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Tag Archives: Salvador Dalí

Martim de Castro do Rio e Frei António das Chagas às voltas com as contas do tempo e seu uso

10 Sexta-feira Jan 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga

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Frei António das Chagas, Martim de Castro do Rio, Salvador Dalí

Ganhou nos nossos dias divulgação acrescida um soneto atribuído a Frei António das Chagas, no século António da Fonseca Soares, (1631-1682), Conta e tempo, ao ser cantado por Camané com música de fado. 

Aborda o soneto, na peculiaridade formal da poesia barroca, a questão que a certa altura da vida todos nos colocamos: que fiz com o tempo que me foi dado viver? 

O assunto vem tratado no soneto de Frei António das Chagas na perspectiva religiosa e da vida no além, questionando as contas que é preciso prestar a Deus sobre a forma de viver o tempo de uma vida. Acontece que cerca de meio século antes, a mesma questão: que fiz com o tempo que me foi dado viver?, foi formulada em idênticos termos poéticos, que não teológicos, por Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), poeta maneirista entre os poetas menores contemporâneos de Camões. Refere o soneto de Martim de Castro do Rio esta prestação de contas a si próprio e não a Deus, colocando, portanto, a ênfase na responsabilidade individual sobre as consequências das escolhas do viver, e não como as pedras do caminho para um qualquer prémio ou castigo, a que a perspectiva religiosa conduz.

O poema de Frei António das Chagas é no vocabulário e desenvolvimento da ideia idêntico ao soneto de Martim de Castro do Rio, e hoje dificilmente escaparia a ser considerado um flagrante plágio, a que nem o desvio da reflexão introduzida no poema pela presença de Deus salvaria. Eram outros tempos e o poema passou à história com inteira propriedade como de Frei António das Chagas, permanecendo o poema de Martim de Castro do Rio, que lhe é anterior, no esquecimento dos manuscritos até à sua edição recente.

Nunca é demais realçar ser o tempo o único bem que a cada indivíduo verdadeiramente pertence. E é na compatibilização das escolhas, ao vender o tempo que se possui, trabalhando para ganhar o dinheiro que permite viver, com a utilização do seu uso no quadro de valores que nos governam a vida, que reside a responsabilidade do balanço perante si, ou Deus, do que cada um fez e faz com o seu tempo.

 

 

Soneto de Martim de Castro do Rio

 

Ao tempo

O tempo de si mesmo pede conta,

É necessário dar-se conta a tempo,

Que quem gastou sem conta tanto tempo,

Como dará sem tempo tanta conta?

 

Não quer levar o tempo tempo em conta 

Pois conta se não fez de dar-se a tempo,

Onde só pera conta havia tempo,

Se na conta do tempo houvesse conta.

 

Que conta pode dar quem não tem tempo 

Em que tempo a dará quem não tem conta,

Que a quem a conta falta, falta o tempo.

 

Vejo-me sem ter tempo, com ruim conta,

Sabendo que hei-de dar conta do tempo 

E que se chega o tempo de dar conta.

 

Lição de BN6046

 

 

Soneto de Frei António das Chagas

 

Conta e Tempo

Deus pede estrita conta de meu tempo. 

E eu vou do meu tempo, dar-lhe conta. 

Mas, como dar, sem tempo, tanta conta 

Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo? 

 

Para dar minha conta feita a tempo, 

O tempo me foi dado, e não fiz conta, 

Não quis, sobrando tempo, fazer conta, 

Hoje, quero acertar conta, e não há tempo. 

 

Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta, 

Não gasteis vosso tempo em passatempo. 

Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta! 

 

Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo, 

Quando o tempo chegar, de prestar conta 

Chorarão, como eu, o não ter tempo… 

 

 

Nota bibliográfica

O soneto de Martim de Castro do Rio encontra-se em  A Poesia de Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), Mafalda Ferin da Cunha, Imprensa da Unicersidade de Coimbra, edição digital. 

Edição modelar que pela primeira vez reúne a poesia atribuível ao poeta, e até esta edição distribuída por numerosos manuscritos. 

Deste soneto, Ao tempo, encontrou a compiladora 28 versões manuscritas, com ligeiras divergências, como sempre acontece nestes manuscritos, por desvio da recolha oral ou erro do copista. A compiladora escolheu a lição do manuscrito da Biblioteca Nacional BN6046, que transcrevi, dando conta em notas e anexo das variações encontradas.

