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Usando as palavras com uma precisão cirúrgica, a poesia de Luiza Neto Jorge (1939-1989) corta o inócuo das aparências como lâmina de bisturi, expondo o complexo biológico e social humano:
Viver, entretanto, é ver, e ir vendo
e também ver inclui dormir
sem que nada se desfaça se exclua
no interior dos sonhos.
…
do poema Recanto 2
Transcrevo a seguir, desta poesia de dilaceração, o poema Jornal de domingo:
…
Na casa não há domingo
há um fio de amor partido
que sangra pingo por pingo
Poema dentro do poema, simultaneamente lemos o que do mundo faz o recreio nas notícias do jornal de domingo:
Na página aberta
do jornal de hoje
um anúncio traz
a mulher bela
com poros de pele
um cabelo que são
letras soltas
…
Todos nós esperamos
que ao dobrar a página
se leia isto aquilo
a emoção de ler
e se leia tudo
do pensar na fêmea
a fêmea esgotada
desde o púbis à cor
do riso
…
se leiam as coisas
nas conversas
que entre si não têm
nos obstáculos
que entre si não saltam
…
Com letras maiores
aparece o nome
de um amante morto
com o crânio calvo
de ave sonhadora
…
e lemos depois um quadro doméstico onde o lido se reflecte:
…
Acontece então
um homem sentir
a água escorrer
dentro do pescoço
e fazer-lhe um nó
como de gravata
que lhe vai bem
nesse fato inútil
vestido à pressa
para ler o jornal
para matar a fêmea
que o recusou
…
A violência doméstica hoje vivida concentra-se de forma alegórica e lapidar neste poema, a lembrar a realidade terrível vivida no presente pelas vítimas mortais, e candidatas a sê-lo, de um quadro social que desculpabiliza e consente o ciúme e a sua corte de valores, como legítima justificação de opressão até ao assassínio.
Jornal de domingo
Na página aberta
do jornal de hoje
um anúncio traz
a mulher bela
com poros de pele
um cabelo que são
letras soltas
sua boca é um selo
na resposta à carta
que lhe pede a mão
e o seu sexo louro
e o rosto liso
na fotografia
como um peixe rindo
Todos nós esperamos
que ao dobrar a página
se leia isto aquilo
a emoção de ler
e se leia tudo
do pensar na fêmea
a fêmea esgotada
desde o púbis à cor
do riso
quando se ergue
e o vento recua
quando se deita
e se esquece nisso
se leiam as coisas
nas conversas
que entre si não têm
nos obstáculos
que entre si não saltam
homens objetos
anões fadas peixes
gulodices
Com letras maiores
aparece o nome
de um amante morto
com o crânio calvo
de ave sonhadora
que outrora poisou
de amor em amor
dentro dos domingos
*
Domingo é o espaço
onde todos cabem
sem lhes ser preciso
fazer vénia ao sol
Acontece então
um homem sentir
a água escorrer
dentro do pescoço
e fazer-lhe um nó
como de gravata
que lhe vai bem
nesse fato inútil
vestido à pressa
para ler o jornal
para matar a fêmea
que o recusou
e se lhe afeiçoa
o fato depois da vingança
e o faz igual
a alguém que dança
Aranha ao de leve
arranha no corpo
e o homem não lê
porque está esquecido
— a pensar em quê?
— Mais um domingo —
é o que dirá
se não o matarem
por qualquer razão
mil punhais salobros
saídos do chão
se voltar a casa
é o que dirá
Na casa não há domingo
há um fio de amor partido
que sangra pingo por pingo
in Luiza Neto Jorge, poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 1993.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Heinrich Maria Davringhausen (1894-1970), der lustmörder, o prazer assassino.
À esquerda uma mulher jaz numa cama, degolada e nua. Ao centro, sentado à mesa, navalha pousada, garrafa e copo, e algo na mão, o assassino olha, reflexivo, inexpressivo quanto à tragédia que provocou, transmitindo de forma eloquente quanto já perdeu do que um dia o aproximou de um ser humano digno.
Quadro banhado a vermelho, alegoria simultânea do sangue derramado e do inferno de uma vida, pelas janelas entra a luz do mundo exterior, dia e noite, no seu caminhar indiferente a esta tragédia humana entre quatro paredes.