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João Lúcio — Um amor de dois perfumes

02 Segunda-feira Dez 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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João Lúcio, Picasso, Teixeira de Pascoaes

Seremos poucos os que abrimos a porta ao sonho e deixamos que a poesia o pinte com versos de encantar. Para esses venho com um poema de João Lúcio (1880-1918), Um amor de dois perfumes, publicado no livro O Meu Algarve (1905). 

O poema capta o colorido do imaginário algarvio em torno a feitiços e encantamentos de amor, frequentemente envolvendo belas jovens mouriscas e situações onde a água surge. Estes dois elementos essenciais à vida, água e amor, são os ingredientes que dão o sabor às histórias que pela poesia encantam, espalhadas em lendas associadas a locais, os mais diversos, por todo o Algarve. 

Do poeta João Lúcio soube mais tarde que foi residência e seu sonho de paraíso para a escrita, aquele palácio estranho e em ruínas que por momentos surgia entre os pinheiros por alturas de Marim, quando, no comboio, eu seguia de Tavira a caminho do liceu em Faro, pouco mais que criança, naquele início dos anos 60, tinha eu 10 anos, e ao alvor do dia tinha um ar de mistério no seu abandono e ruína. Quem ali teria morado e que acontecera? Por algum tempo mais ainda me intrigou. Depois, cresci, a ruína tornou-se familiar à vista, e o mistério deixou de me intrigar. A sua poesia é, de alguma maneira, a corporização do mistério que rodeava aquela casa. Hoje aqui o recordo.

O poeta, de curta vida e fama efémera, está hoje praticamente esquecido, afora as homenagens regionais, sobretudo na sua Olhão natal. 

Da poesia de João Lúcio escreveu Teixeira de Pascoaes (1877-1952) em Poetas Lusíadas (1919):

“João Lúcio é o Algarve: um jardim de cores e lendas mouriscas, ao luar: […];

Às vezes, o jardim evolua-se num perfume, toma as proporções do Universo: […];

Mas o sol é o vinho que embriaga este poeta. Tem frases que são luz coalhada: […].”

E com esta impressiva opinião, passemos ao poema:

 

 

Um amor de dois perfumes

 

Cantando junto dum lago,

Macio como o seu olhar, 

Que se não evaporava 

Só para ouvi-la cantar,

A branca visão serena,

Tão leve como a neblina,

Tinha a voz húmida e pura 

Como a da luz matutina.

Se ao lírio Deus desse o canto 

E desse voz à estrela,

Nunca, a estrela ou o lírio,

Cantariam como ela.

Encantada, que encantava 

Fora das humanas normas,

Era uma luz cinzelada,

Ou um aroma com formas.

A seus pés, o manso lago 

Desfalecia em desejos, 

Com a água arrepiada 

De carícias e de beijos.

Um trovador, que os seus olhos 

Conseguiram enlear,

Um trovador que ela amava,

Certo dia a quis beijar;

Da visão se evaporaram 

As formas tão olorosas, 

Deixando toldado o Ar 

Com um perfume de rosas.

— Não me beijes que te encantas —

Longínqua voz murmurou

Alá não quer que me beijem;

Inda ninguém me beijou… —

Junto ao lago adormecida,

Achou-a o trovador,

Numa noite em que as estrelas 

Andavam tontas de amor.

O lago enrolava as ondas,

Para ver se a alcançava,

E, ao cimo dessas ondas,

Beijos de prata mandava.

O trovador, de joelhos,

Tremendo de comoção,

No peito ouvia ruflar 

As asas do coração.

Ia, afinal, dar-lhe um beijo,

Tê-la, afinal, entre os braços;

Com ciúme e raiva, os astros 

Rugiam pelos espaços.

Poisou o beijo infinito 

Na boca fresca e mimosa,

Como uma asa de luz

Que poisa sobre uma rosa.

Realizou-se o que, Alá,

Já havia anunciado:

Beijou-a, evaporou-se,

Ficou também encantado…

Dois perfumes que voaram

Nessa noite alva e serena…

Por não tornar mais a vê-la,

Finou-se o lago de pena.

