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A curiosidade traz-me frequentemente gratas surpresas. É o caso hoje de um livro de poemas, provavelmente o único, de Henrique Risques Pereira (1930), protagonista no movimento surrealista e até agora, para mim, poeta de um só poema, que percorre as antologias do surrealismo português: Um Gato Partiu à Aventura.
Ao que leio, amigo e cúmplice de António Maria Lisboa, com a morte deste, o movimento surrealista deixou de lhe mostrar sentido. Ter-se-á ocupado com uma carreira de engenheiro.
Há sempre um comboio que parte / de algures em qualquer parte do mundo
Há sempre um cais com gente / ansiosa da viagem para parte incerta
Há sempre um futuro com destino / que a gente do cais não conhece
Dentro deste comboio louco / vou eu em viagem dentro de mim
No cais alguém fica à espera / de um comboio que já partiu
Mas o poeta sobreviveu ao engenheiro, e graças a Perfecto E. Quadrado, temos esta edição de uma poesia solar, como certeiramente a qualifica o editor, em pouco mais de uma centena de poemas. Escolho mais dois poemas por onde passam, num, o sentimento do corpo, no outro, a paisagem onde a vida cabe, e assim levar aos leitores do blog um poeta que talvez desconheçam, em poemas que me emocionaram.
Primeiro
Sinto os desertos ondulados
e a tua carne,
desejo o céu cristalino
e os teus olhos.
Admiro o crepúsculo acre
e os teus lábios
e vivo em noite na magia
do desespero de quem sabe
que o amor se conta em anos de morte
e sabe que há um sinal
que marca a ruína infalível para a qual escorregamos
a sonhar o enigma das torres que emigram
presas a fios de aço
e que partem com o pensamento
em todas as direcções.
Para sempre e sem memórias.
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O vale abre-se à solidão e ao silêncio
e os desfiladeiros descem vertiginosamente para o invisível
e do fundo sobe a bruma leve irreal
A luz coloca sombras que se movem suavemente
e o pássaro negro fende o ar cristalino
e a memória das coisas esvaece com a noite
Calma majestosa erguida a toda a altura
a montanha projecta-se na imensidão do horizonte
Para trás o frenesim da vida dos homens
e o ranger de dentes dos esquecidos da sorte
e o caminhar de braços pendentes esgotados
Uma criança algures acaba de nascer
e a mãe protege-a de presságios que lhe gelam a alma
Levanta-se a luz de um novo dia
e nós
esquecidos do que sabemos
sorrimos para a vida
Noticia bibliográfica
Henrique Risques Pereira, Transparência do Tempo (poesia), edição de Perfecto E. Quadrado, Quasi Edições, 2003.