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dos sentimentos que estão
entre o sonho e o desejo
de os não sentir em vão.
in Quatro Andamentos
Sabemos de que falam os poetas quando os lemos. João José Cochofel (1919-1982) figura de proa do movimento neo-realista e à sua poesia associado, é autor de uma obra poética bem longe da retórica panfletária associada ao movimento neo-realista na imagem corrente. Pode ser exemplo desta distância o poema XII do livro Sol de Agosto:
XII
O concreto, o real — coisas que me comovem.
É sobre os sentidos que vivo debruçado
— Fácil o que a vida enxerga —
o resto é-me vedado.
…
Poesia de enorme sensibilidade no seu dizer, é servida por uma forma depurada e constantemente preocupada com a eufonia do poema, qual seja o poema Breve:
Breve
Breve
o botão que foste
e o pudor de sê-lo
Breve
o laço vermelho
dado no cabelo.
Breve
a flor que abriu
e o sol saudou
Breve
tanto sonho findo
que a vida pisou.
in 46.º Aniversário
Fala-nos esta poesia do desencanto dos dias, do tempo e do seu passar, com luminosas e quase epigramáticas observações:
II
Sem desespero
nem alegria,
vai correndo a vida,
esta coisa fria
que é a gente erguer-se
para mais um dia
de gato que salta,
de rato que chia.
Que é a gente deitar-se
de corpo cansado,
alheio à fragrância
da mulher ao lado.
Até indiferente
ao meu cuidado
de me ver assim
tão desencantado.
in 4 andamentos
III
Vive ao dia a dia,
sem sonhos nem ilusões.
Sonhar é adiar
a fome dos corações.
O presente está aqui
ao alcance da mão.
O futuro será
o que fizeres ou não
ao sabor do momento
que é a tua razão
profunda e tão certa
como o teu coração.
in 4 andamentos
É sempre o eu poético, e não as massas ou o “povo”, que está por detrás destas reflexões poéticas, como já a abrir o seu primeiro livro Instantes, aos dezoito anos, o poeta anuncia no poema Pórtico:
Pórtico
Outros serão
os poetas da força e da ousadia.
Para mim
— ficará a delicadeza dos instantes que fogem
a inutilidade das lágrimas que rolam
a alegria sem motivo duma manhã de sol
o encantamento das tardes mornas
a calma dos beijos longos.
(Um ócio grande. Morre tudo
dum morrer suave e brando…)
Que os outros fiquem com o seu fel
as suas imprecações
o seu sarcasmo.
Para mim
será esta melancolia mansa
que me é dada pela certeza de saber
que a culpa é sempre minha
se as lágrimas correm…
in Instantes
e quase trinta anos mais tarde volta a referir em Os dias íntimos:
*
Lasso, triste, venho
do silêncio em mim.
Que escuro o caminho!
Que longe do fim!
Indeciso ainda
como um cristal baço;
mas que fome existe
já no meu cansaço!
Olho-me por dentro:
que frio, sozinho!
Aqueço-me ao fogo
do comum destino.
Os dias íntimos in 46.º Aniversário
Feita esta curta viagem termino com dois poemas que sublinham a presença da memória nos dias e no seu passar:
VIII
Saudade de qualquer coisa
que a memória, só ela,
realiza ainda.
Lembra e dói
apenas porque é finda.
A manhã sem sol nem música
cria-me melancolia.
— Porque mastigo eu lágrimas que já não sinto
e me vergo em sobressaltos
já alisados pela tua mão?
A manhã fria
trouxe-me este absurdo desejo de inverno
em pleno Verão.
in Sol de Agosto
*
O som
de um piano antigo
atravessa vinte anos
para vir tocar
na minha rua.
Que menina será,
a mãe ou a filha,
que veio dar-me
o passado a ouvir!
in Quatro Andamentos
Nota bibliográfica
Poemas transcritos de:
João José Cochofel, Quatro Andamentos, edição do autor na colecção Cancioneiro Vértice, Coimbra, 1966.
Líricas Portuguesas 3.ª série, selecção, prefácio e apresentação de Jorge de Sena, 2 volumes, 3.ª edição, Edições 70, Lisboa, 1984.
Novo Cancioneiro, edição conjunta dos dez livros publicados na colecção. Prefácio, organização e notas de Alexandre Pinheiro Torres, Editorial Caminho, Lisboa, 1989.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Picasso (1881-1973) de 1971, Busto de Homem escrevendo, da colecção do Museu Picasso de Paris.