…

Mereça-vos, Senhora, isto, que peço,

Um coração contrito, humilde, e pronto

A vos servir, podendo, com mil vidas.

…

 

Eis os poemas:

Soneto a Nossa Senhora

Formosa Virgem, que do sol vestida,

De estrelas coroada, ao sol puro

Tanto aprouveste neste vale escuro,

Que sua luz em vós trouxe escondida:

Virgem das Virgens, flor, fonte de vida,

Deste mundano mar porto seguro,

Rodeado jardim de forte muro,

Antes do mundo ser já escolhida.

Virgem cheia de graça, e de humildade,

Por cuja intersecção, por cujo meio

Perdão o pecador contrito alcança:

Posto que me vejais de culpas cheio,

Pondo olhos em mim com piedade,

Vereis que sempre em vós tive esperança.

 

 


Soneto a Nossa Senhora estando cativo

Oh do meu doce amor doce cuidado,

Oh defensora minha em paz, e em guerra,

Em cuja mão todo o poder se encerra,

Em cujo ventre andou Deus encerrado.

Abrí um dia já alvo, e dourado,

Em que deixando atrás est’alta serra,

Passando o bravo mar, abrace a terra,

Onde nele se crê crucificado.

Mereça-vos, Senhora, isto, que peço,

Um coração contrito, humilde, e pronto

A vos servir, podendo, com mil vidas.

Ou seja, se por mim o não mereço,

À conta das mercês que não têm conto,

Que tendes para todos merecidas.

Poemas transcritos de Diogo Bernardes, Várias Rimas ao Bom Jesus e à Virgem Gloriosa sua Mãe, e a Santos Particulares, edição de Marques Braga, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1946.

Acompanham o artigo imagens com detalhes de pinturas de Fra Filippo Lippi.

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O Amor Antigo segundo Carlos Drummond de Andrade

13 Segunda-feira Ago 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Carlos Drummond de Andrade, Fra Filippo Lippi

Viver um amor antigo é uma experiência aberta a poucos, pois primeiro é preciso que o tempo passe e o prove. As vicissitudes, a ambição de realização individual, os encontros/desencontros ocasionais que podem fazer trocar o certo pelo incerto, tudo ajuda a que o amor se desvaneça. E chegados a certa idade da vida, afinal o que se supôs à partida amor eterno esfumou-se.
Para aqueles a quem ele permaneceu, surge como uma dádiva, como o escreve Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) no poema O Amor Antigo:
… Ele venceu a dor, / e resplandece no seu canto obscuro, / tanto mais velho quanto mais amor.

 

O Amor Antigo

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

in Amar se aprende amando, Editora Record, Rio de Janeiro e São Paulo, 1987.

 

Abre o artigo a imagem do pormenor de uma pintura de Fra Filippo Lippi (1406-1469).

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Pintura em Berlim e a Balada dos Enforcados de François Villon

27 Segunda-feira Maio 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Dürer, Fra Filippo Lippi, François Villon, GHIRLANDAIO, Holbein, Jan van EYCK, MAINARDI, Vermeer

Holbein - O mercador Gisze - 1532É com emocionante surpresa que a cada passo, ao visitar os museus de pintura em Berlim, encontro obras que por anos conheci em fotografia e integraram o museu da minha imaginação. São talvez dezenas as que já surgiram no blog porque com elas me cruzei num livro e me interrogaram, sem que soubesse onde se encontravam e agora, ao circular de sala em sala, surgem, inesperadas. É um júbilo que me invade. Apetece mexer-lhes, vê-las de perto, encontrar os detalhes que em tempos prenderam a atenção. E as surpresas de escala são frequentes: a algumas das pinturas julgava-as pequenas e surgem enormes, outras pensadas de dimensões generosas, são afinal pequeníssimas. Enfim, prazeres do olhar que enchem a alma.

Anónimo - 1450O que faz de Berlim um caso especial é a diminuta divulgação mediática que os museus fazem do seu acervo, resultando daí um enorme desconhecimento sobre os tesouros que lá se guardam.

