• Autor
  • O Blog

vicio da poesia

Tag Archives: António Ramos Rosa

António Ramos Rosa — Daqui deste deserto em que persisto

05 Quarta-feira Fev 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

António Ramos Rosa, Rogério Ribeiro

O tempo, medimo-lo pela nossa experiência directa e do que foi a vida que vivemos, ou o que ela nos fez. Para a geração sub-quarenta que cresceu nas consequências da revolução de 25 de Abril de 1974, tanto o tempo do Estado Novo como o da revolução, são história tão remota como a segunda guerra mundial, a primeira república ou o descobrimento do Brasil. Por isso, saber da ausência de horizontes, da esperança, e do naufrágio da barca dos sonhos associados ao 25 de Abril de 1974, é segredo hoje guardado por menos e não pelo país que inteiro se empolgou na experiência. Tempos em que a poesia devia ser útil à revolução e ao homem novo, criavam nos poetas a perplexidade que o poema de António Ramos Rosa (1924-2013), Daqui deste deserto em que persisto dá conta:

…

Que tenho eu a dizer

neste país

se um homem levanta os braços

e grita com os braços

o que de mais oculto havia

na secreta ternura de uma boca

que era a única boca do seu povo

…

 

O poeta, entregue ao seu ofício, não sabendo que dizer na pressão da realidade em volta, olhava a folha em branco em busca da palavra certa para o tempo:

 

Nenhum ruído no branco.

Nesta mesa onde cavo e escavo

rodeado de sombras

sobre o branco

abismo

desta página

em busca de uma palavra

…

 

E dessa busca vai o poema dando conta:

…

Que tenho eu para dizer mais do que isto

sempre isto desta maneira ou doutra

que procuro eu senão falar

desta busca vã

de um espaço em que respira

a boca de mil bocas

do corpo único no abismo branco

…

 

Resignado ao circunstancial, tenta encontrar o lugar que lhe cabe nessa sociedade nova a caminho dos amanhãs que cantam, e declara: 

…

Sou um pobre trabalhador pobre

nesta mina branca

onde todas as palavras estão ressequidas

pelo ardor do deserto

pelo frio do abismo total

…

para finalmente reconhecer o que lhe exigem:

…

Que posso eu fazer senão

daqui

deste deserto

em que persisto

chamar-lhe camarada

 

Além do circunstancial da sua composição, o poema toca uma questão que é de sempre: que papel social para a poesia, e de caminho, qual a utilidade dos poetas. E a resposta será sempre negativa, ou seja, ao colectivo, poetas e poesia são apenas adornos de prestígio quando convém. É a cada um, na sua individualidade, que a poesia pode trazer algo que lhe proporcione encontrar-se com o seu íntimo mais profundo.

Poema

 

Daqui deste deserto em que persisto

 

Nenhum ruído no branco.

Nesta mesa onde cavo e escavo

rodeado de sombras

sobre o branco

abismo

desta página

em busca de uma palavra

 

escrevo cavo e escavo na cave desta página

atiro o branco sobre o branco

em busca de um rosto

ou folha

ou de um corpo intacto

a figura de um grito

ou às vezes simplesmente

                                                uma pedra

busco no branco o nome do grito

o grito do nome

busco

com uma fúria sedenta

a palavra que seja

a água do corpo o corpo

intacto no silêncio do seu grito

ressurgindo do abismo da sede

com a boca de pedra

com os dentes das letras

com o furor dos punhos

nas pedras

 

Sou um trabalhador pobre

que escreve palavras pobres quase nulas

às vezes só em busca de uma pedra

uma palavra

violenta e fresca

um encontro talvez com o ínfimo

a orquestra ao rés da erva

um insecto estridente

o nome branco à beira da água

o instante da luz num espaço aberto

 

Pus de parte as palavras gloriosas

na esperança de encontrar um dia

o diadema no abismo

a transformação do grito

num corpo

descoberto na página do vento

que sopra deste buraco

desta cinzenta ferida

no deserto

 

As minhas mãos são frias

têm o frio da página

e da noite

de todas as sombras que me envolvem

são palavras frágeis como insectos

como pulsos

e acumulo pedras sobre pedras

cavo e escavo a página deserta

para encontrar um corpo

entre a vida e a morte

entre o silêncio e o grito

 

Que tenho eu para dizer mais do que isto

sempre isto desta maneira ou doutra

que procuro eu senão falar

desta busca vã

de um espaço em que respira

a boca de mil bocas

do corpo único no abismo branco

 

