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Seremos poucos os que abrimos a porta ao sonho e deixamos que a poesia o pinte com versos de encantar. Para esses venho com um poema de João Lúcio (1880-1918), Um amor de dois perfumes, publicado no livro O Meu Algarve (1905).
O poema capta o colorido do imaginário algarvio em torno a feitiços e encantamentos de amor, frequentemente envolvendo belas jovens mouriscas e situações onde a água surge. Estes dois elementos essenciais à vida, água e amor, são os ingredientes que dão o sabor às histórias que pela poesia encantam, espalhadas em lendas associadas a locais, os mais diversos, por todo o Algarve.
Do poeta João Lúcio soube mais tarde que foi residência e seu sonho de paraíso para a escrita, aquele palácio estranho e em ruínas que por momentos surgia entre os pinheiros por alturas de Marim, quando, no comboio, eu seguia de Tavira a caminho do liceu em Faro, pouco mais que criança, naquele início dos anos 60, tinha eu 10 anos, e ao alvor do dia tinha um ar de mistério no seu abandono e ruína. Quem ali teria morado e que acontecera? Por algum tempo mais ainda me intrigou. Depois, cresci, a ruína tornou-se familiar à vista, e o mistério deixou de me intrigar. A sua poesia é, de alguma maneira, a corporização do mistério que rodeava aquela casa. Hoje aqui o recordo.
O poeta, de curta vida e fama efémera, está hoje praticamente esquecido, afora as homenagens regionais, sobretudo na sua Olhão natal.
Da poesia de João Lúcio escreveu Teixeira de Pascoaes (1877-1952) em Poetas Lusíadas (1919):
“João Lúcio é o Algarve: um jardim de cores e lendas mouriscas, ao luar: […];
Às vezes, o jardim evolua-se num perfume, toma as proporções do Universo: […];
Mas o sol é o vinho que embriaga este poeta. Tem frases que são luz coalhada: […].”
E com esta impressiva opinião, passemos ao poema:
Um amor de dois perfumes
Cantando junto dum lago,
Macio como o seu olhar,
Que se não evaporava
Só para ouvi-la cantar,
A branca visão serena,
Tão leve como a neblina,
Tinha a voz húmida e pura
Como a da luz matutina.
Se ao lírio Deus desse o canto
E desse voz à estrela,
Nunca, a estrela ou o lírio,
Cantariam como ela.
Encantada, que encantava
Fora das humanas normas,
Era uma luz cinzelada,
Ou um aroma com formas.
A seus pés, o manso lago
Desfalecia em desejos,
Com a água arrepiada
De carícias e de beijos.
Um trovador, que os seus olhos
Conseguiram enlear,
Um trovador que ela amava,
Certo dia a quis beijar;
Da visão se evaporaram
As formas tão olorosas,
Deixando toldado o Ar
Com um perfume de rosas.
— Não me beijes que te encantas —
Longínqua voz murmurou
Alá não quer que me beijem;
Inda ninguém me beijou… —
Junto ao lago adormecida,
Achou-a o trovador,
Numa noite em que as estrelas
Andavam tontas de amor.
O lago enrolava as ondas,
Para ver se a alcançava,
E, ao cimo dessas ondas,
Beijos de prata mandava.
O trovador, de joelhos,
Tremendo de comoção,
No peito ouvia ruflar
As asas do coração.
Ia, afinal, dar-lhe um beijo,
Tê-la, afinal, entre os braços;
Com ciúme e raiva, os astros
Rugiam pelos espaços.
Poisou o beijo infinito
Na boca fresca e mimosa,
Como uma asa de luz
Que poisa sobre uma rosa.
Realizou-se o que, Alá,
Já havia anunciado:
Beijou-a, evaporou-se,
Ficou também encantado…
Dois perfumes que voaram
Nessa noite alva e serena…
Por não tornar mais a vê-la,
Finou-se o lago de pena.
Erram, talvez, pelo Céu,
Entre os astros e as procelas,
Espalhando com os beijos
Novos enxames de estrelas;
Ou quem sabe, se na terra,
Prendeu Alá, esse amor,
E se vivem hoje os dois
No cálix dalguma flor!
Poema publicado no livro O Meu Algarve em 1905.
Transcrito de João Lúcio, Poesias Completas, edição organizada e prefaciada por António Cândido Franco, INCM, Lisboa, 2002.
Nota iconográfica
Pensei abrir o artigo com uma imagem das ensolaradas paisagens pintadas por Henrique Pousão (1859-1884), tio do poeta, mas do Algarve nada há. Assim, escolhi o mistério que sempre está associado a cada pintura de Picasso (1881-1973), qualquer que seja o seu nome evocativo, neste caso Seated Bather, óleo sobre tela do início de 1930 da colecção do MoMA de New York.