Vermeer - Mulher com colar de pérolas 1662-64Acrescento hoje alguma pintura antiga de retrato, paixão minha a que tento aliciar os leitores do blog. Alguns são retratos pouco divulgados nas monografias onde o peso das colecções norte-americanas e francesas se faz sentir. Aí ficam à contemplação do olhar.

GHIRLANDAIO ou MAINARDI - retrato de rapariga 1500

EYCK, Jan van - retrato de homem com cravo - 1435

Dürer - retrato de rapariga 1497Este olhar o outro, encontrando simultaneamente continuidades e diferenças culturais, faz da observação de cada retrato um imenso desafio à compreensão de quem somos. Na envolvência que procuramos e nos conforta, medimos a distancia que nos separa destes mundos passados que a pintura faz presentes.

Fra Filippo Lippi -  rapariga de perfil 1440-42No mosaico que a realidade sempre é, tentar captar por vislumbres uma época passada é tarefa sobremaneira cheia de prazeres intelectuais. Das épocas mais recuadas, ficaram-nos às vezes testemunhos escritos, outras vestígios da civilização material, quase sempre obras de arte que continuam a falar-nos, revelando o seu carácter intemporal.

A pouco e pouco, conhecer e preencher o puzzle de uma época que nos interroga e apaixona, dando forma na cabeça à atmosfera que nela se vivia, acaba por ser o sentido de ler e viajar pelos territórios onde os seus vestígios permanecem.

Se diversas épocas e geografias têm ao longo dos anos preenchido uma aparente insaciável curiosidade, acabo sempre, a cada nova descoberta, por regressar à Europa do século XV, aquele período da gesta dos descobrimentos portugueses e de invenção do mundo moderno que herdámos.

Foram desse tempo alguns retratos encontrados em Berlim e mostrados antes. É desse tempo a famosa Balada dos Enforcados de François Villon (1431-1464) poema em que nos confrontamos com a mais extrema violência sobre os homens, a aceitação da sua legitimidade e justificação, numa sociedade requintada capaz de produzir a sofisticação de que estes retratados dão mostras.

L’Épitaphe de Villon en forme de ballade

Homens irmãos que mais que nós viveis,
Não deixeis vosso peito empedernido,
Pois que, se compaixão de nós haveis,
Bem será Deus de vós compadecido.
Aqui somos atados cinco, seis.
Quanto à carne, demais por nós nutrida,
É gasta, devorada, corrompida
E nós, ossos, cinza e pó vamos ser.
Que ninguém de nós ria nesta vida,
Rogai a Deus que nos queira absolver!

Se clamamos, irmãos, vós não deveis
Ter desdém, por termos sido feridos
Pela justiça. Pois vós sabereis
Que nem todos têm certos os sentidos;
Intercedei por nós assim transidos
Junto do Filho da Virgem Maria,
Que não seja, da graça, a alma vazia,
Pra do fogo infernal nos proteger
Somos mortos, nada nos arrelia;
Rogai a Deus que nos queira absolver!

Pela chuva lavados e polidos,
Pelo sol ressequidos e tostados,
Os olhos pelos corvos engolidos,
A barba e os cabelos arrancados.
Nunca jamais estamos assentados,
Pra cá, pra lá, como o vento varia;
Para onde quer, sem parar, nos envia.
Bicadas: mil, até dedais parecer.
Não sejais, pois, da nossa confraria;
Rogai a Deus que nos queira absolver!

Senhor Jesus, de todos senhoria,
Poupai-nos do Inferno a tirania:
Nada temos com ele a resolver.
Homens, aqui não cabe a zombaria;
Rogai a Deus que nos queira absolver!

Tradução de Herculano de Carvalho.

Os curiosos poderão encontrar na ligação abaixo o texto original da balada e a sua versão em francês moderno.

Texte de la ballade et transcription en français moderne

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