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vicio da poesia

Category Archives: Poesia Portuguesa do sec. XX

Arroz Amargo, o filme, e o poema Lezíria de Miguel Torga

16 Domingo Fev 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Alexandre O'Neill, Giuseppe de Santis, Miguel Torga, Silvana Mangano

Um filme ícone do cinema neo-realista italiano, Riso Amaro (Arroz Amargo) de 1949, cuja acção decorre entre  mondadeiras de arroz, dá conta simultaneamente de uma realidade social: as aspirações de vida melhor da juventude italiana pobre do pós- 2.ª guerra mundial, e de como o uso do corpo pode permitir uma ilusória melhoria material, se não alguma ascensão social. 

Filmado com mão de mestre por Giuseppe de Santis (1917-1997), toda aquela exploração humana é atravessada pelo erotismo que a juventude de qualquer condição social sente e vive. E aí, a pulposa e belíssima Silvana Mangano (1930-1989) nos seus 19 anos, dá corpo a uma personagem de antologia. O filme, proibido em Portugal até ao 25 de Abril de 1974 exactamente pela sua carga erótica, é um objecto precioso de uma certa maneira de ver pelo cinema. 

O trabalho das mondadeiras de arroz em meados do século XX, — Cantam, plantadas n’água, / Ao sol e à monda neste mês de Agosto. —, que em Portugal também existia, serviu a Miguel Torga (1907-1995) para um poema (Lezíria) em que a realidade social se associa a uma identidade de grupo nas mesmas condições de vida, e o poeta observa com empatia na distância da sua condição social.

O poema de Torga leva-nos a ver, naquela dura experiência, o amargo da condição humana — Cantam baixo, e parece / Que na raiz humana dos seus pés / Qualquer coisa apodrece. —, quando o conforto material é inexistente e a luta pela sobrevivência obrigava (e obriga) à emigração sazonal para os trabalhos duros do campo.

Sobre este poema de Miguel Torga escreveu Alexandre O’Neill (1924-1986) por ocasião de uma homenagem ao poeta(*):

“Lezíria de Miguel Torga é um objeto mágico que há mais de 30 anos me acompanha — e devo dizer, com toda a franqueza, que da poesia portuguesa de hoje poucos são os talismã que trago comigo.”

O artigo continua numa interessante análise do poema verso a verso.

 

 

Lezíria 

 

São duzentas mulheres. Cantam não sei que mágoa 

Que se debruça e já nem mostra o rosto. 

Cantam, plantadas n’água,

Ao sol e à monda neste mês de Agosto.

 

Cantam o Norte e o Sul duma só vez.

Cantam baixo, e parece 

Que na raiz humana dos seus pés 

Qualquer coisa apodrece.

 

Ribatejo, 11 de Agosto de 1941.

Poema incluído em Diário I, Coimbra, 

(*) Artigo publicado no jornal A Luta em 4 de Novembro de 1976, e republicado em Relâmpago, Revista de Poesia, 13, Out 2003.

Abre o artigo a imagem de um cartaz publicitário ao filme Arroz Amargo.

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António Ramos Rosa — Daqui deste deserto em que persisto

05 Quarta-feira Fev 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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António Ramos Rosa, Rogério Ribeiro

O tempo, medimo-lo pela nossa experiência directa e do que foi a vida que vivemos, ou o que ela nos fez. Para a geração sub-quarenta que cresceu nas consequências da revolução de 25 de Abril de 1974, tanto o tempo do Estado Novo como o da revolução, são história tão remota como a segunda guerra mundial, a primeira república ou o descobrimento do Brasil. Por isso, saber da ausência de horizontes, da esperança, e do naufrágio da barca dos sonhos associados ao 25 de Abril de 1974, é segredo hoje guardado por menos e não pelo país que inteiro se empolgou na experiência. Tempos em que a poesia devia ser útil à revolução e ao homem novo, criavam nos poetas a perplexidade que o poema de António Ramos Rosa (1924-2013), Daqui deste deserto em que persisto dá conta:

…

Que tenho eu a dizer

neste país

se um homem levanta os braços

e grita com os braços

o que de mais oculto havia

na secreta ternura de uma boca

que era a única boca do seu povo

…

 

O poeta, entregue ao seu ofício, não sabendo que dizer na pressão da realidade em volta, olhava a folha em branco em busca da palavra certa para o tempo:

 

Nenhum ruído no branco.

