Etiquetas
Fico feliz quando o trabalho me leva para o Sul. É provavelmente a largueza de horizontes que me atrai. Não é ainda o infinito do mar, mas a lonjura desimpedida sempre transmite uma sensação de liberdade.
Amanheceu para os lados do rio com nevoeiro cerrado e do branco húmido a ponte surgia como que suspensa do céu à medida que o carro avançava. Com o correr da manhã o tempo abriu e o céu mostrou-se. Fiz o que ali me levava e trabalho arrumado deambulei frente ao rio. Havia gaivotas —
Querela de aves, pios, escarcéu. / Ainda palpitante voa um beijo.
…
E é a força sem fim de duas bocas, / De duas bocas que se juntam, loucas!
No regresso bailavam-me as palavras do soneto O Beijo de Alexandre O’Neill ( 1924-1986). Transcrevo-o com o imperscrutável olhar da gaivota que tudo desencadeou.
O Beijo
Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.
Donde teria vindo! (Não é meu…)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?
É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.
E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar…
Publicado pela primeira vez em No Reino da Dinamarca (1958) e transcrito de Poesias Completas 1951/1986, INCM, 3ª edição revista e aumentada, Edição do Dia de Portugal, Braga, 10-Junho-1990.