 

Não possuo edição impressa do soneto Conta e Tempo. Correm na internet variadíssimas publicações com este soneto atribuído a Frei António das Chagas (1631-1682). Não encontrei referência sobre a sua publicação original impressa, ou manuscrita para confirmar a validade da atribuição, mas assumo que esteja correcta. 

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Salvador Dalí (1904-1989), Persistence of Memory, de 1931, pertencente à colecção do MoMA de New York.

Uma leitura possível da pintura, é vê-la como uma medida do tempo desperdiçado e interrogar-se o espectador se gosta do que vê.

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Uma fábula de Bingre em início de Carnaval

03 Terça-feira Fev 2015

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Bingre, Francisco Joaquim Bingre, Salvador Dalí

Dalí - Nu com seios de caracol

No mundo dos nossos dias, repartido entre o intelectualmente pretensioso e a ignorância militante, a fábula é género desprezado. E, no entanto, quanto conhecimento dos homens elas encerram na frescura e aparente inocência das suas formas poéticas.

Conhece a tradição ocidental três conjuntos maiores, que de algum modo se retomam entre si com variações, e são: os fabulários de Esopo e Fedro, vindos da antiguidade grega e romana, e as fábulas de La Fontaine do pós-renascimento, reelaboração de fábulas da antiga Índia compiladas por Roudaki sob o nome Kalilè e Demnè.

Por cá, ainda que surjam pontualmente nos mais diversos autores, foram sobretudo os poetas do neo-clacissismo português que a praticaram, com destaque para Bocage, a Marquesa de Alorna, Cruz e Silva, e Curvo Semedo. Filinto Elisio traduziu para verso português (sem rima) as Fábulas de La Fontaine, e no primeiro quartel do século XIX, Almeida Garrett também a praticou. Mais tarde, Henrique O’Neill reuniu um vasto acervo de apólogos, próprios e alheios, de qualidade poética desigual, num livro, Fabulário, que é hoje raridade de alfarrabista. Pela mesma altura João de Deus criou verdadeiras jóias, e em meados do século XX, Cabral do Nascimento editou um fabulário original, entre o melhor da sua obra.

Mas não será de nenhum destes autores a escolha de hoje. Será antes de Francisco Joaquim Bingre a fábula que lereis: marotice inocente vestida pela zoologia, em início de temporada de Carnaval.

Bingre, companheiro de Bocage na Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia, foi autor de uma obra vastíssima até há pouco desconhecida, e da qual, há semanas, trouxe amostras ao blog.

 

O Caracol e a Lesma

Fábula

 

Um caracol retorcido

Com a lesma era casado:

Que negra vida com ela

Não padecia o coitado!

 

Ele dormia na casca,

Ela pegada à parede;

Um aranhão lhe chupava

A reima, se tinha sede.

 

Nestes encontros noturnos

Gozavam prazeres mornos:

Ao enroscado marido

Nasceram dois lindos cornos.

 

Ele escondia-os no búzio,

Envergonhado do sol.

Quantos não conheço eu,

Com frontes de caracol?!

 

in Obras de Francisco Joaquim Bingre,volume V, poema 711, edição de Vanda Anastácio, Lello Editores, 2003.

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Se… por Alexandre O’Neill

22 Quinta-feira Maio 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Alexandre O'Neill, Salvador Dalí

cubist-figure

Talvez alguns leitores estejam lembrados do poema Se, tradução do poema de Rudyard Kipling (1865-1936), If, e foi um must estampado num cartaz que encheu paredes de quartos juvenis por finais dos anos 60 do século XX. É uma paródia a esse poema que Alexandre O’Neill (1924-1986) faz neste seu poema, Se…, que a seguir transcrevo.

 

 

SE…

 

Se é possível conservar a juventude

Respirando abraçado a um marco de correio;

Se a dentadura postiça se voltou contra a pobre senhora e a mordeu

Deixando-a em estado grave;

Se ao descer do avião a Duquesa do Quente

Pôs marfim a sorrir;

Se Baú-Cheio tem acções nas minas de esterco;

Se na América um jovem de cem anos

Veio de longe ver o Presidente

A cavalo na mãe;

Se um bode recebe o próprio peso em aspirina

E a oferece aos hospitais do seu país;

Se o engenheiro sempre não era engenheiro

E a rapariga ficou com uma engenhoca nos braços;

Se reentrante, protuberante, perturbante,

Lola domina ainda os portugueses;

Se o Jorge (o “ponto” do Jorge!) tentou beber naquela noite

O presunto de Chaves por uma palhinha

E o Eduardo não lhe ficou atrás

Ao sair com a lagosta pela trela;

Se “ninguém me ama porque tenho nau hálito

E reviro os olhos como uma parva”;

Se Mimi Travessuras já não vem a Lisboa

Cantar com o Alberto…

 

…acaso o nosso destino,tac!, vai mudar?