Nesta mesa onde cavo e escavo

rodeado de sombras

sobre o branco

abismo

desta página

em busca de uma palavra

…

 

E dessa busca vai o poema dando conta:

…

Que tenho eu para dizer mais do que isto

sempre isto desta maneira ou doutra

que procuro eu senão falar

desta busca vã

de um espaço em que respira

a boca de mil bocas

do corpo único no abismo branco

…

 

Resignado ao circunstancial, tenta encontrar o lugar que lhe cabe nessa sociedade nova a caminho dos amanhãs que cantam, e declara: 

…

Sou um pobre trabalhador pobre

nesta mina branca

onde todas as palavras estão ressequidas

pelo ardor do deserto

pelo frio do abismo total

…

para finalmente reconhecer o que lhe exigem:

…

Que posso eu fazer senão

daqui

deste deserto

em que persisto

chamar-lhe camarada

 

Além do circunstancial da sua composição, o poema toca uma questão que é de sempre: que papel social para a poesia, e de caminho, qual a utilidade dos poetas. E a resposta será sempre negativa, ou seja, ao colectivo, poetas e poesia são apenas adornos de prestígio quando convém. É a cada um, na sua individualidade, que a poesia pode trazer algo que lhe proporcione encontrar-se com o seu íntimo mais profundo.

Poema

 

Daqui deste deserto em que persisto

 

Nenhum ruído no branco.

Nesta mesa onde cavo e escavo

rodeado de sombras

sobre o branco

abismo

desta página

em busca de uma palavra

 

escrevo cavo e escavo na cave desta página

atiro o branco sobre o branco

em busca de um rosto

ou folha

ou de um corpo intacto

a figura de um grito

ou às vezes simplesmente

                                                uma pedra

busco no branco o nome do grito

o grito do nome

busco

com uma fúria sedenta

a palavra que seja

a água do corpo o corpo

intacto no silêncio do seu grito

ressurgindo do abismo da sede

com a boca de pedra

com os dentes das letras

com o furor dos punhos

nas pedras

 

Sou um trabalhador pobre

que escreve palavras pobres quase nulas

às vezes só em busca de uma pedra

uma palavra

violenta e fresca

um encontro talvez com o ínfimo

a orquestra ao rés da erva

um insecto estridente

o nome branco à beira da água

o instante da luz num espaço aberto

 

Pus de parte as palavras gloriosas

na esperança de encontrar um dia

o diadema no abismo

a transformação do grito

num corpo

descoberto na página do vento

que sopra deste buraco

desta cinzenta ferida

no deserto

 

As minhas mãos são frias

têm o frio da página

e da noite

de todas as sombras que me envolvem

são palavras frágeis como insectos

como pulsos

e acumulo pedras sobre pedras

cavo e escavo a página deserta

para encontrar um corpo

entre a vida e a morte

entre o silêncio e o grito

 

Que tenho eu para dizer mais do que isto

sempre isto desta maneira ou doutra

que procuro eu senão falar

desta busca vã

de um espaço em que respira

a boca de mil bocas

do corpo único no abismo branco

 

Sou um pobre trabalhador pobre

nesta mina branca

onde todas as palavras estão ressequidas

pelo ardor do deserto

pelo frio do abismo total

 

Que tenho eu a dizer

neste país

se um homem levanta os braços

e grita com os braços

o que de mais oculto havia

na secreta ternura de uma boca

que era a única boca do seu povo

 

Que posso eu fazer senão

daqui

deste deserto

em que persisto

chamar-lhe camarada

 

in A Nuvem Sobre a Página (1978)

Transcrito de Poemas do Último Século Antes do Homem, “colheita de poesia e arte na resistência antifascista”, Editorial Inova/Editorial O Oiro do Dia, Porto, 1979.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Rogério Ribeiro (1930-2008), UCP – Unidade Colectiva de Produção, de 1976. A obra, propriedade da CGD, encontra-se em depósito no Palácio da Presidência da República, em Belém, estando instalada na Sala do Conselho de Estado, segundo informação do site da Culturgest.

 

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Armando Silva Carvalho — Sentimento dum Acidental

31 Sexta-feira Jan 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Armando Silva Carvalho, Malhoa

Transcrevo hoje o poema Sentimento dum Acidental de Armando Silva Carvalho (1938-2017). Num quadro de fado e turistas na Lisboa típica dos bairros populares, derrama o poeta o acre da sua reflexão sobre os homens e o mundo em redor, de alguma forma o que amiúde encontramos na sua poesia.

 

 

Sentimento dum Acidental

 

A noite lançava-se na última viagem.

Já bebida, a velha profissional 

engana-se nas redondilhas 

de um mouraria antigo

e o gestor turístico 

no seu azul e brilhante 

fato alpacatado

dentro do qual rebenta

solta no ar a praga impiedosa.

 

Amores de mãe tremiam 

na garganta vagarosa 

rescaldos de uma guerra erótica 

eram os mitos forçados 

do consumo.

