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Cai a noite — está frio 

e súbito perpassa 

por nós um arrepio

a anunciar a graça 

 

Numa toada de sabor popular em redondilha maior e quadras rimadas, Fernando Pinto do Amaral (1960) dá-nos no poema Natal de 98, de que antes citei a quadra de abertura, uma reflexão sobre nós e o sagrado, induzida pela noite de Natal:

Cai a noite serena 

sobre nossa agonia 

e repete-se a cena 

que de novo inicia 

 

uma história de amor 

entre os homens e alguém 

talvez muito maior 

talvez homem também 

 

Depois deste quase tocar o divino, vem a inescapável dimensão terrena — nossa:

Cai a noite e eu espreito

o que em silêncio brilha 

no escuro do meu peito 

no olhar da minha filha 

 

É uma antiga promessa 

a que ninguém responde 

uma luz que atravessa 

este lugar sem onde 

 

Notável reflexão onde o ritmo do poema pode conduzir o leitor apressado a reter apenas a melodia da rima, descurando o que no todo o poema nos dá: … / Cai a noite indiferente / às imagens do nada / …; afinal a experiência que cada ano renova.

 

 

Natal de 98 

 

Cai a noite — está frio 

e súbito perpassa 

por nós um arrepio

a anunciar a graça 

 

de sermos talvez mais 

do que simples humanos 

decifrando sinais 

que não passam de enganos 

 

Cai a noite serena 

sobre nossa agonia 

e repete-se a cena 

que de novo inicia 

 

uma história de amor 

entre os homens e alguém 

talvez muito maior 

talvez homem também 

 

Cai a noite e eu espreito

o que em silêncio brilha 

no escuro do meu peito 

no olhar da minha filha 

 

É uma antiga promessa 

a que ninguém responde 

uma luz que atravessa 

este lugar sem onde 

 

Cai a noite indiferente 

às imagens do nada 

Cai a noite e alguém sente 

que já é madrugada

 

in Natal… Natais, Oito séculos de Poesia sobre o Natal, Antologia de Vasco Graça Moura, Público, Comunicação Social, S.A., 2005.

 

 

Nota iconográfica

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Gustav Klimt (1862-1918), Castelo sobre a água de 1908, pertença da Galeria Nacional de Praga.

No espelho da natureza domesticada que são os jardins se reflecte a busca humana pela harmonia no mundo, qual luz que atravesse este lugar sem onde.

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