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Alguns poemas de J. J. Cochofel

09 Segunda-feira Nov 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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J. J. Cochofel, Picasso

Poesia, realejo

dos sentimentos que estão

entre o sonho e o desejo

de os não sentir em vão.

in Quatro Andamentos

 

 

Sabemos de que falam os poetas quando os lemos. João José Cochofel (1919-1982) figura de proa do movimento neo-realista e à sua poesia associado, é autor de uma obra poética bem longe da retórica panfletária associada ao movimento neo-realista na imagem corrente. Pode ser exemplo desta distância o poema XII do livro Sol de Agosto:

 

                                     XII

O concreto, o real — coisas que me comovem.

     É sobre os sentidos que vivo debruçado

             — Fácil o que a vida enxerga —

                      o resto é-me vedado.

                                      …

 

 

Poesia de enorme sensibilidade no seu dizer, é servida por uma forma depurada e constantemente preocupada com a eufonia do poema, qual seja o poema Breve:

 

 

Breve

 

Breve

o botão que foste

e o pudor de sê-lo

 

Breve

o laço vermelho

dado no cabelo.

 

Breve

a flor que abriu

e o sol saudou

 

Breve

tanto sonho findo

que a vida pisou.

in 46.º Aniversário 

 

 

Fala-nos esta poesia do desencanto dos dias, do tempo e do seu passar, com luminosas e quase epigramáticas observações:

 

II

Sem desespero

nem alegria,

vai correndo a vida,

esta coisa fria

 

que é a gente erguer-se

para mais um dia

de gato que salta,

de rato que chia.

 

Que é a gente deitar-se

de corpo cansado,

alheio à fragrância

da mulher ao lado.

 

Até indiferente

ao meu cuidado

de me ver assim

tão desencantado.

in 4 andamentos

 

 

III

Vive ao dia a dia,

sem sonhos nem ilusões.

Sonhar é adiar

a fome dos corações.

 

O presente está aqui

ao alcance da mão.

O futuro será

o que fizeres ou não

 

ao sabor do momento

que é a tua razão

profunda e tão certa

como o teu coração.

in 4 andamentos

 

 

É sempre o eu poético, e não as massas ou o “povo”, que está por detrás destas reflexões poéticas, como já a abrir o seu primeiro livro Instantes, aos dezoito anos, o poeta anuncia no poema Pórtico:

 

 

Pórtico

 

Outros serão

os poetas da força e da ousadia.

Para mim

— ficará a delicadeza dos instantes que fogem

a inutilidade das lágrimas que rolam

a alegria sem motivo duma manhã de sol

o encantamento das tardes mornas

a calma dos beijos longos.

 

       (Um ócio grande. Morre tudo

         dum morrer suave e brando…)

 

Que os outros fiquem com o seu fel

as suas imprecações

o seu sarcasmo.

Para mim

será esta melancolia mansa

que me é dada pela certeza de saber

que a culpa é sempre minha

se as lágrimas correm…

in Instantes

 

 

e quase trinta anos mais tarde volta a referir em Os dias íntimos:

 

*

Lasso, triste, venho

do silêncio em mim.

Que escuro o caminho!

Que longe do fim!

 

Indeciso ainda

como um cristal baço;

mas que fome existe

já no meu cansaço!

 

Olho-me por dentro:

que frio, sozinho!

Aqueço-me ao fogo

do comum destino.

Os dias íntimos in 46.º Aniversário

 

 

Feita esta curta viagem termino com dois poemas que sublinham a presença da memória nos dias e no seu passar:

 

VIII

Saudade de qualquer coisa

que a memória, só ela,

realiza ainda.

Lembra e dói 

apenas porque é finda.

 

A manhã sem sol nem música

cria-me melancolia.

— Porque mastigo eu lágrimas que já não sinto

e me vergo em sobressaltos

já alisados pela tua mão?

 

A manhã fria

trouxe-me este absurdo desejo de inverno

em pleno Verão.

in Sol de Agosto

 

 

*

O som

de um piano antigo

atravessa vinte anos

para vir tocar

na minha rua.

 

Que menina será,

a mãe ou a filha,

que veio dar-me

o passado a ouvir!

in Quatro Andamentos

 

 

Nota bibliográfica

Poemas transcritos de:

João José Cochofel, Quatro Andamentos, edição do autor na colecção Cancioneiro Vértice, Coimbra, 1966.

Líricas Portuguesas 3.ª série, selecção, prefácio e apresentação de Jorge de Sena, 2 volumes, 3.ª edição, Edições 70, Lisboa, 1984.

Novo Cancioneiro, edição conjunta dos dez livros publicados na colecção. Prefácio, organização e notas de Alexandre Pinheiro Torres, Editorial Caminho, Lisboa, 1989.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Picasso (1881-1973) de 1971, Busto de Homem escrevendo, da colecção do Museu Picasso de Paris.

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