 

Casais obesos descansavam nas mesas 

a digestão pesada, a paz 

tão transitória dos sentidos. 

Solerte ofício este de jogar na voz 

todas as noites, a fatalidade,

sob o olhar frio dos deuses 

tão mesquinhos.

As palavras amargas poderão ter 

a força duma chaga,

a cor nocturna da faca pitoresca, 

e a velha cantadeira 

pode deixar cair da boca 

as aves mortas que esconde no seu peito.

Porque eu não esqueço.

Ali, quando a noite arregaçava 

os braços no trabalho de parto indiferente,

sob as cinzas sujas da memória,

outro fado nascia abruptamente 

oculto e humilhado à luz do dia.

 

Poema publicado em Sentimento de um Acidental (1981), transcrito de O Que Foi Passado A Limpo, Obra Poética, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Malhoa (1855-1933), Fado, de 1910. O quadro pertence à colecção do Museu da Cidade em Lisboa.

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A Ceifeira segundo Wordsworth, Pessoa, e Lope de Vega

18 Sábado Jan 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Inglesa e Norte-Americana, Poesia Portuguesa do sec. XX

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Fernando Pessoa, Lope de Vega, Luis Augusto Palmeirim, o velho, Pieter Bruegel, Sophia de Mello Breyner Andresen, William Wordsworth

A mecanização das colheitas e o progressivo despovoamento dos campos remete para a experiência de quem os viveu, a memória dos ciclos do cultivo da terra, de que as colheitas eram o auge, podendo  significar abundância ou miséria para os tempos que se seguiam. Entre as colheitas, a faina da ceifa do cereal era, com a vindima, ocasião para alegria que acompanhava a dureza do trabalho. Tratava-se, afinal, de colher o que viria a dar o pão e o vinho de cada dia, essência e símbolo da alimentação. 

Com os extremos de calor pelo verão, as televisões foram à procura de testemunhos pelas terras do Alentejo onde o sol queimava, procurando saber como as pessoas mais velhas lidavam com o calor. Encontraram os testemunhos da memória desses dias de colheitas de sol a sol sob um calor inclemente, na fala da experiência de vidas de trabalho árduo, e que hoje dificilmente imaginamos na sua dureza.

Não tendo os poetas a experiência directa da rudeza do trabalho que o canto ajuda a aliviar, relatam o observável naquele efeito que Fernando Pessoa (1888-1935) refere no verso feliz: O que em mim sente está pensando. E assim, sobre a ceifa, leremos três poemas com afinidades e dissemelhanças.

Primeiro William Wordsworth (1770-1850) no poema A Ceifeira solitária, dá conta da emoção que atinge o poeta ao ouvir o canto dolente de uma ceifeira:

…

Sozinha ceifa no mundo

e canta melancolia.

Escuta: o vale profundo

transborda já de harmonia.

…

enquanto Fernando Pessoa refere:

…

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

…

São estes, versos do poema de Pessoa conhecido pelo primeiro verso, [Ela canta, pobre ceifeira,]. 

Poderia continuar no paralelismo de leitura dos dois poemas, mas deixo essa descoberta para os leitores que lerem os poemas mais à frente. 

No poema de Wordsworth, do encontro com o canto da ceifeira ganha o poeta a serenidade que a verdade das coisas simples transporta:

…

Sem falar, quieto, eu escutava.

E, quando o monte subia,

no coração transportava

o canto que não se ouvia.

 

No poema de Pessoa deparamos com uma meditação simultânea sobre a busca de sentido dos comportamentos perante as dificuldades do existir, … E canta como se tivesse / Mais razões para cantar que a vida./ …, e o desejo de ser outro que a contemplação da harmonia entre um nós e o mundo sempre traz consigo: … / Ah, poder ser tu, sendo eu! / …

 

 

Os poemas

 

William Wordsworth —  A Ceifeira solitária

 

Só ela no campo vi:

solitária de altas serras,

ceifa e canta para si.

Não digas nada, que a aterras!

Sozinha ceifa no mundo

e canta melancolia.

Escuta: o vale profundo

transborda já de harmonia.

 

Nunca um rouxinol cantou

em sombras da Arábia ardente

ao que exausto repousou

mais grata canção dolente;

ou gorjeio tão extremado

se escutou na Primavera,

cortando o Oceano calado

entre ilhas de Além-Quimera.

 

Quem me dirá do que canta?

Será que o que ela deplora

é antigo, triste e distante,

como batalhas de outrora?

Ou coisas simples são

do quotidiano viver?

Essas dor’s de coração,

que já foram e hão-de ser?

 

Seja o que for que cantara

é como infindo cantar,

que a vi cantando na seara,

no trabalho de ceifar.

