Etiquetas

O dia vai e noutro se encadeia
e este meu querer mais se liberta
de gestos, palavras, outras peias,
para ser
apenas
uma ideia
in Ofício de Trevas, Poema XII
Há um desperdício no gesticular diário de cada um ao correr atrás do efémero, ou momentaneamente relevante, que no final nos deixa as mãos cheias de nada, parafraseando Irene Lisboa. Para a consciência desta vacuidade nos chama a atenção o poema de Carlos Maria de Araújo (1921-1962) com que abro o artigo.
São poucos poemas a obra conhecida de Carlos Maria de Araújo (1921-1962). Curta vida e edições pequenas fazem dos seus três livros publicados raridades bibliográficas.
Talvez o nome do poeta Carlos Maria de Araújo de quem hoje transcrevo alguns poemas, seja familiar aos leitores de Hilda Hilst (1930-2004) pelos poemas de 1967, Pequenos funerais cantantes ao poeta Carlos Maria de Araújo.
Foi Jorge de Sena quem, na edição de 1969 de Líricas Portuguesas, 3.ª Série, chamou a atenção em Portugal, em termos encomiásticos, para esta poesia: “A sua obra muito breve é por certo das mais puras e notáveis da poesia portuguesa …” e mais à frente acrescenta: “Poesia extremamente despojada e densa, de um intensa severidade formal e de vigorosa emoção contida numa expressão lapidar, é bem a de um oficiante das trevas que tão terrivelmente cobrem o mundo.”
Feita a apresentação, necessária face à pouca visibilidade pública desta poesia, vamos à escolha:
XVIII
De longe
não se sabe se é orvalho
se são contas de vidro
se apenas a tristeza
e uma flor…
XVI
Ainda se caíssemos como a noite
ainda se o vento nos levasse
em suas longas crinas de cavalo
ainda se fôssemos um gesto
de mar se alongando para o longe
ainda se não fôssemos semente
do grande medo que se levanta em nós
XXIII
Ofício de Trevas
A nossa fome
senhor
quotidiana
a nossa sede
de água
e de justiça
a carnagem do sal em nossos pés
as raízes da noite em nossos olhos
nosso caminho
senhor
senhor
nosso caminho
em nossas mãos
abertas
nosso grito
II
Oh! A terra
vermelha
do meu corpo,
que tantos pés
já pisaram
em ritmo apressado
e em todos os sentidos
mas onde
jamais alguém ficou
sequer por um instante
adormecido
sonhando
XI
Já foi um barco à vela
este meu corpo
hoje um madeiro, algas e salsugem
já foi proa de aventuras
e em seu seio
vozes cantaram e arderam lumes
rasgou-lhe o peito o amor
um desespero
um arrecife sem nome, de tão grande
já foi um barco à vela
este meu corpo
hoje nudez, hoje ausências, hoje brumas
V
Elegia
Os dedos
que percorrem meus cabelos
e aquietam os meus olhos
que afagam os meus lábios
e seguram minha mão
que afastam minha angústia
hoje
não são
X
Porque nunca foste nostalgia
porque nunca foste insónia
febre de aventura
navio
porque nunca foste a lua
vento nocturno
agonia
porque nunca foste desatino
luzir de faca
cilício
porque és penumbra e quietude
capela nua
vigília
és tu esta poesia
minha amiga
Nota bibliográfica
Poemas transcritos de Carlos Maria de Araújo, Ofício de Trevas, c/retrato e ilustrações de Clóvis Graciando, Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1960.
Líricas Portuguesas, 3.ª Série, vol. I, 3.ª edição, Edições 70, Lisboa, 1984.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Picasso (1881-1973), O Marinheiro (1938), de colecção particular.
Love thiis
GostarGostar
Muito bonito o resultado de sua pesquisa ao lembrar o poeta Carlos Maria de Araújo
GostarGostar