Erram, talvez, pelo Céu,

Entre os astros e as procelas,

Espalhando com os beijos

Novos enxames de estrelas;

Ou quem sabe, se na terra,

Prendeu Alá, esse amor,

E se vivem hoje os dois

No cálix dalguma flor!

 

Poema publicado no livro O Meu Algarve em 1905.

Transcrito de João Lúcio, Poesias Completas, edição organizada e prefaciada por António Cândido Franco, INCM, Lisboa, 2002.

Nota iconográfica 

Pensei abrir o artigo com uma imagem das ensolaradas paisagens pintadas por Henrique Pousão (1859-1884), tio do  poeta, mas do Algarve nada há. Assim, escolhi o mistério que sempre está associado a cada pintura de Picasso (1881-1973), qualquer que seja o seu nome evocativo, neste caso Seated Bather, óleo sobre tela do início de 1930 da colecção do MoMA de New York.

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Teixeira de Pascoaes — Elegia de Amor

28 Quarta-feira Dez 2016

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Teixeira de Pascoaes

chagall-o-sonho-1968-500pxMuita da poesia de amor que a humanidade conhece surgiu como forma de gerir a perda, umas vezes brusca e inesperada, outras induzida por adversidades diversas. Para este vazio que a perda do amor criou, a poesia foi o consolo.

 

Na poesia portuguesa ao longo dos séculos, ainda que as imagens para dar conta de todo este desgosto se repitam, a forma de as colocar poeticamente tem variações quase infinitas atingindo por vezes alturas de espanto, e o tantas vezes lido toca-nos a corda da emoção, qual seja, por exemplo, a leitura destes versos de um soneto de António Ferreira (1528-1569):

 

…
Assim com o espírito triste, o juízo escuro,
Suas santas pisadas vou buscando
Por vales, e por campos, e por montes.
Em toda a parte a vejo e a figuro.
Ela me toma a mão e vai guiando,
E meus olhos a seguem feitos fontes.

 

 

Nestes seis versos condensa António Ferreira os sentimentos que séculos mais tarde Teixeira de Pascoaes  (1877-1952) desenvolveu em parte do longo poema Elegia de Amor a que hoje convido os leitores.

 

O poema, imenso, desenvolve-se como memória numa primeira parte:

 

…
Olhavas para mim… / Meu corpo rude e bruto / Vibrava, como a onda / A erguer-se em nevoeiro! Olhavas descuidada… / Oh dor, ainda hoje escuto / A música ideal / Do teu olhar primeiro!
Ouço bem tua voz, / E vejo bem teu rosto, / No silêncio sem fim, / Na escuridão completa!
Ouço-te em minha dor, / Ouço-te em meu desgosto; / Vejo-te em meu sonho / Eterno de poeta!
…

 

Na segunda parte o poeta desenvolves a evocação fantasmal da amada:

 

…
Descubro-te, mulher, / Na Natureza inteira,
…
Se passo por um lírio, / Às vezes, distraído, / Chama por mim, dizendo: / “Oh, não te esqueças dela!”
…
Não encontro uma flor, / Sem o teu nome ouvir… / Não posso olhar o céu, / Sem me lembrar de ti!…
…

 

 

O conjunto dos sentimentos que percorrem poema surge ao leitor de hoje um pouco estranho, ainda que esta osmose entre o físico do desejo humano e a emoção da natureza soe sincera:

 

…
Acordo, de repente, / E vejo, no meu quarto / O sol entrar, sorrindo, / Julgo ver, ante mim, / Teu corpo resplendente, / Tua trança de luz, / Teu gesto suave e lindo…
…

 

Depois do aperitivo, entrego-o, leitor, ao poema:

 

 

 