Sem falar, quieto, eu escutava.

E, quando o monte subia,

no coração transportava

o canto que não se ouvia.

 

Tradução de Jorge de Sena. 

in Jorge de Sena, Poesia de  26 séculos, Fora do Texto, Coimbra, 1993.

 

 

Fernando Pessoa — [Ela canta, pobre ceifeira,]

 

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anónima viuvez,

 

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

 

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões para cantar que a vida.

 

Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente está pensando.

Derrama no meu coração

A tua incerta voz ondeando!

 

Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

 

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!

s/d

in Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  – 108.

1ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: Dez. 1924.

 

 

Apêndice

Num registo mais ligeiro concluo com um Cantar de Ceifa por Lope de Vega (1562-1635), quem sabe, talvez semelhante ao cantar que desencadeou as reflexões poeticas que antes lemos.

 

Lope de Vega — Cantar de Ceifa

 

Tão branca tanto que eu era,

quando entrei para ceifar;

deu-me o sol, fiquei morena.

 

Tão branca soía eu ser

antes de vir a ceifar,

mas não quis o sol deixar

branco o fogo em meu poder.

No tempo do amanhecer

era eu brilhante açucena:

deu-me o sol, fiquei morena.

 

in Jorge de Sena, Poesia de  26 séculos, Fora do Texto, Coimbra, 1993.

 

Nota final

Perdem-se-me na memória os poemas publicados no blog. Para evitar duplicações, e quando a dúvida surge, pesquiso o blog para ver se algum dos poemas que vou transcrever já aqui está. Qual caixa de surpresas, o blog, muitas vezes vou de artigo em artigo, ora surpreendido, ora pasmado com o que escolhi, escrevi, e aqui encontro. Hoje foi uma dessas ocasiões. Na dúvida se já teria transcrito o poema de Fernando Pessoa [Ela canta, pobre ceifeira,], pesquiso o blog e eis que encontro o belíssimo poema de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) sobre a ceifeira Catarina Eufémia (1928-1954) (o leitor curioso encontra-o aqui). Não estando ainda no blog o poema de Pessoa, foi hoje a vez dele, e com companhia. Neste anterior artigo, além do poema de Sophia encontra-se também um poema de Luís Augusto Palmeirim (1825-1893), A Ceifeira, sobre uma ceifeira de pele morena, crestada pelo sol, e a sua beleza, eco talvez involuntário da anterior canção de Lope de Vega.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Pieter Bruegel, o Velho (ca. 1525–1569) A Colheita, de 1565, pertencente à colecção do Met (The Metropolitan Museum of Art) de New York.

 

 

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Janeiras — poema de Vitorino Nemésio

24 Terça-feira Dez 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Bicci di Neri, Vitorino Nemésio

É para uma atmosfera de comemoração popular do nascimento de Jesus que o poema Janeiras de Vitorino Nemésio (1901-1978) nos transporta:

…

Vimos honrar a Jesus

Numas palhinhas deitado:

O candeio está sem luz 

Numa arribana de gado.

 

Mas uma estrela dianteira 

Arde no céu, que regala! 

A palha ficou trigueira,

Os pastorinhos sem fala.

…

 

Cantar as janeiras em grupos de porta em porta, em datas diferentes consoante os locais, é uma tradição a custo conservada em algumas povoações do país. Lembro-me de certo ano, as cantar em véspera de Natal, já lá vão talvez sessenta anos ou quase. Era em verdade uma forma simultânea de dar e receber a pretexto da comemoração religiosa:

 

Ó de casa, alta nobreza 

Mandai-nos abrir a porta,

Ponde a toalha na mesa 

Com caldo quente da horta!

 

Tendi, ferrinhos de prata, 

Ao toque desta sanfona!

Trazemos ovos de pata 

Fresquinhos, prà vossa dona.

…

 

No poema, ao anúncio da chegada dos cantadores à porta, segue-se a história do presépio. Finda esta, é hora de comezaina:

…

Acabou-se esta cantiga,

Vamos agora à chacota:

Já enchemos a barroga

Sigamos nossa derrota!

 

Rico vinho, santa broa 

Calça o fraco, veste os nus!

Voltaremos a Lisboa 

Pró ano, querendo Jesus.

 

 

E assim me despeço por hoje de si, leitor, com desejo de um Feliz Natal.

 

 

Eis o poema integral:

 

 

Janeiras

 

Ó de casa, alta nobreza 

Mandai-nos abrir a porta,

Ponde a toalha na mesa 

Com caldo quente da horta!

 

Tendi, ferrinhos de prata, 

Ao toque desta sanfona!

Trazemos ovos de pata 

Fresquinhos, prà vossa dona.