Sou um pobre trabalhador pobre

nesta mina branca

onde todas as palavras estão ressequidas

pelo ardor do deserto

pelo frio do abismo total

 

Que tenho eu a dizer

neste país

se um homem levanta os braços

e grita com os braços

o que de mais oculto havia

na secreta ternura de uma boca

que era a única boca do seu povo

 

Que posso eu fazer senão

daqui

deste deserto

em que persisto

chamar-lhe camarada

 

in A Nuvem Sobre a Página (1978)

Transcrito de Poemas do Último Século Antes do Homem, “colheita de poesia e arte na resistência antifascista”, Editorial Inova/Editorial O Oiro do Dia, Porto, 1979.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Rogério Ribeiro (1930-2008), UCP – Unidade Colectiva de Produção, de 1976. A obra, propriedade da CGD, encontra-se em depósito no Palácio da Presidência da República, em Belém, estando instalada na Sala do Conselho de Estado, segundo informação do site da Culturgest.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Onde… António Ramos Rosa

21 Quarta-feira Maio 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

António Ramos Rosa, William-Adolphe Bouguereau

William-Adolphe_Bouguereau_(1825-1905)_-_Biblis_(1884)A750

É uma espécie de itinerário de busca…, de busca da mulher e do amor, o caminho que os poemas de António Ramos Rosa (1924-2013) a seguir transcritos, nos convidam a percorrer.

Os poemas têm, por um lado um aroma de enigma, do enigma das coisas intuídas, e acrescentam-lhe o sabor do ritmo que distingue a poesia de outras formas de dizer.

 

A mulher  A casa

 

A casa é viva

(A mulher dorme)

Dorme na espuma

nas cores puras

Dorme na espuma do silêncio

 

Planos brancos

e cores lisas

 

Dorme no vidro

tranquilo

 

Dorme viva

 

A casa é branca

É mais branca no silêncio

É mais branca entre as árvores

 

A própria cidade é branca

 

A cabra

cheirou a casa

cheirou o branco

 

O puro nó

do silêncio

 

Chego em silêncio

à mulher viva

dormindo

 

A casa é ela

em espiral

rodando

branca

 

É fino o ar

quase sem pó

Uma árvore dá

uma curta sombra

 

Uma brisa lava

a casa fresca

 

A varanda nua

é seca e branca

com sede de mar

 

A varanda é nua

A mulher é nua

 

Da casa branca

vê-se o mar

o fulvo dorso

da praia

nu

 

mulher de areia

deitada e panda

na frescura azul

 

Uma vela branca

de minúcia fresca

 

dá ao olhar a brisa

dá ao silêncio o mar

 

A mulher dorme

viva

na espuma

do silêncio

 

 

Onde o caminho

 

Onde o caminho é a mão que se abre,

a mão que vai.

O silêncio que respiro é o caminho que vem.

 

A mão nova palpa a parede do ar.

Uma parede nova.

 

Caminho para o solo alto.

Desloco a terra.

 

O fragor branco do céu.

 

O dia não estala.

 

Termino com o perfume de erotismo que o poema Onde é aqui exala.

 

 

Onde é aqui

 

Onde é aqui,

o centro,

onde se respira,

a cama limpa

o corpo inteiro e nu.

Onde é a fome e o braço toca

o esplendor.

Respira o ventre,

a vela incha

ao sol e ao mar sem fim.

 

Onde é aqui,

a fome nua,

a árvore exacta

no centro

da alegria,

a luz e o olhar

aberto ao mar.

Poemas transcritos de A Palavra do Lugar, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1977.

A imagem de abertura respeita a uma pintura de William-Adolphe Bouguereau (1825-1905).

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

O funcionário cansado — poema de António Ramos Rosa

20 Quarta-feira Nov 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

António Ramos Rosa, Lucien Freud

Lucian Freud John Minton 1952

Na vasta e irregular obra poética de António Ramos Rosa (1924-2013), o poema O Funcionário Cansado, publicado no primeiro livro do autor, ocupa um lugar singular numa obra em que o intenso do prazer repercute no maior esplendor.

Poema sobre a solidão onde a desistência de escolher fazer o que a vida nos chama se espelha, diz-nos de forma pungente da dor de perder os sonhos.

Poema atento ao homem e ao mundo, despido de redundâncias de forma, brilha na expressão com que nos dá conta de uma vida entre nada e coisa nenhuma, para parafrasear Irene Lisboa com cuja poesia o poema se aparenta. É sem dúvida um dos grandes poemas do século XX português.

O Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado de um dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música.
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

Lucian Freud Interior in Paddington 1951

São de pinturas de Lucien Freud (1922-2011) as imagens que acompanham o artigo.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Um poema de Wu-ti em versão de António Ramos Rosa

18 Segunda-feira Fev 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

António Ramos Rosa, Archipenko, Poesia Chinesa Antiga, Wu-ti

Archipenko - Torso no espaço

Aí, Senhora minha,
que deixei de ouvir
o roçar da seda
do vosso vestido.

Já o pó se acama
sobre o chão dos pátios
do palácio onde
não mais passeais.

As folhas mortas
vão-se amontoando
diante da porta
p’ra sempre fechada.

E o silêncio do
palácio nunca mais
será quebrado pelo
lindo riso vosso.

Meu pobre coração
não encontra sossego
e, sem esperança alguma,
em vão por vós chama.

Versão de António Ramos Rosa (1924), in Rosa do Mundo, 2001 poemas para o futuro.

Embora sem informação editorial nesta versão, suponho que se trata de um poema do 6º imperador da dinastia Han, Wu-ti, que viveu entre 157-87 a. C, e não de c. 200 como assinalado na edição portuguesa.

O poema terá sido escrito em lembrança da sua amante Li Fu-jen, quando esta morreu.

Acrescento a versão inglesa do poema por Arthur Waley, a qual, no confronto com o português, permite saborear melhor a beleza da versão de António Ramos Rosa, na quase imponderável leveza do vocabulário, transmitindo-nos aquela espécie de silêncio que a ausência convoca.

LI FU-JEN

The sound of her silk skirt has stopped.
On the marble pavement dust grows.
Her empty room is cold and still
Fallen leaves are piled against the doors.
Longing for that lovely lady
How can I bring my aching heart to rest?

A imagem que abre o artigo mostra uma pintura/colagem de Archipenko – Torso no espaço.

Archipenko (1887-1964), conhecido sobretudo como escultor do Construtivismo soviético, possui também algumas belas obras de pintura/tecnica mista que noutro artigo arquivarei.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Dois poemas eróticos de António Ramos Rosa

19 Sábado Jan 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à fotografia, Erótica, Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

António Ramos Rosa, Harry Callahan

Harry-Callahan-01Um corpo que se ama

Para quem o deseja e quem o ama
um corpo é sempre belo no seu esplendor
e tudo nele é belo porque é sagrado
e, mesmo na mais plena posse, inviolável.

Um corpo que se ama é uma nascente viva
que de cada poro irrompe irreprimivel
e toda a sua violência é a energia ardente
que gerou o universo e a fantasia dos deuses.

Tudo num corpo que se ama é adorável
na integridade viva de um mistério
na evidência assombrosa da beleza
que se nos oferece inteiramente nua.

Não há visão mais lucida do que a do desejo
e só para ela a nudez é sagrada
como uma torrente vertiginosa ou uma oferenda solar.
Esse olhar vê-o inteiro na perfeição terrestre.

Publicado em A ROSA INTACTA, Edição Labirinto, 2007

Harry-Callahan-05

SÓBRIO O TEU CORPO

Sóbrio o teu corpo me pede
penetração: nomes puros:
os de boca, braços, mãos
sobre a terra e sobre os muros.

Sóbrio o teu corpo me pede
nomes justos, nomes duros:
os de terra, fogo e punhos,
claros, acres, escuros.

Publicado em OCUPAÇÃO DO ESPAÇO, Portugália, 1963

Harry-Callahan-38

As fotos são de Harry Callahan (1912-1999)

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Visitas ao Blog

  • 1.960.572 hits

Introduza o seu endereço de email para seguir este blog. Receberá notificação de novos artigos por email.

Junte-se a 869 outros seguidores

Página inicial

  • Ir para a Página Inicial

Posts + populares

  • Sonetos do amor total — Elizabeth Barrett Browning
  • A valsa — poema de Casimiro de Abreu
  • Da solidão no leito em dois poemas medievais

Artigos Recentes

  • Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís
  • Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro
  • Um poema de Salvador Espriu

Arquivos

Categorias

Create a free website or blog at WordPress.com.

  • Seguir A Seguir
    • vicio da poesia
    • Junte-se a 869 outros seguidores
    • Already have a WordPress.com account? Log in now.
    • vicio da poesia
    • Personalizar
    • Seguir A Seguir
    • Registar
    • Iniciar sessão
    • Denunciar este conteúdo
    • Ver Site no Leitor
    • Manage subscriptions
    • Minimizar esta barra
 

A carregar comentários...
 

    %d bloggers like this: