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Para o indizível encanto das cidades que nos prendem busca a poesia resposta. Vã tentativa ou problemático sucesso. O mundo de cheiros, vistas, sabores e memórias não cabe por inteiro nas palavras. Apenas uma aproximação se consegue, às vezes em belos e comoventes poemas.

Coimbra como cidade universitária, lugar de experiências e memórias juvenis de tantos poetas, foi frequentemente o alvo da expressão desse encanto que às palavras foge.

Hoje deixo de fora delíquios e amores estudantis, ora contados em tom sério, ora risonhos ou irónicos, e transcrevo alguns poemas de Miguel Torga (1907-1995), quase uma espécie de poeta da cidade, pois aí exerceu profissionalmente, longos anos, como médico. São poemas onde o pitoresco se transcende para uma meditação do eu no quadro do lugar que o envolve:

 

Devolvo à tarde triste a luz que me entristece,
E vou entristecendo
O largo,
O rio,
O campo
E, mais além, a linha do horizonte.

 

 

Comecemos com uma espécie de epifania numa tarde de Abril quando  … uma alegria incontida / Sorri no rosto de tudo.

 

 

Boletim

Tarde limpa,
De pureza comungada.
No rio, corre, parada,
A paisagem reflectida;
Há não sei que voz traída
No silêncio do que é mudo;
A luz parece despida;
E uma alegria incontida
Sorri no rosto de tudo.

Coimbra, 17 de Abril de 1969.
in Diário XI, 1973.

 

 

Abril, mês de Primavera, quando o tempo afecta os sentidos, tanto a alegria pode ser esfuziante como o desalento pode chegar, e num registo melancólico aí o temos ao crepúsculo: E uma sombra de mudo / Desalento / Começa a desfazer as rugas animadas / Do próprio sofrimento / Cada vez mais informe nas calçadas.

 

Crepúsculo

Caiu a tarde, e nem sequer ficou
A colorir a talha de alguns versos
Uma réstia do sol que o dia inteiro
Iluminou a praça.
Foi-se a graça
De tudo.
E uma sombra de mudo
Desalento
Começa a desfazer as rugas animadas
Do próprio sofrimento
Cada vez mais informe nas calçadas.

Coimbra, 8 de Abril de 1975.
in Diário XII, 1977.

 

 

E, contudo, é bonito / O entardecer. / A luz poente cai do céu vazio / Sobre o tecto macio / Da ramagem / E fica derramada em cada folha. São as palavras do poeta para estes diferentes findar dos dias em Abril, na cidade, quando …  o rumor citadino / Ondula nos ouvidos / Distraídos / Dos que vão pelas ruas caminhando / Devagar / E como que sonhando / Sem sonhar…

 

 

Vesperal

E, contudo, é bonito
O entardecer.
A luz poente cai do céu vazio
Sobre o tecto macio
Da ramagem
E fica derramada em cada folha.
Imóvel, a paisagem
Parece adormecida
Nos olhos de quem olha.
A brisa leva o tempo
Sem destino.
E o rumor citadino
Ondula nos ouvidos
Distraídos
Dos que vão pelas ruas caminhando
Devagar
E como que sonhando
Sem sonhar…

Coimbra, 28 de Abril de 1984.
in Diário XIV, 1987.

 

 

Terminada esta curta viagem por Coimbra em Abril na poesia de Miguel Torga, concluo com o poema que citei a abrir, Expectação. Desejo de poeta que anseia A luz de um novo dia./ Um dia alegre, / Limpo, / Singular, / … / Miraculosamente amanhecido / Nas sílabas de um verso enfeitiçado, / A ressoar, medido e desmedido, / Na concha do ouvido / Deslumbrado.

 

 

Expectação

Devolvo à tarde triste a luz que me entristece,
E vou entristecendo
O largo,
O rio,
O campo
E, mais além, a linha do horizonte.
Mas repreendo os olhos e regresso
À página vazia
Onde, possesso,
Aguardo que desponte
A luz de um novo dia.

Um dia alegre,
Limpo,
Singular,
De nenhuma semana,
De nenhum mês,
De nenhum ano,
Miraculosamente amanhecido
Nas sílabas de um verso enfeitiçado,
A ressoar, medido e desmedido,
Na concha do ouvido
Deslumbrado.

Coimbra, 9 de Julho de 1975.
in Diário XII, 1977.

 

Poemas transcritos de Poesia Completa, 2 volumes, Publicações D. Quixote, Lisboa, 2007.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de James Holland (1799-1870), imagem de Coimbra ao tempo em que moços estudantes/poetas aí pululavam, do desabrochar do romantismo ao seu estertor, ou seja, entre António Feliciano de Castilho e Antero de Quental, e foram uma plêiade. Não já a cidade pintada nos poemas que transcrevi acima.