 

Senhora dona da casa, 

À ilharga do seu Joaquim,

Vermelha como uma brasa 

E alva com um jasmim!

 

Vimos honrar a Jesus

Numas palhinhas deitado:

O candeio está sem luz 

Numa arribana de gado.

 

Mas uma estrela dianteira 

Arde no céu, que regala! 

A palha ficou trigueira,

Os pastorinhos sem fala.

 

Dá-lhe calorzinho a vaca, 

O carvoeiro uma murra,

A velha o que trás na saca,

Seus olhos mansos a burra.

 

Já as janeiras vieram 

Os reis estão a chegar,

Os anos amadureceram:

Estamos para durar!

 

Já lá vem Dom Melchior

Sentado no seu camelo 

Cantar as loas de cor 

Ao cair do caramelo.

 

Ó incenso, mirra e oiro,

Que cheirais e luzis tanto,

Não valeis aquele tesoiro 

Do nosso Menino santo!

 

Abride a porta ao pregrino, 

Que vem de mum longe à neve,

De ver nascer o Menino 

Nas palhinhas do preseve.

 

Acabou-se esta cantiga,

Vamos agora à chacota:

Já enchemos a barroga

Sigamos nossa derrota!

 

Rico vinho, santa broa 

Calça o fraco, veste os nus!

Voltaremos a Lisboa 

Pró ano, querendo Jesus.

 

Publicado em Festa Redonda (1950).

Transcrito de Vitorino Nemésio, Obras Completas, vol I – Poesia, INCM, Lisboa, 1989.

 

 

Nota lexicográfica

Os termos pregrino, preseve, barroga, derrota, e outros são corruptelas populares para peregrino, presépio, barriga, rota, etc, que o poema contém e conservei.

Suponho que murra quererá significar um feixe de lenha para queimar. Se algum leitor conhecer o seu significado preciso, agradeço a informação.

 

Abre o artigo a imagem de uma representação tradicional do presépio por Bicci di Neri (1419-1491), também conhecido por Neri di Bicci, de 1470.

A pintura pertence à colecção do museu Lindenau de Altenburg.

 

 

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Um poema sobre o Natal de Fernando Pinto do Amaral

23 Segunda-feira Dez 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Fernando Pinto do Amaral, Gustav Klimt

Cai a noite — está frio 

e súbito perpassa 

por nós um arrepio

a anunciar a graça 

…

 

Numa toada de sabor popular em redondilha maior e quadras rimadas, Fernando Pinto do Amaral (1960) dá-nos no poema Natal de 98, de que antes citei a quadra de abertura, uma reflexão sobre nós e o sagrado, induzida pela noite de Natal:

…

Cai a noite serena 

sobre nossa agonia 

e repete-se a cena 

que de novo inicia 

 

uma história de amor 

entre os homens e alguém 

talvez muito maior 

talvez homem também 

…

 

Depois deste quase tocar o divino, vem a inescapável dimensão terrena — nossa:

…

Cai a noite e eu espreito

o que em silêncio brilha 

no escuro do meu peito 

no olhar da minha filha 

 

É uma antiga promessa 

a que ninguém responde 

uma luz que atravessa 

este lugar sem onde 

…

 

Notável reflexão onde o ritmo do poema pode conduzir o leitor apressado a reter apenas a melodia da rima, descurando o que no todo o poema nos dá: … / Cai a noite indiferente / às imagens do nada / …; afinal a experiência que cada ano renova.

 

 

Natal de 98 

 

Cai a noite — está frio 

e súbito perpassa 

por nós um arrepio

a anunciar a graça 

 

de sermos talvez mais 

do que simples humanos 

decifrando sinais 

que não passam de enganos 

 

Cai a noite serena 

sobre nossa agonia 

e repete-se a cena 

que de novo inicia 

 

uma história de amor 

entre os homens e alguém 

talvez muito maior 

talvez homem também 

 

Cai a noite e eu espreito

o que em silêncio brilha 

no escuro do meu peito 

no olhar da minha filha 

 

É uma antiga promessa 

a que ninguém responde 

uma luz que atravessa 

este lugar sem onde 

 

Cai a noite indiferente 

às imagens do nada 

Cai a noite e alguém sente 

que já é madrugada

 

in Natal… Natais, Oito séculos de Poesia sobre o Natal, Antologia de Vasco Graça Moura, Público, Comunicação Social, S.A., 2005.

 

 

Nota iconográfica

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Gustav Klimt (1862-1918), Castelo sobre a água de 1908, pertença da Galeria Nacional de Praga.

No espelho da natureza domesticada que são os jardins se reflecte a busca humana pela harmonia no mundo, qual luz que atravesse este lugar sem onde.

