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E de novo relatos de paixão e seu fim reflectidos na poesia. Hoje traduzo poemas do colombiano Juan Gustavo Cobo Borda (1948). Primeiro a notícia de uma paixão, talvez clandestina, no poema Teu corpo: O mundo, que sobretudo conta como o mergulho físico no outro deixa o resto do mundo para trás:

Lá fora o mundo, monótono como uma tragédia.

Carácter que modificou a força única de um beijo,

todo o mundo está aqui, no teu corpo.

 

Depois, em Romance de ocasião, a vertigem de uma paixão e o seu fim:

 

Supostamente não era o tempo mais adequado 

para nos unirmos, sedentos um do outro, 

por hotéis efémeros 

que ainda ardem na memória. 

Hoje, quando o pranto angustiado

buscar em vão um pouco de paz 

só vejo a minha mão acariciando a tua nuca;

a tua, repousando no meu ventre. 

Aprenderei, é certo, uma nova forma de estar só,

carente da impetuosa confiança que me davas 

 

E enquanto houver mundo, notícia poética teremos deste vai-vem ao abismo dos sentidos.

Vamos aos poemas.

 

 

Teu corpo: O mundo

 

Lá fora o mundo e as suas pequenas misérias.

Aqui a difícil ciência do abraço,

a lentidão com que aprendo as tuas costas,

a arte de delapidar o tempo 

no descobrimento cauteloso do outro corpo.

Lá fora o aborrecido lastro do que fomos 

e esse manchado nome que não nos pertence.

Aqui, ao contrário, a inerme vulnerabilidade

do que sentimos pela primeira vez.

Lá fora os olhos que nos julgam 

as desculpas que devemos inventar para alcançar o êxtase,

essas mentiras nas quais nem nós mesmos acreditamos.

Aqui o compassado ballet 

graças ao qual as almas se amoldam,

isentas de qualquer remorso.

Lá fora o mundo e os seus mexericos néscios

tratando de contaminar este pudor que treme.

Lá fora o mundo, monótono como uma tragédia.

Carácter que modificou a força única de um beijo,

todo o mundo está aqui, no teu corpo.

 

Poema original em Todos los poetas son santos e irán al cielo 

 

Romance de ocasião

 

Supostamente não era o tempo mais adequado 

para nos unirmos, sedentos um do outro, 

por hotéis efémeros 

que ainda ardem na memória. 

Mas nunca há outro tempo senão este 

quando o passado por resolver fica atrás 

e uma ténue capa de beijos estanca a ferida.

Este, em que entro em ti 

e teu corpo formula a sua obscura exigência.

Hoje, quando o pranto angustiado

buscar em vão um pouco de paz 

só vejo a minha mão acariciando a tua nuca;

a tua, repousando no meu ventre. 

Uma cidade hostil 

onde o teu rosto arrasado me diz adeus 

com uma determinação que ignorava.

Aprenderei, é certo, uma nova forma de estar só,

carente da impetuosa confiança que me davas 

e todavia, perdoa por dizê-lo,

cuspirei cem vezes 

sobre o excessivamente feliz que me fizeste.

 

Poema original em Salón de té

 

 

Lúcido, o poeta, não só escreveu o que acima lemos, mas interrogando-se sobre o seu propósito não deixa também de o reflectir em Poética:

Para quê aumentar as dúvidas,

reviver antigos conflitos,

imprevistas ternuras;

esse pouco de ruído

acrescentado a um mundo

que o ultrapassa e anula?

poema com que termina esta curta viagem, e assim dando voz à eterna dúvida dos poetas sobre a relevância do seu escrever.

 

 

Poética

 

Como escrever agora poesia,

porque não calarmo-nos definitivamente 

e dedicarmo-nos a coisas muito mais úteis?

Para quê aumentar as dúvidas,

reviver antigos conflitos,

imprevistas ternuras;

esse pouco de ruído

acrescentado a um mundo

que o ultrapassa e anula?

Aclara-se algo com semelhante novelo?

A ninguém faz falta.

Resíduo de velhas glórias,

a quem acompanha, que feridas cura?

 

Poema original em Consejos para sobrevivir, 1974.

 

Traduções de Carlos Mendonça Lopes a partir dos originais incluídos em Antología, La poesía del sigilo XX em Colombia, Visor Libros, Madrid, 2006.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Willem de Kooning (1904-1997), Abstracção de 1949-50, da colecção do Museo Nacional Thyssen-Bornemisza, Madrid.