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Merícia de Lemos — O amor talvez seja o que do nada resta

30 Domingo Ago 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Cícero Dias, Merícia de Lemos

É poesia a silenciosa

distância entre a emoção 

e o seu canto

…

 

 

A obra de Merícia de Lemos (1913-1996(?)) é uma obra poética decantada de excessos retóricos onde por vezes o verso cintila, e poemas há que são uma absoluta revelação do eu pela palavra.

 

 

Onde Estive?

Andei esquecida da morte

anos e anos

numa graça de amor

numa harmonia de fontes cantar

e que mais canta

 

Andei esquecida da morte

dias e noites

— o tempo mais não é que sol e sombra

 

Andei esquecida da morte

— o coração tornado nova estrela

 

Andei a viver!

in Merícia de Lemos, Tangentes

 

 

Este viver que o poema mostra reflecte a sua poesia. Poesia que fala “com elegante fantasia e sóbria segurança das suas emoções e mágoas de mulher” na penetrante apreciação de Jorge de Sena  na antologia Líricas Portuguesas 3.ª série. 

Nos poemas que seguem leremos da emoção do desejo e da entrega contados com essa “sóbria segurança”: Porque quis ser mulher no teu abraço de homem!

…

Para o homem o amor é praia aprazível

onde é bom pôr-se nu.

Para a mulher um desejo de mar

anseios de sereia

sem coragem, afundados em lagos

às vezes nem profundos.

…

do poema Catedral I, Tangentes

 

 

Tua

Apenas vestida pelas tuas mãos

estou nos teus braços toda nua.

Sôfrego o teu corpo chama pelo meu,

e os poros da tua pele a acariciar-me

são como mil pequenas bocas

que me beijam

 

Quando estou completamente tua

fecho os olhos para que te não vejam.

Não quero que eles sintam tanto como eu.

 

E entre os desejos mais vãos

e as aspirações mais loucas

eu queria que este nosso abraço

em que eu gosto de amar-te

e tu gostas de amar-me

abolisse entre nós até o próprio Espaço

e que nada pudesse de mim separar-te.

in Merícia de Lemos, Tangentes

 

 

Vencida 

Porque quis ser mulher no teu abraço de homem,

senti as alegrias do amor que começa

e dei-lhe igual altura à da amizade.

Fui sincera, leal e espontânea, meiga, ardente, apaixonada.

Senti o amor, a fé, a esperança.

Senti a violência da paixão na tortura da carne a desejar.

Senti a ansiedade curiosa do espírito em busca de outro espírito

e senti em mim o que é verdade.

 

Porque quis ser mulher no teu abraço de homem,

conheço o rasgar da luta, do desespero, da dor, do orgulho e da renúncia.

Conheço a fraqueza que me fez vencida.

Conheço o poder que te dei e me domina.

 

Sou a pedra rolada pelo rio e pelo oceano,

sou a erva pisada que não dá malmequer,

sou o grão lançado à terra e que não germinou,

sou a pata do animal desmembrado,

o tronco do pinheiro abatido,

a trave da casa que ruiu,

o leme do barco afundado pelo temporal

— Porque quis ser mulher no teu abraço de homem!

in Merícia de Lemos, Tangentes

 

 

A voluntariosa entrega aqui contada tem uma contraparte no esgotamento da paixão, e o poema Domingo dá dela conta:

 

 

Domingo

As aspirações mais exaltadas

em abismos profundos

separadas pela realidade do quotidiano

 

Os pequenos gestos repetidos do dia-a-dia

repetidos interminavelmente

repetidos automaticamente

repetidos necessariamente

repetidos resignadamente

repetidos cansativamente

repetidos exasperadamente

repetidos exaustivamente

repetidos inconscientemente

 

Repetido o beijo do “até logo”

é já um adeus ignorado

 

O acordar 

o adormecer

deixam-nos em abismos profundos

separadas pela realidade do ontem hoje amanhã

das ambições antigas vivas futuras

 

Nesse domingo em que eras tu o meu amor

 

Ambição de agora agora

e já

para cada folha uma gota de orvalho

que o Sena amoroso, deslizando colhe sôfrego

enlaçando Paris apaixonado lento e insistente

apertado no mesmo abraço

a mulher desmaiada

ultrapassado do orgasmo o êxtase

atingida a luxúria exasperada e pura

 

Nesse Domingo em que eras tu o meu amor

 

Ambicão ambições

de carregar as roseiras de violetas

apanhadas às mãos cheias, não importa onde

às acácias mimosas vergar os galhos

de cerejas aos cachos

dos lírios do jardim delirantes

voarem para o cipreste sentinela à porta

 