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A observação da vida num poema de Alberto de Serpa

04 Quarta-feira Dez 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Alberto de Serpa, Jean Tinguely

As experiências sensoriais são parte essencial da aprendizagem de si e do mundo. Ver é uma delas. Olhar e ver os outros é também um processo de aprendizagem como Alberto de Serpa (1906-1992) no poema Riqueza capta:

…

Corre, olhar, em roda!

O que te intimida?

A vida? Só toda 

Pode amar-se, a vida.

 

Amar a vida na sua diversidade e variabilidade no tempo é uma aprendizagem sempre inacabada. que o acumular dos anos vividos torna eloquente. É essa riqueza de contínua aprendizagem que o poema traz à nossa atenção.

 

Riqueza

 

Por parques e praças,

Ruas e travessas 

Tu, meu olhar, caças 

A vida. E tropeças.

 

Uma gargalhada 

Vem dum par contente.

Guarda-a bem guardada,

Mas caminha em frente.

 

Surgem-te sorrisos 

Dum lado e de outro lado,

Não faças juízos 

Rápidos. Cuidado!

 

Uma face grave 

Nada de revela?

Talvez a dor cave 

Só mais tarde, nela.

 

Num choro, num grito,

Pressentes a dor?

E quedas, aflito.

Segue, por favor.

 

Segue, bem aberto 

Para cada canto!

Olha o desconcerto 

Que parece tanto!

 

Corre, olhar, em roda!

O que te intimida?

A vida? Só toda 

Pode amar-se, a vida.

 

Poema transcrito de Luís Forjaz Trigueiros, Novas Perspectivas (Temas de Literatura 1962-68), União Gráfica, 1969.

O poema inclui-se na escolha “Para uma antologia do segundo modernismo”.

 

Abre o artigo a imagem de uma das máquinas concebidas por Jean Tinguely (1925-1991). A escultura, Sem título, de 1960, pertence ao Sprengel Museum de Hannover.

Na sua complicação e absurdo, é bem o retrato de como a vida às vezes nos parece. Observá-la ajuda a perceber e destrinçar melhor o essencial do acessório ou inútil.

 

 

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João Lúcio — Um amor de dois perfumes

02 Segunda-feira Dez 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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João Lúcio, Picasso, Teixeira de Pascoaes

Seremos poucos os que abrimos a porta ao sonho e deixamos que a poesia o pinte com versos de encantar. Para esses venho com um poema de João Lúcio (1880-1918), Um amor de dois perfumes, publicado no livro O Meu Algarve (1905). 

O poema capta o colorido do imaginário algarvio em torno a feitiços e encantamentos de amor, frequentemente envolvendo belas jovens mouriscas e situações onde a água surge. Estes dois elementos essenciais à vida, água e amor, são os ingredientes que dão o sabor às histórias que pela poesia encantam, espalhadas em lendas associadas a locais, os mais diversos, por todo o Algarve. 

Do poeta João Lúcio soube mais tarde que foi residência e seu sonho de paraíso para a escrita, aquele palácio estranho e em ruínas que por momentos surgia entre os pinheiros por alturas de Marim, quando, no comboio, eu seguia de Tavira a caminho do liceu em Faro, pouco mais que criança, naquele início dos anos 60, tinha eu 10 anos, e ao alvor do dia tinha um ar de mistério no seu abandono e ruína. Quem ali teria morado e que acontecera? Por algum tempo mais ainda me intrigou. Depois, cresci, a ruína tornou-se familiar à vista, e o mistério deixou de me intrigar. A sua poesia é, de alguma maneira, a corporização do mistério que rodeava aquela casa. Hoje aqui o recordo.

O poeta, de curta vida e fama efémera, está hoje praticamente esquecido, afora as homenagens regionais, sobretudo na sua Olhão natal. 

Da poesia de João Lúcio escreveu Teixeira de Pascoaes (1877-1952) em Poetas Lusíadas (1919):

“João Lúcio é o Algarve: um jardim de cores e lendas mouriscas, ao luar: […];

Às vezes, o jardim evolua-se num perfume, toma as proporções do Universo: […];

Mas o sol é o vinho que embriaga este poeta. Tem frases que são luz coalhada: […].”

E com esta impressiva opinião, passemos ao poema:

 

 

Um amor de dois perfumes

 

Cantando junto dum lago,

Macio como o seu olhar, 

Que se não evaporava 

Só para ouvi-la cantar,

A branca visão serena,

Tão leve como a neblina,

Tinha a voz húmida e pura 

Como a da luz matutina.

Se ao lírio Deus desse o canto 

E desse voz à estrela,

Nunca, a estrela ou o lírio,

Cantariam como ela.

Encantada, que encantava 

Fora das humanas normas,

Era uma luz cinzelada,

Ou um aroma com formas.

A seus pés, o manso lago 

Desfalecia em desejos, 

Com a água arrepiada 

De carícias e de beijos.

Um trovador, que os seus olhos 

Conseguiram enlear,

Um trovador que ela amava,

Certo dia a quis beijar;

Da visão se evaporaram 

As formas tão olorosas, 

Deixando toldado o Ar 

Com um perfume de rosas.

— Não me beijes que te encantas —

Longínqua voz murmurou

Alá não quer que me beijem;

Inda ninguém me beijou… —

Junto ao lago adormecida,

Achou-a o trovador,

Numa noite em que as estrelas 

Andavam tontas de amor.

O lago enrolava as ondas,

Para ver se a alcançava,

E, ao cimo dessas ondas,

Beijos de prata mandava.

O trovador, de joelhos,

Tremendo de comoção,

No peito ouvia ruflar 

As asas do coração.

Ia, afinal, dar-lhe um beijo,

Tê-la, afinal, entre os braços;

Com ciúme e raiva, os astros 

Rugiam pelos espaços.

Poisou o beijo infinito 

Na boca fresca e mimosa,

Como uma asa de luz

Que poisa sobre uma rosa.

Realizou-se o que, Alá,

Já havia anunciado:

Beijou-a, evaporou-se,

Ficou também encantado…

Dois perfumes que voaram

Nessa noite alva e serena…

Por não tornar mais a vê-la,

Finou-se o lago de pena.

Erram, talvez, pelo Céu,

Entre os astros e as procelas,

Espalhando com os beijos

Novos enxames de estrelas;

Ou quem sabe, se na terra,

Prendeu Alá, esse amor,

E se vivem hoje os dois

No cálix dalguma flor!

 

Poema publicado no livro O Meu Algarve em 1905.

Transcrito de João Lúcio, Poesias Completas, edição organizada e prefaciada por António Cândido Franco, INCM, Lisboa, 2002.

Nota iconográfica 

Pensei abrir o artigo com uma imagem das ensolaradas paisagens pintadas por Henrique Pousão (1859-1884), tio do  poeta, mas do Algarve nada há. Assim, escolhi o mistério que sempre está associado a cada pintura de Picasso (1881-1973), qualquer que seja o seu nome evocativo, neste caso Seated Bather, óleo sobre tela do início de 1930 da colecção do MoMA de New York.

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Ricardo Reis — entre carpe diem e cadáver adiado que procria

17 Sexta-feira Maio 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Fernando Pessoa, Ricardo Reis

Os versos impressivos não nos devem fazer esquecer a dimensão do real e o multifacetado que a vida é. No entanto, o gosto da língua tornada poesia tem um apelo por vezes irresistível, fazendo, se distraídos, a vida saber ao que a poesia conta. E hoje, Fernando Pessoa (1888-1935), por via do heterónimo Ricardo Reis quase nos convence da nossa nulidade e apagamento, no peculiar e recorrente entendimento do eu que atravessa a sua poesia:

…/ Perene flui a interminável hora / Que nos confessa nulos. / …

ou ainda:

… / Que é qualquer vida? Breves sóis e sono. / …

 

Nos três poemas que escolhi e hoje transcrevo, surgem diferentes formas de, com ligeiras variações, dizer o mesmo: Nada fica de nada. Nada somos. / …

 

Logo no primeiro poema lemos:

 

… / No mesmo hausto / Em que vivemos, morreremos. Colhe / O dia, porque és ele.

 

para no segundo poema encontrarmos: Sereno aguarda o fim que pouco tarda. / …

 

e no poema com que encerro esta volta: … / O que fazemos é o que somos. .. / … cadáveres / Adiados que procriam.

 

 

O diálogo do que somos com o que lemos é parte essencial de um aprofundar do conhecimento de si, levando à reflexão sobre o porquê de certa leitura se nos acomodar e aqueloutra nos deixar indiferentes ou mesmo incomodar.

 

 

Eis os poemas:

 

 [Uns, com os olhos postos no passado]

 

Uns, com os olhos postos no passado,

Vêem o que não vêem; outros, fitos

Os mesmos olhos no futuro, vêem

O que não pode ver-se.

 

Porque tão longe ir pôr o que está perto —

A segurança nossa? Este é o dia,

Esta é a hora, este o momento, isto

É quem somos, e é tudo.

 

Perene flui a interminável hora

Que nos confessa nulos. No mesmo hausto

Em que vivemos, morreremos. Colhe

O dia, porque és ele.

28-8-1933

 

Odes de Ricardo Reis, Obras Completas de Fernando Pessoa, Edição Ática, Lisboa, 1978.

