A mecanização das colheitas e o progressivo despovoamento dos campos remete para a experiência de quem os viveu, a memória dos ciclos do cultivo da terra, de que as colheitas eram o auge, podendo significar abundância ou miséria para os tempos que se seguiam. Entre as colheitas, a faina da ceifa do cereal era, com a vindima, ocasião para alegria que acompanhava a dureza do trabalho. Tratava-se, afinal, de colher o que viria a dar o pão e o vinho de cada dia, essência e símbolo da alimentação.
Com os extremos de calor pelo verão, as televisões foram à procura de testemunhos pelas terras do Alentejo onde o sol queimava, procurando saber como as pessoas mais velhas lidavam com o calor. Encontraram os testemunhos da memória desses dias de colheitas de sol a sol sob um calor inclemente, na fala da experiência de vidas de trabalho árduo, e que hoje dificilmente imaginamos na sua dureza.
Não tendo os poetas a experiência directa da rudeza do trabalho que o canto ajuda a aliviar, relatam o observável naquele efeito que Fernando Pessoa (1888-1935) refere no verso feliz: O que em mim sente está pensando. E assim, sobre a ceifa, leremos três poemas com afinidades e dissemelhanças.
Primeiro William Wordsworth (1770-1850) no poema A Ceifeira solitária, dá conta da emoção que atinge o poeta ao ouvir o canto dolente de uma ceifeira:
…
Sozinha ceifa no mundo
e canta melancolia.
Escuta: o vale profundo
transborda já de harmonia.
…
enquanto Fernando Pessoa refere:
…
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
…
São estes, versos do poema de Pessoa conhecido pelo primeiro verso, [Ela canta, pobre ceifeira,].
Poderia continuar no paralelismo de leitura dos dois poemas, mas deixo essa descoberta para os leitores que lerem os poemas mais à frente.
No poema de Wordsworth, do encontro com o canto da ceifeira ganha o poeta a serenidade que a verdade das coisas simples transporta:
…
Sem falar, quieto, eu escutava.
E, quando o monte subia,
no coração transportava
o canto que não se ouvia.
No poema de Pessoa deparamos com uma meditação simultânea sobre a busca de sentido dos comportamentos perante as dificuldades do existir, … E canta como se tivesse / Mais razões para cantar que a vida./ …, e o desejo de ser outro que a contemplação da harmonia entre um nós e o mundo sempre traz consigo: … / Ah, poder ser tu, sendo eu! / …
Os poemas
William Wordsworth — A Ceifeira solitária
Só ela no campo vi:
solitária de altas serras,
ceifa e canta para si.
Não digas nada, que a aterras!
Sozinha ceifa no mundo
e canta melancolia.
Escuta: o vale profundo
transborda já de harmonia.
Nunca um rouxinol cantou
em sombras da Arábia ardente
ao que exausto repousou
mais grata canção dolente;
ou gorjeio tão extremado
se escutou na Primavera,
cortando o Oceano calado
entre ilhas de Além-Quimera.
Quem me dirá do que canta?
Será que o que ela deplora
é antigo, triste e distante,
como batalhas de outrora?
Ou coisas simples são
do quotidiano viver?
Essas dor’s de coração,
que já foram e hão-de ser?
Seja o que for que cantara
é como infindo cantar,
que a vi cantando na seara,
no trabalho de ceifar.
Sem falar, quieto, eu escutava.
E, quando o monte subia,
no coração transportava
o canto que não se ouvia.
Tradução de Jorge de Sena.
in Jorge de Sena, Poesia de 26 séculos, Fora do Texto, Coimbra, 1993.
Fernando Pessoa — [Ela canta, pobre ceifeira,]
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões para cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente está pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
s/d
in Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). – 108.
1ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: Dez. 1924.
Apêndice
Num registo mais ligeiro concluo com um Cantar de Ceifa por Lope de Vega (1562-1635), quem sabe, talvez semelhante ao cantar que desencadeou as reflexões poeticas que antes lemos.
Lope de Vega — Cantar de Ceifa
Tão branca tanto que eu era,
quando entrei para ceifar;
deu-me o sol, fiquei morena.
Tão branca soía eu ser
antes de vir a ceifar,
mas não quis o sol deixar
branco o fogo em meu poder.
No tempo do amanhecer
era eu brilhante açucena:
deu-me o sol, fiquei morena.
in Jorge de Sena, Poesia de 26 séculos, Fora do Texto, Coimbra, 1993.
Nota final
Perdem-se-me na memória os poemas publicados no blog. Para evitar duplicações, e quando a dúvida surge, pesquiso o blog para ver se algum dos poemas que vou transcrever já aqui está. Qual caixa de surpresas, o blog, muitas vezes vou de artigo em artigo, ora surpreendido, ora pasmado com o que escolhi, escrevi, e aqui encontro. Hoje foi uma dessas ocasiões. Na dúvida se já teria transcrito o poema de Fernando Pessoa [Ela canta, pobre ceifeira,], pesquiso o blog e eis que encontro o belíssimo poema de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) sobre a ceifeira Catarina Eufémia (1928-1954) (o leitor curioso encontra-o aqui). Não estando ainda no blog o poema de Pessoa, foi hoje a vez dele, e com companhia. Neste anterior artigo, além do poema de Sophia encontra-se também um poema de Luís Augusto Palmeirim (1825-1893), A Ceifeira, sobre uma ceifeira de pele morena, crestada pelo sol, e a sua beleza, eco talvez involuntário da anterior canção de Lope de Vega.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Pieter Bruegel, o Velho (ca. 1525–1569) A Colheita, de 1565, pertencente à colecção do Met (The Metropolitan Museum of Art) de New York.
Gostar disto:
Gosto Carregando...