Elegia de Amor

I

Lembras-te, meu amor,
Das tardes outonais,
Em que íamos os dois,
Sozinhos, passear,
Para fora do povo
Alegre e dos casais,
Onde só Deus pudesse
Ouvir-nos conversar?…
Tu levavas na mão
Um lírio enamorado;
E davas-me o teu braço
E eu, pálido, sonhava
Na vida, em Deus, em ti…
E ao longe, o sol doirado
Morria, conhecendo
A noite que deixava…
Harmonias astrais
Beijavam teus ouvidos,
Um crepúsculo terno
E doce diluía
Na sombra, o teu perfil
E os montes doloridos…
Erravam, pelo azul,
Canções do fim do dia…
Canções que, de bem longe,
O vento vagabundo
Trazia, na memória…
Assim o que partiu
Sobre as águas do mar
E vem de ver o mundo,
Traz, no seu coração,
A imagem do que viu…
Olhavas para mim,
Às vezes, distraída,
Como quem olha o mar,
À tarde, dos rochedos…
E eu ficava a sonhar,
Qual onda adormecida,
Quando o vento também
Dorme nos arvoredos…
Olhavas para mim…
Meu corpo rude e bruto
Vibrava, como a onda
A erguer-se em nevoeiro!
Olhavas descuidada…
Oh dor, ainda hoje escuto
A música ideal
Do teu olhar primeiro!
Ouço bem tua voz,
E vejo bem teu rosto,
No silêncio sem fim,
Na escuridão completa!
Ouço-te em minha dor,
Ouço-te em meu desgosto;
Vejo-te em meu sonho
Eterno de poeta!
O sol morria ao longe…
E a sombra da tristeza
Velava com amor
Nossas doridas frontes…
Hora em que a flor medita
E a pedra chora e reza
E erguem as mãos de bruma
Ao céu, as tristes fontes…
Hora santa em que nós,
Felizes e sozinhos,
Íamos através
Da aldeia muda e calma,
Mãos dadas, a sonhar,
Ao longo dos caminhos…
Tudo em volta de nós
Tinha um aspecto de alma!
Tudo era sentimento,
Amor e piedade…
A folha que tombava
Era alma que subia…
E, sob os nossos pés,
A terra era saüdade,
A Pedra comoção
E o pó melancolia…
Falavas do luar,
Dos bosque, mais do amor;
Dos ceguinhos sem pão,
Dos pobres sem um manto…
Em cada tua palavra
Havia etérea dor;
Por isso a tua voz
Me impressionava tanto!
E ficava a cismar
Que eras tão boa e pura,
Que, em breve, oh dor fatal,
Te chamaria o céu!
E soluçava ao ver
Alguma sombra escura,
No teu rosto que o luar
Cobria, como um véu…
A tua palidez
Que medo me causava!
Teu corpo era tão fino e leve,
(Oh meu desgosto!)
Que eu tremia, ao sentir
O vento que passava!
Caía-me na alma
A neve do teu rosto!…
Como eu ficava mudo
E triste sobre a terra!
E, uma vez, quando a noite
Amortalhava a aldeia,
Tu gritaste de susto,
Olhando para a serra:
— “Que incêndio!” — E eu, a rir,
Disse-te: — “É a lua cheia!”
E sorriste também
Do teu engano… E a lua
Ergueu a branca fronte
Acima dos pinhais,
Tão ébria de esplendor,
Tão casta e irmã da tua,
Que eu beijei, sem querer,
Seus raios virginais!…
E a lua para nós
Os braços estendeu…
Uniu-nos num abraço,
Esplêndido e profundo;
E levou-nos aos dois,
Com ela, até ao céu…
Somente, tu ficaste
E eu regressei ao mundo!…

 

