Etiquetas
Lermo-nos pelo olhar dos outros, quando inteligentes e despreconceituados, ajuda-nos a perspectivar uma história e um sentir colectivo que frequentemente parece perdido nestes conturbados tempos de crise.
É sabido o conhecimento, o carinho, e admiração de Don Miguel de Unamuno (1864-1936) por Portugal, pela cultura portuguesa, por terras e gentes de Portugal; o que a correspondência conhecida, trocada com grandes vultos da cultura portuguesa, e o livro Por Tierras de Portugal y de España evidenciam.
Transcrevo hoje o poema PORTUGAL dando na sua forma condensada em soneto, algo do que nos define enquanto povo: a geografia que nos desenhou e a história que deixou para as mulheres a guarda do que ficou, quais leoas de olhar desconfiado protegendo as crias, e a ansiedade expectante do que o futuro trará. Partem os homens na busca de melhor vida. Regressarão?
Não sei se será este PORTUGAL o poema a que Unamuno se refere em carta a Manuel Laranjeira datada de Salamanca, 08-10-1908, onde diz a certa altura:
“Voltei outra vez a um poema que comecei há três anos no Porto e a que chamo Portugal. Essa sua terra atrai-me e atrai-me sobretudo por causa das suas desgraças e prostração.“
PORTUGAL
Do atlântico mar na praia areosa
uma matrona descalça e desgrenhada
senta-se ao pé de uma serra coroada
por triste pinheiral. Nos joelhos pousa
os cotovelos e nas mãos a ansiosa
face, e olhos de leoa desconfiada
crava no poente; o mar dá a toada
trágica, de altos feitos sonorosa.
Fala de vastas terras e de azares
enquanto ela, seus pés nessas espumas
banhando, sonha no fatal império
que se sumiu nos tenebrosos mares,
e olha como entre agoureiras brumas
se ergue D. Sebastião, rei do mistério.
Salamanca, 28 IX 1910
Tradução de José Bento in Miguel de Unamuno, Antologia Poética, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003.
Termino com o poema-homenagem que Miguel Torga (1907-1995) escreveu para Unamuno.
Unamuno
D. Miguel…
Fazia pombas brancas de papel
Que voavam da Ibéria ao fim do mundo…
Unamuno Terceiro!
(Foi o Cid o primeiro,
D. Quixote o segundo.)
Amante duma outra Dulcineia,
Ilusória, também
(Pátria, mãe,
Ideia
E namorada),
Era seu defensor quando ninguém
Lhe defendia a honra ameaçada!
Chamado pelo aceno da miragem,
Deixava o Escorial onde vivia,
E subia, subia,
A requestar na carne da paisagem
A alma que, zeloso, protegia.
Depois, correspondido,
Voltava à cela desse nosso lar
Por Filipe Segundo construído
Com granito da fé peninsular.
E falava com Deus em castelhano.
Contava-lhe a patética agonia
Dum espírito católico, romano,
Dentro dum corpo quente de heresia.
Até que a madrugada o acordava
Da noite tumular.
E lá ia de novo o cavaleiro andante
Desafiar
Cada torvo gigante
Que impedia o delírio de passar.
Unamuno Terceiro!
Morreu louco.
O seu amor, por ser demais, foi pouco
Para rasgar o ventre da Donzela.
D. Miguel…
Fazia pombas brancas de papel,
E guardava a mais pura na lapela.
Publicado em Poemas Ibéricos (1ªedição em 1965).
Abre o artigo uma iluminura medieval figurando o cerco castelhano a Lisboa durante a crise de 1383-1385 — “Se Lisboa se não opusera todo o reino se perdera, D. João I”.
Termino com outra iluminura, desta vez pretendendo ilustrar a batalha de Aljubarrota onde Castela foi definitivamente derrotada, e figurou como heroína a célebre Padeira de Aljubarrota.