Ganhou nos nossos dias divulgação acrescida um soneto atribuído a Frei António das Chagas, no século António da Fonseca Soares, (1631-1682), Conta e tempo, ao ser cantado por Camané com música de fado.
Aborda o soneto, na peculiaridade formal da poesia barroca, a questão que a certa altura da vida todos nos colocamos: que fiz com o tempo que me foi dado viver?
O assunto vem tratado no soneto de Frei António das Chagas na perspectiva religiosa e da vida no além, questionando as contas que é preciso prestar a Deus sobre a forma de viver o tempo de uma vida. Acontece que cerca de meio século antes, a mesma questão: que fiz com o tempo que me foi dado viver?, foi formulada em idênticos termos poéticos, que não teológicos, por Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), poeta maneirista entre os poetas menores contemporâneos de Camões. Refere o soneto de Martim de Castro do Rio esta prestação de contas a si próprio e não a Deus, colocando, portanto, a ênfase na responsabilidade individual sobre as consequências das escolhas do viver, e não como as pedras do caminho para um qualquer prémio ou castigo, a que a perspectiva religiosa conduz.
O poema de Frei António das Chagas é no vocabulário e desenvolvimento da ideia idêntico ao soneto de Martim de Castro do Rio, e hoje dificilmente escaparia a ser considerado um flagrante plágio, a que nem o desvio da reflexão introduzida no poema pela presença de Deus salvaria. Eram outros tempos e o poema passou à história com inteira propriedade como de Frei António das Chagas, permanecendo o poema de Martim de Castro do Rio, que lhe é anterior, no esquecimento dos manuscritos até à sua edição recente.
Nunca é demais realçar ser o tempo o único bem que a cada indivíduo verdadeiramente pertence. E é na compatibilização das escolhas, ao vender o tempo que se possui, trabalhando para ganhar o dinheiro que permite viver, com a utilização do seu uso no quadro de valores que nos governam a vida, que reside a responsabilidade do balanço perante si, ou Deus, do que cada um fez e faz com o seu tempo.
Soneto de Martim de Castro do Rio
Ao tempo
O tempo de si mesmo pede conta,
É necessário dar-se conta a tempo,
Que quem gastou sem conta tanto tempo,
Como dará sem tempo tanta conta?
Não quer levar o tempo tempo em conta
Pois conta se não fez de dar-se a tempo,
Onde só pera conta havia tempo,
Se na conta do tempo houvesse conta.
Que conta pode dar quem não tem tempo
Em que tempo a dará quem não tem conta,
Que a quem a conta falta, falta o tempo.
Vejo-me sem ter tempo, com ruim conta,
Sabendo que hei-de dar conta do tempo
E que se chega o tempo de dar conta.
Lição de BN6046
Soneto de Frei António das Chagas
Conta e Tempo
Deus pede estrita conta de meu tempo.
E eu vou do meu tempo, dar-lhe conta.
Mas, como dar, sem tempo, tanta conta
Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo?
Para dar minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado, e não fiz conta,
Não quis, sobrando tempo, fazer conta,
Hoje, quero acertar conta, e não há tempo.
Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta!
Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo,
Quando o tempo chegar, de prestar conta
Chorarão, como eu, o não ter tempo…
Nota bibliográfica
O soneto de Martim de Castro do Rio encontra-se em A Poesia de Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), Mafalda Ferin da Cunha, Imprensa da Unicersidade de Coimbra, edição digital.
Edição modelar que pela primeira vez reúne a poesia atribuível ao poeta, e até esta edição distribuída por numerosos manuscritos.
Deste soneto, Ao tempo, encontrou a compiladora 28 versões manuscritas, com ligeiras divergências, como sempre acontece nestes manuscritos, por desvio da recolha oral ou erro do copista. A compiladora escolheu a lição do manuscrito da Biblioteca Nacional BN6046, que transcrevi, dando conta em notas e anexo das variações encontradas.
Não possuo edição impressa do soneto Conta e Tempo. Correm na internet variadíssimas publicações com este soneto atribuído a Frei António das Chagas (1631-1682). Não encontrei referência sobre a sua publicação original impressa, ou manuscrita para confirmar a validade da atribuição, mas assumo que esteja correcta.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Salvador Dalí (1904-1989), Persistence of Memory, de 1931, pertencente à colecção do MoMA de New York.
Uma leitura possível da pintura, é vê-la como uma medida do tempo desperdiçado e interrogar-se o espectador se gosta do que vê.
nada é, tudo está: existir é transmutar.
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