Um filme ícone do cinema neo-realista italiano, Riso Amaro (Arroz Amargo) de 1949, cuja acção decorre entre mondadeiras de arroz, dá conta simultaneamente de uma realidade social: as aspirações de vida melhor da juventude italiana pobre do pós- 2.ª guerra mundial, e de como o uso do corpo pode permitir uma ilusória melhoria material, se não alguma ascensão social.
Filmado com mão de mestre por Giuseppe de Santis (1917-1997), toda aquela exploração humana é atravessada pelo erotismo que a juventude de qualquer condição social sente e vive. E aí, a pulposa e belíssima Silvana Mangano (1930-1989) nos seus 19 anos, dá corpo a uma personagem de antologia. O filme, proibido em Portugal até ao 25 de Abril de 1974 exactamente pela sua carga erótica, é um objecto precioso de uma certa maneira de ver pelo cinema.
O trabalho das mondadeiras de arroz em meados do século XX, — Cantam, plantadas n’água, / Ao sol e à monda neste mês de Agosto. —, que em Portugal também existia, serviu a Miguel Torga (1907-1995) para um poema (Lezíria) em que a realidade social se associa a uma identidade de grupo nas mesmas condições de vida, e o poeta observa com empatia na distância da sua condição social.
O poema de Torga leva-nos a ver, naquela dura experiência, o amargo da condição humana — Cantam baixo, e parece / Que na raiz humana dos seus pés / Qualquer coisa apodrece. —, quando o conforto material é inexistente e a luta pela sobrevivência obrigava (e obriga) à emigração sazonal para os trabalhos duros do campo.
Sobre este poema de Miguel Torga escreveu Alexandre O’Neill (1924-1986) por ocasião de uma homenagem ao poeta(*):
“Lezíria de Miguel Torga é um objeto mágico que há mais de 30 anos me acompanha — e devo dizer, com toda a franqueza, que da poesia portuguesa de hoje poucos são os talismã que trago comigo.”
O artigo continua numa interessante análise do poema verso a verso.
Lezíria
São duzentas mulheres. Cantam não sei que mágoa
Que se debruça e já nem mostra o rosto.
Cantam, plantadas n’água,
Ao sol e à monda neste mês de Agosto.
Cantam o Norte e o Sul duma só vez.
Cantam baixo, e parece
Que na raiz humana dos seus pés
Qualquer coisa apodrece.
Ribatejo, 11 de Agosto de 1941.
Poema incluído em Diário I, Coimbra,
(*) Artigo publicado no jornal A Luta em 4 de Novembro de 1976, e republicado em Relâmpago, Revista de Poesia, 13, Out 2003.
Abre o artigo a imagem de um cartaz publicitário ao filme Arroz Amargo.