II

Um raio de luar,
Entrando, de improviso,
No meu quarto sombrio,
Onde medito, a sós,
Deixa a tremer, no ar,
Um pálido sorriso,
Um murmúrio de luz
Que lembra a tua voz…
O Outono, que derrama
Ideal melancolia
Nas almas sem amor,
Nos troncos sem folhagem,
Deixa a vibrar, em mim,
Saudosa melodia,
Dolorida canção,
Que lembra a tua imagem…
A noite que escurece
As almas e ou outeiros,
Mas que acende, num bosque,
A voz do rouxinol
E a estrela que protege
E guia os pegureiros,
A lágrima do céu
Ao ver morrer o sol,
Acorda, no meu peito,
Etérea e infinda dor,
Que à memória me traz
A luz do teu olhar…
Tudo de ti me fala,
Ó meu longínquo amor!
As árvores, a terra,
Os rouxinóis e o mar!
Se passo por um lírio,
Às vezes, distraído,
Chama por mim, dizendo:
“Oh, não te esqueças dela!”
Diz-mo o mesmo, chorando,
O vento dolorido;
Diz-mo a fonte, a cantar,
Diz-mo, a brilhar, e estrela!
E vejo em toda a luz
Teus olhos a fulgir.
Como descubro em tudo,
A alma que perdi!
Não encontro uma flor,
Sem o teu nome ouvir…
Não posso olhar o céu,
Sem me lembrar de ti!…
Por isso, eu amo o pobre,
O triste e a Natureza,
A mãe da humana dor,
Da dor de Deus a filha!
Meu coração ao pé
Dum pobrezinho, reza;
Canta ao lado dum ninho,
Ao pé da estrela, brilha!…
O meu amor por ti,
Meu bem, minha saüdade,
Ampliou-se até Deus;
Os astros abraçou…
Beijo o rochedo e a flor,
A noite e a claridade…
São estes, meu amor,
Os beijos que te dou!
Hás-de senti-los, sim.
Doce mulher de outrora,
Ó roxo lírio de hoje,
Ó nuvem actual!
Como, dantes, teu rosto,
A rosa ainda hoje cora…
Beijo-te sim, beijando
A rosa virginal…
Vêm doirar o teu perfil
Teus olhos, dos espaços,
Teu amor, feito luz,
Desce do Firmamento.
Se abraço um verde tronco,
Eu sinto entre os meus braços,
Teu corpo estremecer,
Como uma flor, ao vento!
Soluça a tua dor
Nas infinitas mágoas
Que no fundo da tarde,
Ao céu, vejo subir…
Ouço bem tua voz
No marulhar das águas,
No murmúrio que sai
Das pétalas a abrir…
Se os lábios vou molhar
Nas águas duma fonte,
Queimam meu coração
Tuas lágrimas salgadas…
E, quando acaricia
O vento a minha fronte,
Eu bem sinto sobre ela,
As tuas mãos sagradas!…
Quando, à noite, no Outono,
A lua, a branca Ofélia,
Morta, vai a boiar
Nas águas do Infinito,
Sinto doirar meu rosto
A palidez etérea,
Que, dantes, emanava
O teu perfil bendito…
Quando, em manhãs de Abril,
Acordo, de repente,
E vejo, no meu quarto
O sol entrar, sorrindo,
Julgo ver, ante mim,
Teu corpo resplendente,
Tua trança de luz,
Teu gesto suave e lindo…
Descubro-te, mulher,
Na Natureza inteira,
Porque entendo a floresta,
A névoa, o céu doirado,
A estrela a arder no Azul,
A lenha na lareira
E o lírio que na cruz
Do Outono, está pregado!
Falas comigo, sim,
Da dor, do bem, de Deus…
Repartes o meu pão,
Amor, pelos ceguinhos…
E pelas solidões,
Os pobres versos meus,
Como os pobres que vão,
A orar, pelos caminhos…
És a minha ternura,
A minha piedade,
Pois tudo me comove!
O zéfiro mais leve
Acende, no meu peito,
Infinda claridade;
E a brancura do lírio
Enche meu ser de neve…
Todo eu fico a cismar
Na triste voz do vento,
Na atitude serena
E estranha duma serra;
No delírio do mar,
Na paz do Firmamento
E na nuvem, que estende
As asas, sobre a Terra!
Todo eu fico a cismar,
Assim como esquecido,
Ante a flor virginal
E o sol enamorado…
Ante o luar que nasce,
Ao longe, dolorido,
Dando às cousas um ar
Tão triste e macerado…
Todo eu fico a cismar…
Um vago e etéreo laço
Prende-me ao teu imenso
E livre coração,
Que abrange toda a Terra
E ocupa todo o espaço,
E que vai povoar
A minha solidão!
Por isso, eu vivo sempre,
Em doce companhia,
Com o pobre que pede
E a estrela que fulgura…
E assim meu coração,
Igual à luz do dia
Derrama-se no céu,
Em ondas de ternura…
Sou como a chuva e o vento
E como a bruma e a luz…
Lira que a mais suave
Aragem faz vibrar…
Água que, ao luar brando,
Em nuvens se traduz…
Fruto que amadurece
À luz dum só olhar!
Pedra que um beijo funde
E místico vapor,
Que um hálito condensa
Em cada gota de água…
Aroma que um só ai
Encarna em triste flor,
Riso que muda em choro
A mais pequena mágoa…
Vivo a vida infinita,
Eterna, esplendorosa;
Sou neblina, sou ave,
Estrela e céu sem fim,
Só porque, um dia, tu,
Mulher misteriosa,
Por acaso, talvez,
Olhaste para mim…

