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Martim de Castro do Rio — Perdi-me dentro em mim como em deserto

02 Domingo Fev 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga

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Lorenzo Lotto, Martim de Castro do Rio

Depois da controvérsia com o tempo num soneto em artigo anterior, mais alguma poesia de Martim de Castro do Rio (1548-1613), cristão-novo, poeta contemporâneo de Camões e mais uma voz da poesia maneirista portuguesa que tanta influência teve na poesia portuguesa posterior.

A obra de Martim de Castro do Rio encontrava-se dispersa por manuscritos com atribuições de autoria ausente, ou erróneas, até à sua edição recente por Mafalda Ferin da Cunha, de onde extraí os sonetos que a seguir transcrevo.

Poesia reflexiva sobre a existência e a vida, qual o soneto com que abro:  Perdi-me dentro em mim como em deserto, / …, entre ela surgem alguns poemas em que discretamente se alude aos sofrimentos e desenganos do amor, que privilegiei na escolha. Entre eles encontramos um original e interessante poema sobre os encantos e armadilhas associados à cor dos olhos: Aos olhos vestidos de esperança [olhos verdes] / …, concluindo o poeta sobre a sedução que olhos negros sobre si exercem. Pelo meio alguns belos sonetos sobre os anseios e sofrimentos de amor: Acho-me da fortuna salteado, / … ou este outro soneto: Acostumado tinha o sofrimento / … . Escolho ainda um soneto/interrogação sobre o que seja amor, Que cousa seja amor não se compreende, / …, assunto de vasta representação poética na poesia portuguesa antiga como já antes referi no blog. 

Vamos então aos poemas:

 

*

Perdi-me dentro em mim como em deserto,

Minha alma está metida em labirinto 

E posto em tal perigo já me sinto

Cair noutro maior nele encoberto.

 

Vejo o socorro longe e a morte perto,

Pois vivo do que temo e do que sinto 

Se alguém me quer valer não lho consinto,

Por vir o que desejo de ser mais certo.

 

Nova invenção de mal, novo tormento,

Ser cutelo da vida a mesma vida,

Ser desatino usar do entendimento.

 

Vingai-vos dor cruel, mal conhecida,

Que a vosso pesar sei do pensamento 

Que em grande dor não há vida comprida.

 

 

*

Aos olhos vestidos de esperança 

Não me rendi, pois muitas leva o vento,

E dos pardos, indícios de tormento,

Fugi, que em fim qualquer tormento cansa.

 

Dos azuis que do Céu são semelhança,

Com cautela fugiu meu peito isento 

Que, inda que de vista dá contentamento,

Nesses periga muito a esperança.

 

Mas pouco me durou esta vanglória,

Que outros olhos me roubaram, feiticeiros,

Vontade, entendimento e a memória;

 

Porém de frecha uns negros sorrateiros 

Alcançam de meu peito alta vitória,

Pois só negros tem mão para frecheiros.

 

 

*

Doce despojo de meu bem passado

Testemunha de dor que me deixou 

Aquela cujo foste e cujo sou,

Por quem chorei e agora sou chorado.

 

Como pode viver em tal estado 

Quem noutro tão contente se enganou 

De que somente a mágoa me ficou 

Do bem que foi em vindo arrebatado.

 

Fortuna que mo deu não mo deixara

Ou já que mo tirou, tão desumana,

Saber o que perdi não mo tirara.

 

Ah quão depressa o tempo desengana,

Se me temera dele eu me guardara

Mas quem mais se assegura mais se engana.

 

 

*

Que cousa seja amor não se compreende,

Quão caro custa amar minha alma o sente,

Um lhe chama afeição, outro acidente,

Mas quem mais o tratou menos o entende.

 

Quando se não receia, então ofende,

Entra dissimulado e não se sente.

Encobre no desejo a frecha ardente 

E o peito que é mais frio, mais acende.

 

Gasta a vida, esperança e sofrimento,

À sombra de um engano que sujeita 

Qualquer baixo ou altivo pensamento.

 

Triste de quem aprovou sua mão direita 

E o trouxe a tal estado seu tormento 

Que já de aborrecido a vida enjeita.

 

*

Acho-me da fortuna salteado,

O tempo vai correndo furioso,

Deixando-me da vida duvidoso 

E a cada hora mais desesperado.

 

Trocou-se meu descuido num cuidado 

Triste, grave, importuno, trabalhoso,

Nem vivo de perder-me receoso,

Nem de alcançar remédio confiado.

 

Qualquer ave nos vales mais agrestes,

Qualquer fera na cova repousando,

Tem horas de alegria, eu todas tristes.

 

Pois com tormento amor me está pagando,

Vós saudosos olhos pois quisestes 

Chorai o mal que tenho e o bem que vistes.

 

 

*

Acostumado tinha o sofrimento

Um mal que já de antigo não sentia 

E posto que era grave nele via 

Que o uso diminui o sentimento.

 

Ordenaram-me os céus novo tormento 

No tempo que esperei nova alegria 

Dantes somente amor me perseguia

E agora amor, fortuna e pensamento.

 

E a lembrança do bem que no outro estado 

Teve este peito meu, que em chamas arde,

E está cevando sempre meu cuidado.

 

Choro a noite, a manhã, a sesta e a tarde,

Mas não devo de estar desesperado 

Pois não se escusa a morte, ainda que tarde.

 

Poemas transcritos de A Poesia de Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), Mafalda Ferin da Cunha, Imprensa da Universidade de Coimbra, edição digital.

Abre o artigo a imagem do detalhe de uma pintura de Lorenzo Lotto (1480-1556), Retrato de um ourives em três posições, de 1530. A pintura pertence à colecção do museu de arte antiga de Viena. A pintura completa surge acima, no final do artigo. Ao longo deste encontramos mais dois detalhes (vistas laterais esquerda e direita do rosto do retratado).

