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O tempo, medimo-lo pela nossa experiência directa e do que foi a vida que vivemos, ou o que ela nos fez. Para a geração sub-quarenta que cresceu nas consequências da revolução de 25 de Abril de 1974, tanto o tempo do Estado Novo como o da revolução, são história tão remota como a segunda guerra mundial, a primeira república ou o descobrimento do Brasil. Por isso, saber da ausência de horizontes, da esperança, e do naufrágio da barca dos sonhos associados ao 25 de Abril de 1974, é segredo hoje guardado por menos e não pelo país que inteiro se empolgou na experiência. Tempos em que a poesia devia ser útil à revolução e ao homem novo, criavam nos poetas a perplexidade que o poema de António Ramos Rosa (1924-2013), Daqui deste deserto em que persisto dá conta:

Que tenho eu a dizer

neste país

se um homem levanta os braços

e grita com os braços

o que de mais oculto havia

na secreta ternura de uma boca

que era a única boca do seu povo

 

O poeta, entregue ao seu ofício, não sabendo que dizer na pressão da realidade em volta, olhava a folha em branco em busca da palavra certa para o tempo:

 

Nenhum ruído no branco.

Nesta mesa onde cavo e escavo

rodeado de sombras

sobre o branco

abismo

desta página

em busca de uma palavra

 

E dessa busca vai o poema dando conta:

Que tenho eu para dizer mais do que isto

sempre isto desta maneira ou doutra

que procuro eu senão falar

desta busca vã

de um espaço em que respira

a boca de mil bocas

do corpo único no abismo branco

 

Resignado ao circunstancial, tenta encontrar o lugar que lhe cabe nessa sociedade nova a caminho dos amanhãs que cantam, e declara: 

Sou um pobre trabalhador pobre

nesta mina branca

onde todas as palavras estão ressequidas

pelo ardor do deserto

pelo frio do abismo total

para finalmente reconhecer o que lhe exigem:

Que posso eu fazer senão

daqui

deste deserto

em que persisto

chamar-lhe camarada

 

Além do circunstancial da sua composição, o poema toca uma questão que é de sempre: que papel social para a poesia, e de caminho, qual a utilidade dos poetas. E a resposta será sempre negativa, ou seja, ao colectivo, poetas e poesia são apenas adornos de prestígio quando convém. É a cada um, na sua individualidade, que a poesia pode trazer algo que lhe proporcione encontrar-se com o seu íntimo mais profundo.

Poema

 

Daqui deste deserto em que persisto

 

Nenhum ruído no branco.

Nesta mesa onde cavo e escavo

rodeado de sombras

sobre o branco

abismo

desta página

em busca de uma palavra

 

escrevo cavo e escavo na cave desta página

atiro o branco sobre o branco

em busca de um rosto

ou folha

ou de um corpo intacto

a figura de um grito

ou às vezes simplesmente

                                                uma pedra

busco no branco o nome do grito

o grito do nome

busco

com uma fúria sedenta

a palavra que seja

a água do corpo o corpo

intacto no silêncio do seu grito

ressurgindo do abismo da sede

com a boca de pedra

com os dentes das letras

com o furor dos punhos

nas pedras

 

Sou um trabalhador pobre

que escreve palavras pobres quase nulas

às vezes só em busca de uma pedra

uma palavra

violenta e fresca

um encontro talvez com o ínfimo

a orquestra ao rés da erva

um insecto estridente

o nome branco à beira da água

o instante da luz num espaço aberto

 

Pus de parte as palavras gloriosas

na esperança de encontrar um dia

o diadema no abismo

a transformação do grito

num corpo

descoberto na página do vento

que sopra deste buraco

desta cinzenta ferida

no deserto

 

As minhas mãos são frias

têm o frio da página

e da noite

de todas as sombras que me envolvem

são palavras frágeis como insectos

como pulsos

e acumulo pedras sobre pedras

cavo e escavo a página deserta

para encontrar um corpo

entre a vida e a morte

entre o silêncio e o grito

 

Que tenho eu para dizer mais do que isto

sempre isto desta maneira ou doutra

que procuro eu senão falar

desta busca vã

de um espaço em que respira

a boca de mil bocas

do corpo único no abismo branco

 

Sou um pobre trabalhador pobre

nesta mina branca

onde todas as palavras estão ressequidas

pelo ardor do deserto

pelo frio do abismo total

 

Que tenho eu a dizer

neste país

se um homem levanta os braços

e grita com os braços

o que de mais oculto havia

na secreta ternura de uma boca

que era a única boca do seu povo

 

Que posso eu fazer senão

daqui

deste deserto

em que persisto

chamar-lhe camarada

 

in A Nuvem Sobre a Página (1978)

Transcrito de Poemas do Último Século Antes do Homem, “colheita de poesia e arte na resistência antifascista”, Editorial Inova/Editorial O Oiro do Dia, Porto, 1979.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Rogério Ribeiro (1930-2008), UCP – Unidade Colectiva de Produção, de 1976. A obra, propriedade da CGD, encontra-se em depósito no Palácio da Presidência da República, em Belém, estando instalada na Sala do Conselho de Estado, segundo informação do site da Culturgest.