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As horas de prazer voam ligeiras, as de espera custam a passam. Ocupá-las com poesia de Vinicius de Moraes (1913-1980) é ter boa companhia. E para quem aprecia o fogo por detrás das palavras eis uma escolha. São poemas do Livro de Sonetos e contam em palavras o que a acção consegue no caminho para o incêndio dos sentidos.
Poesia da carne feliz, nela o amor nunca é platónico, mas vivido na plenitude do sexo. Lê-la encanta e comove. Tanto do que gostaríamos de dizer, está ali na forma incomparável.
Soneto da mulher ao sol
Uma mulher ao sol — eis todo o meu desejo
Vinda do sal do mar, nua, os braços em cruz
A flor dos lábios entreaberta para o beijo
A pele a fulgurar todo o pólen da luz.
Uma linda mulher com os seios em repouso
Nua e quente de sol — eis tudo o que eu preciso
O ventre terso, o pêlo úmido, e um sorriso
À flor dos lábios entreabertos para o gozo.
Uma mulher ao sol sobre quem me debruce
Em quem beba e a quem morda e com quem me lamente
E que ao se submeter se enfureça e soluce
E tente me expelir, e ao me sentir ausente
Me busque novamente – e se deixa a dormir
Quando, pacificado, eu tiver de partir…
A bordo do Andrea C, a caminho da França, nov. 1956.
Depois deste sonhado e desejado prazer, um ciclo de quatro deliciosos e tematicamente originais sonetos: Os Quatro Elementos.
Reflectindo sobre a volúpia do contacto do corpo com a natureza, aqui os quatro elementos: terra, ar, água e fogo, lemos do prazer a sua enunciação.
É no dispositivo narrativo que a originalidade dos sonetos surge. Temos um casal de amantes; a mulher amada quando exposta a cada elemento da natureza, um por soneto, desenvolve atitudes de prazer que desencadeiam o ciúme do amante e provocam a sua intervenção num comportamento de antes eu que ele, como se lerá a seguir…
OS QUATRO ELEMENTOS
I — O FOGO
O sol, desrespeitoso do equinócio
Cobre o corpo da Amiga de desvelos
Amorena-lhe a tez, doura-lhe os pelos
Enquanto ela, feliz, desfaz-se em ócio.
E ainda, ademais, deixa que a brisa roce
O seu rosto infantil e os seus cabelos
De modo que eu, por fim, vendo o negócio
Não me posso impedir de pôr-me em zelos.
E pego, encaro o Sol com ar de briga
Ao mesmo tempo que, num desafogo
Proibo-a formalmente que prossiga
Com aquele dúbio e perigoso jogo…
E para protegê-la, cubro a Amiga
Com a sombra espessa do meu corpo em fogo.
II — A TERRA
Um dia, estando nós em verdes prados
Eu e a Amada, a vagar, gozando a brisa
Ei-la que me detém nos meus agrados
E abaixa-se, e olha a terra, e a analisa
Com face cauta e olhos dissimulados
E, mais, me esquece; e, mais, se interioriza
Como se os beijos meus fossem mal dados
E a minha mão não fosse mais precisa.
Irritado, me afasto; mas a Amada
À minha zanga, meiga, me entretém
Com essa astúcia que o sexo lhe deu.
Mas eu que não sou bobo, digo nada…
Ah, é assim… (só penso) Muito bem:
Antes que a terra a coma, como eu.
III — O AR
Com mão contente a Amada abre a janela
Sequiosa de vento no seu rosto
E o vento, folgazão, entra disposto
A comprazer-se com a vontade dela.
Mas ao tocá-la e constatar que bela
E que macia, e o corpo que bem posto
O vento, de repente, toma gosto
E por ali põe-se a brincar com ela.
Eu a princípio, não percebo nada…
Mas ao notar depois que a Amada tem
Um ar confuso e uma expressão corada
A cada vez que o velho vento vem
Eu o expulso dali, e levo a Amada:
— Também brinco de vento muito bem!
IV — A ÁGUA
A água banha a Amada com tão claros
Ruídos, morna de banhar a Amada
Que eu, todo ouvidos, ponho-me a sonhar
Os sons como se foram luz vibrada.
Mas são tais os cochichos e descaros
Que, por seu doce peso deslocada
Diz-lhe a água, que eu friamente encaro
Os fatos, e disponho-me à emboscada.
E aguardo a Amada. Quando sai, obrigo-a
A contar-me o que houve entre ela e a água:
— Ela que me confesse! Ela que diga!
E assim arrasto-a à câmara contígua
Confusa de pensar, na sua mágoa
Que não sei como a água é minha amiga.
Montevidéu, abril de 1960.
Poemas transcritos de Livro de Sonetos, 3.ª edição, Editora Sabiá, Rio de Janeiro, 1967.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Tom Wesselmann (1931-2004). A pintura pertence à série Sunset Nudes (2002-2004).