 

 

Publicado pela primeira vez em No Reino da Dinamarca, 1958. Transcrito de Poesias Completas 1951/1986, INCM, 3ªedição revista e aumentada, Braga, 10 de Junho, Dia de Portugal, 1980.

 

A imagem de abertura respeita a uma pintura de Salvador Dalí (1904-1989).

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Dois poemas de Henrique Risques Pereira

17 Domingo Nov 2013

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Henrique Risques Pereira, Salvador Dalí

Dali_Salvador-Illumined_PleasuresA curiosidade traz-me frequentemente gratas surpresas. É o caso hoje de um livro de poemas, provavelmente o único, de Henrique Risques Pereira (1930), protagonista no movimento surrealista e até agora, para mim, poeta de um só poema, que percorre as antologias do surrealismo português: Um Gato Partiu à Aventura.

Ao que leio, amigo e cúmplice de António Maria Lisboa, com a morte deste, o movimento surrealista deixou de lhe mostrar sentido. Ter-se-á ocupado com uma carreira de engenheiro.

Há sempre um comboio que parte / de algures em qualquer parte do mundo

Há sempre um cais com gente / ansiosa da viagem para parte incerta

Há sempre um futuro com destino / que a gente do cais não conhece

Dentro deste comboio louco / vou eu em viagem dentro de mim

No cais alguém fica à espera / de um comboio que já partiu

Mas o poeta sobreviveu ao engenheiro, e graças a Perfecto E. Quadrado, temos esta edição de uma poesia solar, como certeiramente a qualifica o editor, em pouco mais de uma centena de poemas. Escolho mais dois poemas por onde passam, num, o sentimento do corpo, no outro, a paisagem onde a vida cabe, e assim levar aos leitores do blog um poeta que talvez desconheçam, em poemas que me emocionaram.

Primeiro

Sinto os desertos ondulados

e a tua carne,

desejo o céu cristalino

e os teus olhos.

Admiro o crepúsculo acre

e os teus lábios

e vivo em noite na magia

do desespero de quem sabe

que o amor se conta em anos de morte

e sabe que há um sinal

que marca a ruína infalível para a qual escorregamos

a sonhar o enigma das torres que emigram

presas a fios de aço

e que partem com o pensamento

em todas as direcções.

Para sempre e sem memórias.

**

O vale abre-se à solidão e ao silêncio

e os desfiladeiros descem vertiginosamente para o invisível

e do fundo sobe a bruma leve irreal

 

A luz coloca sombras que se movem suavemente

e o pássaro negro fende o ar cristalino

e a memória das coisas esvaece com a noite

 

Calma majestosa erguida a toda a altura

a montanha projecta-se na imensidão do horizonte

 

Para trás o frenesim da vida dos homens

e o ranger de dentes dos esquecidos da sorte

e o caminhar de braços pendentes esgotados

 

Uma criança algures acaba de nascer

e a mãe protege-a de presságios que lhe gelam a alma

 

Levanta-se a luz de um novo dia

e nós

esquecidos do que sabemos

sorrimos para a vida

Noticia bibliográfica

Henrique Risques Pereira, Transparência do Tempo (poesia), edição de Perfecto E. Quadrado, Quasi Edições, 2003.

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Halsman / Dalí – as fotos

07 Sábado Jan 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à fotografia

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Philippe Halsman, Salvador Dalí

No filme de Woody Allen, Meia-noite  em Paris, a certa altura ocorre uma cena em torno de Salvador Dalí e a sua obsessão por rinocerontes, decalcada desta fotografia famosa de Philippe Halsman.

A dupla Halsman/Dalí criou um conjunto vasto de fantasias fotográficas onde a realidade surge adulterada provocando a surpresa em quem vê, e gerando novos significados em gestos triviais.

Oscilando entre o ridículo e o absurdo, aqui ficam alguns dos bigodes de Dalí.





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