 

 

Versão transcrita de Poesia de Amor, Antologia Portuguesa, selecção e prefácio de José Régio e Alberto de Serpa, Livraria Tavares Martins, Porto, 1945.

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Tristeza — poema de Teixeira de Pascoaes

11 Quarta-feira Dez 2013

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Arnold Böcklin, Teixeira de Pascoaes

Arnold Böcklin - Ulisses e CalypsoA vida raramente corre como a desejamos. Na infinita capacidade humana de adaptação ao inesperado cruzam-se os mais variados sentimentos e deles, frequentemente, a poesia dá conta. Hoje fala-nos da tristeza um poema de Teixeira de Pascoaes (1877-1952).

 

Tristeza

 

O sol do outono, as folhas a cair,

A minha voz baixinho soluçando,

Os meus olhos, em lagrimas, beijando

A mística paisagem a sorrir…

 

Assim a minha vida transitando

Vai, à tona da terra… E fico a ouvir

Silencios do outro mundo e o resurgir

De mortos que me foram sepultando…

 

E fico mudo, extático, parado

E quasi sem sentidos, mergulhado

Na minha viva e funda intimidade…

 

A mais longínqua estrela em mim actua…

Inunda-me de mágoa a luz da lua,

E sou eu mesmo o corpo da saudade.

 

 

É complexa e intelectualmente exigente a poesia de Teixeira de Pascoaes. Sob a simplicidade do verso surgem sempre ontológicas interrogações num constante diálogo entre o homem, ser de relação, e o animal sensível às mutações da natureza.

Para os mais informados permanece, talvez, como imagem de Teixeira de Pascoaes, a expressão com que Unamuno se lhe referiu — dizia adeus ao sol, falava ao vento, saudava a aurora e lia no Infinito —. Visão provavelmente certeira do homem que a sua poesia incorpora.

 

É tudo sonho e vida e comoção!

O sol é uma oração

Pelos velhos mendigos que têm frio!

E a piedade das sombras, pelo estio!

A nuvem religiosa

Mata a sede à paisagem sequiosa…

O luar perdoa à noite; e cada flor

É dádiva de amor.

(Poema II de Nova Luz, in Vida Etérea)

 

Os belos versos sucedem-se e não conseguiria parar de citar. Mas deste mesmo ciclo, Nova Luz, o poema I abre assim:

 

Emana um fumo de alma o crepitar do lume:

O incêndio duma flor dá a cinza do perfume.

 

O corpo de uma onda é o líquido braseiro,

Que exala, no infinito, o branco nevoeiro.

…

 

Para quem tenha curiosidade desta poesia e se iniba perante a sua aparente estranheza neste nosso tecnológico século XXI, atrevo-me a sugerir o livro Vida Etérea, onde em belíssima exaltação da vida os poemas se sucedem. Por hoje, cito ainda desse livro, e do poema Deslumbramento os quatro versos iniciais:

 

A vida é sonho, amor, exaltação.

Flama a irromper da eterna escuridão.

É lume a flor e a sombra amanhecente

A terra é carne, a luz é sangue ardente.

 

As transcrições dos poemas foram feitas da edição dos livros Elegias e Vida Etérea, Assírio & Alvim, Lisboa, 1998.

 

 

Abre o artigo uma imagem da pintura de Arnold Böcklin (1827-1901) – Ulisses e Calypso.

 

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