A escolha desta pintura prende-se com o facto de o retratado ser desconhecido, e, não sendo conhecidas imagens do poeta, este retrato de um provável judeu de Veneza aproximadamente seu contemporâneo (e o poeta era de origem judaica) ajudar a situar no tempo, e dar rosto humano, à sua poesia.

A pintura, original à época na sua concepção (mais tarde teremos o triplo retrato do cardeal Richelieu, já mostrado no blog), permite reflectir sobre o igual e diferente de cada rosto conforme o ângulo do nosso olhar, e simultaneamente dar continuidade à reflexão poética sobre o rosto desenvolvida por Marianne Moore, e que antes aqui trouxe.

 

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Martim de Castro do Rio e Frei António das Chagas às voltas com as contas do tempo e seu uso

10 Sexta-feira Jan 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga

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Frei António das Chagas, Martim de Castro do Rio, Salvador Dalí

Ganhou nos nossos dias divulgação acrescida um soneto atribuído a Frei António das Chagas, no século António da Fonseca Soares, (1631-1682), Conta e tempo, ao ser cantado por Camané com música de fado. 

Aborda o soneto, na peculiaridade formal da poesia barroca, a questão que a certa altura da vida todos nos colocamos: que fiz com o tempo que me foi dado viver? 

O assunto vem tratado no soneto de Frei António das Chagas na perspectiva religiosa e da vida no além, questionando as contas que é preciso prestar a Deus sobre a forma de viver o tempo de uma vida. Acontece que cerca de meio século antes, a mesma questão: que fiz com o tempo que me foi dado viver?, foi formulada em idênticos termos poéticos, que não teológicos, por Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), poeta maneirista entre os poetas menores contemporâneos de Camões. Refere o soneto de Martim de Castro do Rio esta prestação de contas a si próprio e não a Deus, colocando, portanto, a ênfase na responsabilidade individual sobre as consequências das escolhas do viver, e não como as pedras do caminho para um qualquer prémio ou castigo, a que a perspectiva religiosa conduz.

O poema de Frei António das Chagas é no vocabulário e desenvolvimento da ideia idêntico ao soneto de Martim de Castro do Rio, e hoje dificilmente escaparia a ser considerado um flagrante plágio, a que nem o desvio da reflexão introduzida no poema pela presença de Deus salvaria. Eram outros tempos e o poema passou à história com inteira propriedade como de Frei António das Chagas, permanecendo o poema de Martim de Castro do Rio, que lhe é anterior, no esquecimento dos manuscritos até à sua edição recente.

Nunca é demais realçar ser o tempo o único bem que a cada indivíduo verdadeiramente pertence. E é na compatibilização das escolhas, ao vender o tempo que se possui, trabalhando para ganhar o dinheiro que permite viver, com a utilização do seu uso no quadro de valores que nos governam a vida, que reside a responsabilidade do balanço perante si, ou Deus, do que cada um fez e faz com o seu tempo.

 

 

Soneto de Martim de Castro do Rio

 

Ao tempo

O tempo de si mesmo pede conta,

É necessário dar-se conta a tempo,

Que quem gastou sem conta tanto tempo,

Como dará sem tempo tanta conta?

 

Não quer levar o tempo tempo em conta 

Pois conta se não fez de dar-se a tempo,

Onde só pera conta havia tempo,

Se na conta do tempo houvesse conta.

 

Que conta pode dar quem não tem tempo 

Em que tempo a dará quem não tem conta,

Que a quem a conta falta, falta o tempo.

 

Vejo-me sem ter tempo, com ruim conta,

Sabendo que hei-de dar conta do tempo 

E que se chega o tempo de dar conta.

 

Lição de BN6046

 

 

Soneto de Frei António das Chagas

 

Conta e Tempo

Deus pede estrita conta de meu tempo. 

E eu vou do meu tempo, dar-lhe conta. 

Mas, como dar, sem tempo, tanta conta 

Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo? 

 

Para dar minha conta feita a tempo, 

O tempo me foi dado, e não fiz conta, 

Não quis, sobrando tempo, fazer conta, 

Hoje, quero acertar conta, e não há tempo. 

 

Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta, 

Não gasteis vosso tempo em passatempo. 

Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta! 

 

Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo, 

Quando o tempo chegar, de prestar conta 

Chorarão, como eu, o não ter tempo… 

 

 

Nota bibliográfica

O soneto de Martim de Castro do Rio encontra-se em  A Poesia de Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), Mafalda Ferin da Cunha, Imprensa da Unicersidade de Coimbra, edição digital. 

Edição modelar que pela primeira vez reúne a poesia atribuível ao poeta, e até esta edição distribuída por numerosos manuscritos. 

Deste soneto, Ao tempo, encontrou a compiladora 28 versões manuscritas, com ligeiras divergências, como sempre acontece nestes manuscritos, por desvio da recolha oral ou erro do copista. A compiladora escolheu a lição do manuscrito da Biblioteca Nacional BN6046, que transcrevi, dando conta em notas e anexo das variações encontradas.

 

Não possuo edição impressa do soneto Conta e Tempo. Correm na internet variadíssimas publicações com este soneto atribuído a Frei António das Chagas (1631-1682). Não encontrei referência sobre a sua publicação original impressa, ou manuscrita para confirmar a validade da atribuição, mas assumo que esteja correcta. 

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Salvador Dalí (1904-1989), Persistence of Memory, de 1931, pertencente à colecção do MoMA de New York.

Uma leitura possível da pintura, é vê-la como uma medida do tempo desperdiçado e interrogar-se o espectador se gosta do que vê.

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