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Durante alguns anos o museu Gulbenkian em Lisboa foi-me um lugar tranquilo de convívio com a arte. Acontecia ir estudar para o jardim da fundação, ou para o bar do seu museu, aí almoçar, e algumas tardes deambular no silêncio das salas sem gente, seguido apenas pelo olhar dos vigilantes. Olhava aqui, parava ali, e nas primeiras visitas era poderosamente atraído pela pintura de um velho pintado por Rembrandt (1606-1669). Na gigantesca mancha escura das suas vestes sobressaía uma cabeça pequena que olhava com uma tristeza infinita. E eu, sentado no banco frente à pintura ali ficava longos minutos fascinado, não sei se pela perplexidade de como se consegue pintar a tristeza com tamanha emoção, ou pela interrogação de como a vida consegue trazer tamanha tristeza ao olhar. Será que hoje tenho algumas respostas?

Havia outras pinturas e objectos que me atraiam e atraem a cada nova visita. Os vidros pintados e as cerâmicas do médio oriente, os marfins medievais, ou os livros de horas, são parte de um mundo de fascínio que na demora das visitas me abraçava.

Nos primeiros anos de abertura do museu mostravam-se algumas gravuras japonesas, que pela sua fragilidade, suponho, foram mais tarde retiradas de exposição. Revelação de um género na elegância e sofisticação do seu grafismo, tornou-se uma paixão que me conduziu mais tarde à sua colecção. Mas a pintura europeia continuou anos fora a ser o motor das minhas deambulações por horas entre as salas do museu.

Circulando entre o sumptuoso mobiliário surgia a pintura de intimidades de alcova de Boucher (1703-1770), que um fio invisível puxado por Casanova (1725-1798) me levava à jóia formada pelas pinturas de Guardi (1712-1793), conduzindo-me primeiro a uma Veneza de sonho, e depois de lá ter estado, ao debate entre a realidade e a sua pintura dela, sendo que tantos dos lugares captados pelo pincel do séc. XVIII continuam reconhecíveis à mesma luz de milagre da cidade mágica.

Se os retratos do séc. XVIII da colecção, franceses ou ingleses, nunca me atraíram particularmente, chegado aos impressionistas e afins é outra história. 

Quando pintei, acontecia ir ao museu estudar uma pintura de Monet (1840-1926) em particular que me fascinava e fascina, O Degelo de 1880, retrato da fria e avassaladora beleza de uma natureza perante a qual o homem é nada. Perscrutava cada pincelada na sua textura e cor, e afastando-me da pintura avaliava o efeito no conjunto que a distância produzia. Em pausa deste estudo olhava para a esquerda, e lá estava Madame Claude Monet pintada por Renoir (1841-1919) em 1872-74, pousada num canapé, com ar de quem pertence, não a um ambiente de salão mas a um universo rústico. À direita olhava de soslaio um jovem um tanto empertigado na sua elegância citadina, apreciador de intimidades com bailarinas, como sabemos, pois tratava-se de um auto-retrato de Degas (1834-1917) em 1863. E entre estes polos segui eu fascinado com a arte de pintar de Monet. Um pouco mais afastada estava então a pintura de Manet (1832-1883), O rapaz das bolas de sabão de 1867, pretexto desta deambulação induzida pelo poema de Afonso Lopes Vieira (1878-1946), que a seguir transcrevo.

O poema capta com rara felicidade, servindo-se da frágil beleza e brilho das bolas de sabão, e do encanto de as soprar, a realidade do homo faber que, se por momentos se entusiasma no seu fazer, rapidamente esse conseguimento se desvanece na sucessão dos efémeros de que a vida se faz, quais

… vagos, pequeninos mundos

que, como todos os mundos, evolucionam e desaparecem.

Esta extinção antecipadamente conhecida não é suficiente, como sabemos, para impedir a procura continuada do belo que a vida trás. E pela metáfora da aventura da vida segue o poema:

E [a criancinha] continua, absorta; o rosto sério,

como de quem trabalha e não descansa; 

cresce uma…, e parte-se; outra…, já soçobra.

Assim por elas, num deslumbramento,

canta, perpassa, brilha à claridade,

este abismo infinito dum momento: um pouco de Eternidade.

Eis o poema na totalidade:

Bolas de sabão

Assenta-se no chão a criancinha

cruza as pernitas,

… e na ponta do tubo incham e crescem 

aqueles vagos, pequeninos mundos

que, como todos os mundos, evolucionam e desaparecem.

Já profundos, os seus olhos

contemplam nessas quebradiças bolas 

a sua aérea evolução etérea.

Débeis, duma ideal fragilidade 

tão frágil que, suspensa e receosa,

inda mais leve, mais, que suspirando,

com vago sentimento de ansiedade

é que o contido bafo as vai lançando…

São corpos cuja alma vaporosa

apenas é um sopro de criança.

E continua, absorta; o rosto sério,

como de quem trabalha e não descansa; 

cresce uma…, e parte-se; outra…, já soçobra.

E brincando, embebido no mistério, 

esse poeta cria a sua obra…

Mas o sol, que ali vem do céu distante,

trespassa-as, colorindo-as reverbera:

e então a luz cintila deslumbrante 

em cada efémera esfera.

Cada raio de sol que vem pôr

o seu divino ser, vai, glorioso,

criando com poder maravilhoso

a maravilha da cor!

Assim por elas, num deslumbramento,

canta, perpassa, brilha à claridade,

este abismo infinito dum momento: um pouco de Eternidade.

Afonso Lopes Vieira

in O Pão e as Rosas, Livraria Ferreira — Editora, Lisboa, 1908.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Eduard Manet (1832-1883), As bolas de sabão, de 1867. A pintura pertence à colecção do Museu Calouste Gulbenkian de Lisboa.