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É para uma atmosfera de comemoração popular do nascimento de Jesus que o poema Janeiras de Vitorino Nemésio (1901-1978) nos transporta:

Vimos honrar a Jesus

Numas palhinhas deitado:

O candeio está sem luz 

Numa arribana de gado.

 

Mas uma estrela dianteira 

Arde no céu, que regala! 

A palha ficou trigueira,

Os pastorinhos sem fala.

 

Cantar as janeiras em grupos de porta em porta, em datas diferentes consoante os locais, é uma tradição a custo conservada em algumas povoações do país. Lembro-me de certo ano, as cantar em véspera de Natal, já lá vão talvez sessenta anos ou quase. Era em verdade uma forma simultânea de dar e receber a pretexto da comemoração religiosa:

 

Ó de casa, alta nobreza 

Mandai-nos abrir a porta,

Ponde a toalha na mesa 

Com caldo quente da horta!

 

Tendi, ferrinhos de prata, 

Ao toque desta sanfona!

Trazemos ovos de pata 

Fresquinhos, prà vossa dona.

 

No poema, ao anúncio da chegada dos cantadores à porta, segue-se a história do presépio. Finda esta, é hora de comezaina:

Acabou-se esta cantiga,

Vamos agora à chacota:

Já enchemos a barroga

Sigamos nossa derrota!

 

Rico vinho, santa broa 

Calça o fraco, veste os nus!

Voltaremos a Lisboa 

Pró ano, querendo Jesus.

 

 

E assim me despeço por hoje de si, leitor, com desejo de um Feliz Natal.

 

 

Eis o poema integral:

 

 

Janeiras

 

Ó de casa, alta nobreza 

Mandai-nos abrir a porta,

Ponde a toalha na mesa 

Com caldo quente da horta!

 

Tendi, ferrinhos de prata, 

Ao toque desta sanfona!

Trazemos ovos de pata 

Fresquinhos, prà vossa dona.

 

Senhora dona da casa, 

À ilharga do seu Joaquim,

Vermelha como uma brasa 

E alva com um jasmim!

 

Vimos honrar a Jesus

Numas palhinhas deitado:

O candeio está sem luz 

Numa arribana de gado.

 

Mas uma estrela dianteira 

Arde no céu, que regala! 

A palha ficou trigueira,

Os pastorinhos sem fala.

 

Dá-lhe calorzinho a vaca, 

O carvoeiro uma murra,

A velha o que trás na saca,

Seus olhos mansos a burra.

 

Já as janeiras vieram 

Os reis estão a chegar,

Os anos amadureceram:

Estamos para durar!

 

Já lá vem Dom Melchior

Sentado no seu camelo 

Cantar as loas de cor 

Ao cair do caramelo.

 

Ó incenso, mirra e oiro,

Que cheirais e luzis tanto,

Não valeis aquele tesoiro 

Do nosso Menino santo!

 

Abride a porta ao pregrino, 

Que vem de mum longe à neve,

De ver nascer o Menino 

Nas palhinhas do preseve.

 

Acabou-se esta cantiga,

Vamos agora à chacota:

Já enchemos a barroga

Sigamos nossa derrota!

 

Rico vinho, santa broa 

Calça o fraco, veste os nus!

Voltaremos a Lisboa 

Pró ano, querendo Jesus.

 

Publicado em Festa Redonda (1950).

Transcrito de Vitorino Nemésio, Obras Completas, vol I – Poesia, INCM, Lisboa, 1989.

 

 

Nota lexicográfica

Os termos pregrino, preseve, barroga, derrota, e outros são corruptelas populares para peregrino, presépio, barriga, rota, etc, que o poema contém e conservei.

Suponho que murra quererá significar um feixe de lenha para queimar. Se algum leitor conhecer o seu significado preciso, agradeço a informação.

 

Abre o artigo a imagem de uma representação tradicional do presépio por Bicci di Neri (1419-1491), também conhecido por Neri di Bicci, de 1470.

A pintura pertence à colecção do museu Lindenau de Altenburg.