 

 

[Sereno aguarda o fim que pouco tarda]

 

Sereno aguarda o fim que pouco tarda.

Que é qualquer vida? Breves sóis e sono.

        Quanto pensas emprega

        Em não muito pensares.

 

Ao nauta o mar obscuro e a rota clara.

Tu, na confusa solidão da vida,

        A ti mesmo te elege

        (Não sabes de outro) o porto.

31-7-1932

 

Odes de Ricardo Reis, Obras Completas de Fernando Pessoa, Edição Ática, Lisboa, 1978.

 

 

[Nada fica de nada. Nada somos.] [2]

 

Nada fica de nada. Nada somos.

Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos

Da irrespirável treva que nos pesa

        Da húmida* terra imposta.

 

Leis feitas, estátuas altas, odes findas —

Tudo tem cova sua. Se nós, carnes

A que um íntimo sol dá sangue, temos

        Poente, porque não elas?

 

O que fazemos é o que somos. Nada

Nos cria, nos governa e nos acaba.

Somos contos contando contos, cadáveres

        Adiados que procriam.

28-9-1932

 

Poemas de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte.) Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994.  – 168a.

* A edição Ática que referi antes lê no manuscrito humilde em vez de húmida.

 

 

Em apêndice, e como curiosidade para o leitor exigente, transcrevo outra versão do último poema:

 

[Nada fica de nada. Nada somos.] [1]

 

Nada fica de nada. Nada somos.

Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos

Da irrespirável treva que nos pese

        Da húmida* terra imposta,

Cadáveres adiados que procriam.

 

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —

Tudo tem cova sua. Se nós, carnes

A que um íntimo sol dá sangue, temos

        Poente, porque não elas?

Somos contos contando contos, nada.

28-9-1932

 

Poemas de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte.) Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994.  – 168.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Carlo Carrá (1881-1966), O menino-prodígio, 1915.

 

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O Porto num poema de Vasco Graça Moura e Jorge de Sena em coda

13 Segunda-feira Maio 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Jorge de Sena, Vasco Graça Moura

É uma enorme alegria ver o renascer recente de urbes como Lisboa e Porto que durante longos anos foram sendo abandonadas e entregues à devastação do tempo e duma ignara gestão de prioridades económicas e sociais.

É ainda de uma cidade em abandono onde a usura do tempo tudo arrasta, que fala o poema de Vasco Graça Moura (1942-2014), Sobre a minha cidade.

Felizmente uma conjuntura económica favorável permitiu nos últimos anos a sua inversão, e hoje o Porto resplandece cada dia mais.

 

Sobre a minha cidade

 

sobre a minha cidade, falei-te ontem, mostrei-te

as esquinas do tempo, a imagem de fachadas

que ainda conheci, de outras que

eu próprio ignorava; sobre

 

a minha cidade e suas pedras, seus espaços

de árvores graves; e o que foi arrasado,

ou está a desfazer-se; as manchas do presente, a

poluição dos homens; e o que foi

 

violentamente arrancado por negócios sucessivos,

erros, brutalidades: o que era e o que foi

o que é dentro de mim o seu obscuro,

imaginário ser: costumes e conflitos,

 

maneiras de falar, a gente

e a confusão das ruas, as casas do barredo;

sobre a minha cidade achei que tu

tiveste gratidão, a viste.

 

que percorreste as pontes que da minha

cidade a ti me trazem, entre

gaivotas alastrando e músicas diferentes,

e foste nascer nela.

 

Vasco Graça Moura — poema publicado em os rostos comunicantes, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1984.

 

 

Falar poeticamente de cidades não é necessariamente desenvolver uma descrição. Há também uma expressão da cidade na osmose dela com o individual que a habita e a faz, nela se fazendo, como escreve Jorge de Sena (1919-1978) no poema Metamorfose, espécie de desejo da cidade em si:

 

 

Metamorfose

 

Para a minha alma eu queria uma torre como esta,

assim alta,

assim de névoa acompanhando o rio.

 

Estou tão longe da margem que as pessoas passam

e as luzes se reflectem na água.

 

E contudo, a margem não pertence ao rio

nem o rio está em mim como a torre estaria

se eu a soubesse ter…

                                       uma luz desce o rio

                                       gente passa e não sabe

que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem

                                                           as nuvens não passem

                                                           tão alta tão alta

que a solidão possa tornar-se humana.

25/10/1942

 

Jorge de Sena — poema publicado em Coroa da Terra, 1946. Transcrito de Jorge de Sena, Obras Completas, Poesia 1, Babel, 2013.

Segundo Mecia de Sena, no poema o poeta refere-se à Torre dos Clérigos.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de James Holland (1799-1870), Torre dos Clérigos.

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