Nesse Domingo em que eras tu o meu amor

 

os melros passeavam ousados e sem medo

atrevidos na relva

nos muros as trepadeiras, estremecendo

ao canto dos pássaros em mal de bem querer

floriam em pétalas de lua e aos de espuma

fitas de olhos em laços de afecto

colares de estrelas negras na verdade branca

secretos luxos da minha ideia

renegando o tempo

 

Nesse Domingo em que eras tu o meu amor

 

Era Domingo

outro Domingo

Domingos

segunda 

terça

quarta

quinta

sexta-feira 

sábados

repetidos

os pequenos gestos do dia-a-dia

repetidos intencionalmente

repetidos carinhosamente

repetidos tristemente

repetidos raivosamente

repetidos teimosamente

repetidos dolorosamente

repetidos passivamente

repetidos distraíramo-nos

 

e o beijo do “até logo”

foi adeus definitivo

in Merícia de Lemos, 12 Poemas

 

 

Com esta finitude onde a esperança residiu aproximamo-nos do final deste périplo com dois poema: primeiro o poema Amor que citei a abrir, o qual remata com a reflexão O amor talvez seja o que do nada resta.; e a seguir o poema republicado com o título Testamento no livro Tangentes, e onde um desejo de amor pós-morten se reflecte.

 

 

Amor

De um amor morto

sepultado no tempo

surge em condensação

duma afeição rara

a beleza do abraço 

mais íntimo

mais voraz

mais nu

 

O arco-íris risca no firmamento

o desfio ao Sol

Brilha o luar mais do que a Lua

Sente-se o perfume da rosa

e não a rosa

É poesia a silenciosa

distância entre a emoção 

e o seu canto

 

É poema ainda o já poema?

 

O amor talvez seja o que do nada resta.

in Líricas Portuguesas 3.ª série

 

 

Testamento

Antes de morrer

vou dizer-te as minhas últimas vontades,

vou fazer

o meu testamento.

 

Não quero que o meu corpo vá

para jazigo ou campa rasa.

Quero, depois de bem fria,

ser incinerada

e, já em cinzas, ao vento

por ti lançada.

 

Não quero que tenhas tristeza,

mas não queria morrer sem a certeza

que terás saudades.

 

Quando vires no ar o pó

a esvoaçar,

se vier pousar em ti,

não o sacudas, deixa-o ficar.

Posso saber-te só

e ser eu a fazer-te companhia.

Se nesse momento

algum pobre te pedir, dá,

dá e sorri.

 

Tudo quanto tenho para ti será.

Deixo-te: a emoção que se condensa

e em versos se extravasa.

Deixo-te: a minha ternura imensa.

Deixo-te: os beijos que te não dei

e a felicidade que sonhei.

in Merícia de Lemos, Pássaro Preso

 

 

Termino com dois poemas: o poema-metáfora da mulher, Rosa, Rosae, e a reflexão sobre o sentido da vida em Viver.

 

 

Rosa, Rosae

Dá-me rosas, outras rosas

dá-me mais rosas amor.

 

Já olhaste bem as rosas?

Rosas-bocas rosas-olhos

e há rosas coração.

Há rosas que são sorrisos

e rosas que são paixão 

Rosa-beijo, rosa-abraços

e rosas-mãos.

 

Numa noite de luar

uma grande rosa aberta

acenou-me num jardim:

corri logo para ela

— seria a rosa-aventura?

 

Pela tarde num caminho

à hora em que o sol cansado

pensa em ir-se deitar

encontrei uma roseira

com uma rosa em botão

muitas folhas e espinhos

— e estava ali porquê?

Linda rosa cor-de-rosa,

sem saber…

in Líricas Portuguesas 3.ª série

 

 

Viver

A terra

insegurança 

de esperança de medo

motivações

os olhos tropeçando

os sentidos a desbravar

o amor a dor a alegria

o rir contente

dada ao homem

a morte no instante exacto

in Merícia de Lemos, 12 Poemas

 

 

Nota bibliográfica

Merícia de Lemos, Pássaro Preso, Lisboa, 1946, s/indicação de editora e com 3 desenhos de António Dacosta. 

Merícia de Lemos, Tangentes, Edições Ática, Lisboa, 1975. 

Merícia de Lemos, 12 Poemas, ilustrações de Cícero Dias, INCM, Lisboa, 1999.

Líricas Portuguesas 3.ª série, selecção, prefácio e apresentação de Jorge de Sena, 2 volumes, 3.ª edição, Edições 70, Lisboa, 1984.

 

Abre o artigo a imagem de um desenho de Cícero Dias (1907-2003) incluído no livro 12 Poemas.

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